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Ilícitos constitucionais e responsabilidade civil: algumas aproximações

A verificação de ilícitos constitucionais que autorizam a responsabilidade civil, nas dimensões individuais e coletivas.

20/7/2022

Afirmação da responsabilidade civil como instituto jurídico de promoção à pessoa humana ganhou significativa projeção após a promulgação da Constituição, oportunidade em que o leque de hipóteses para danos ressarcíveis (identificados na percepção dos valores fundamentais) aumentou consideravelmente.1  Não sem antes três outras peculiaridades: I - abertura a novos modelos mais eficazes que o clássico arquétipo reparatório; II - outras formas de atribuição de responsabilidade (nexo de imputação); e, III - paralela securitização contra riscos e acidentes.2

Entretanto, por vezes especificando à miúde determinada situação jurídica de âmbito jusfundamental, a Constituição trata paralelamente em atribuir ao titular, quando da violação, direito à imputação pelos danos suportados. Isso não ocorre em todos os dispositivos de direitos fundamentais, apenas em alguns. Com isso, permite-se que possa haver interpretação que forneça sentido a tais lesões identificadas no texto constitucional, como expressão do projeto político de vida dos cidadãos.

Vale advertir que atentados a posições jusfundamentais, independentemente da forma paralela positivada de acesso às consequências indenizatórias ou assemelhadas, podem ser geradoras de responsabilidade civil. Aqui é perfeitamente cabível a figura do ‘ilícito constitucional’ (tese, inclusive, havida no STF)3 , consistente na conduta comissiva ou omissiva de violação de direito fundamental de alguém ou na transgressão a preceito jurídico fundamental.

Preferimos tratar o ilícito constitucional como violação a deveres fundamentais4, dado que o atentado tem caráter extremado frente a bem jurídico valorado constitucional.E como ilícito, evidentemente deve estar sujeito à inibição, remoção ou cessação dos respectivos efeitos, evitando-se eventuais danos, muito embora duas figuras com óbvias conceituações distintas (ilícito e dano).6

Pois bem. Os danos qualificados constitucionalmente estão distribuídos tanto na fundamentabilidade individual quanto na fundamentabilidade transindividual, a considerar os bens jusfundamentais em promoção. Essa classificação é relevante porquanto auxilia na dimensão protetiva7 , inclusive na percepção a grau de lesividade, identificação de lesados, reparabilidade, compensação, modos de tutela etc.

Os danos constitucionais identificados na fundamentabilidade individual estão dispostos como: i) danos materiais, morais e à imagem decorrentes dos agravos recebidos em matéria divulgada, publicada ou transmita pelos meios de comunicação (CF, art. 5º, inciso V) 8;II)  danos materiais ou morais por violação dos direitos fundamentais relativos à intimidade, vida privada, honra e imagem (CF, art. 5º, inciso IX) 9; III) danos no caso de requisição de propriedade particular nos casos iminente perigo público (CF, art. 5º, inciso XXV); iv) obrigação de indenizar dos sucessores, nos limites do patrimônio transferido, quanto aos danos causados pelo condenado (CF, art. 5º, XLV).

Por sua vez, danos percebidos no texto constitucional de ordem transindividual são registráveis: a) danos nucleares (CF, art. 21, inciso XXIII, alínea d); b) danos ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (CF, art. 24, inciso VIII); c) danos ao erário público (CF, art. 71, inciso VIII); d) danos ao patrimônio cultural (CF, art. 216, § 4º); e) danos ao meio ambiente (CF, art. 225, § 3º).

Como afirmado, a violação a direitos fundamentais de outrem ou o atentado aos deveres fundamentais (transgressão a preceito jurídico), quer por outro particular ou pelo Estado, são o bastante para o manejo de pleitos de responsabilidade civil, independentemente de estar albergada na Constituição forma correspondente à imputação por danos. Também vale registrar outra clara observação no sentido de que nenhum direito fundamental goza de valor absoluto.10

Esclareça, contudo, que nas hipóteses dos dispositivos acima descritos, a orientação constitucional, muito embora já imponha os deveres de proteção do Estado11 , foi associar aos respectivos direitos fundamentais a imputabilidade pelas lesões sofridas, própria da órbita privada, garantindo-se a plenitude da norma de proteção de direitos fundamentais.

Observe que em tais casos, o desiderato do constituinte foi albergar direta e imediatamente na Constituição interesses privados ou interesses coletivos sem subterfúgios como ‘interesses reflexos’, acrescentando mais ênfase na proteção do bem jurídico jusfundamental.12

Além disso, duas outras marcantes estratégias, revelam na metódica constitucional forte preocupação com a promoção de valores fundamentais através da responsabilidade civil.

É importante verificar que a Constituição cuidou em atribuir outro meio para imputação de danos que não a culpa, como na hipótese de danos oriundos das atividades da Administração Pública (CF, art. 37, § 6º), assim como nas condutas lesivas ao meio ambiente (CF, art. 225, caput, inciso V e VII e § 3º) e ao patrimônio cultural (CF, art. 216, § 4º), sem prejuízo na apuração da responsabilidade no caso de atividade nuclear (CF, art. 21, inciso XXIII, alínea d). Eis o risco como critério não apenas de estabilidade econômica, senão de ordem política a valorar certos bens fundamentais.13

Igualmente tanto para os direitos de incidência coletiva (bens jusfundamentais) e incidência individual (especialmente aos vulneráveis, textualmente para crianças e pessoas com deficiência), a Constituição possibilitou a atuação ‘ex ante’ lesão. Vale o registro de que a responsabilidade civil tinha marcha tão somente quando do implemento do ‘dano’, o que era inconsistente frente aos valores fundamentais tutelados. Revela-se dogmaticamente insuficiente o modelo reparatório, mesmo porque inúmeros interesses jurídicos fundamentais, no plano empírico, não são facilmente recompostos. Não é à toa que a matriz constitucional assegura que a ‘lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou a ameaça a direito’ (CF, art. 5º, inc. XXXV).

A chamada função preventiva da responsabilidade civil ganha assento não apenas em previsão meramente inibitória, senão sancionatória, porquanto o dano de magnitude constitucional, de todo abjeto, proporciona reorientação na passagem relevante da lesão injustamente sofrida à lesão injustamente causada, até porque as fontes da injustiça do dano podem ser diversas.14

Não há dúvida de que a norma é o produto final decorrente da aplicação da lei, à vista da interpretação posta. Explica a doutrina que “normas não são textos, nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos”.15  

A norma de proteção de direitos fundamentais decorrerá da mesma forma como resultado de operação na tensão entre fato, disposições legais e interpretação (ou como queiram outros: programa normativo, âmbito normativo e concretização prática).16  Entretanto, no âmbito da responsabilidade civil e projeção de interesses privados ou interesses transindividuais precisará valer-se das disposições infraconstitucionais (Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, Lei Geral de Proteção de Dados, leis ambientais etc.).

É necessário compreender que nas mencionadas legislações estão dispostos os critérios estruturais e funcionais da responsabilidade civil (conduta, nexo de causalidade, indenização, eventuais excludentes, finalidades). Nesse ponto, não é incorreto afirmar que o direito de danos desempenha papel essencial e valorativo aos direitos fundamentais, porque dá concretude às consequências necessárias quando das violações das disposições magnas.

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1 MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. In: Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 334.

2 MIRAGEM. Bruno. Direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 40.

3 Veja o excelente julgado no HC 103325. Rel. Min. Celso de Mello. STF em que tratando do direito fundamental à proteção da inviolabilidade domiciliar,  asseverou que “os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode caracterizar ilícito constitucional”.

4 MARTINS, Fernando Rodrigues. Os deveres fundamentais como causa subjacente-valorativa da tutela da pessoa consumidora: contributo transverso e suplementar à hermenêutica consumerista da afirmação. In: RDC. v. 94. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 215-217. Com apoio em José Casalta Nabais: “Ou seja, por outras palavras, a instituição ou não de deveres fundamentais repousa, em larguíssima medida, na soberania do estado enquanto comunidade organizada, soberania que não pode, todavia, fazer tábua rasa da dignidade humana, ou seja, da ideia da pessoa humana como princípio e fim da sociedade e do estado, ideia esta que assim rejeita claramente a concepção de Ch. Gusy que dissolve os deveres fundamentais na soberania do estado”.

5 PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Los deberes fundamentales. Doxa. N. 04 (1987). ISSN 0214-8876, pp. 329-341 Explica: “aquellos deberes jurídicos que se refieren a dimensiones básicas de la vida del hombre en sociedade, a biens de primordial importancia, a la satisfacción de necesidades básicas o que afectan a sectores especialmente importantes para la organización y el funcionamiento de las instituiciones públicas, o al ejercicio de derecho fundamentales, generalmente en el ámbito constitucional”.

6 MARINONI, Luiz Guilherme. A tutela específica do consumidor. RDC. v. 50. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 71. Após estabelecer a diferença entre tutela inibitória (para evitar) o ilícito e ação de remoção (arredar efeitos) do ilícito, conclui magistralmente: “A dificuldade de se compreender a ação de remoção do ilícito advém da falta de distinção entre ato ilícito e dano. Quando se associa ilícito e dano, conclui-se que toda ação processual voltada contra o ilícito é ação ressarcitória ou de reparação do dano. Acontece que há ilícitos cujos efeitos se propagam no tempo, abrindo as portas para a produção de danos. Isso demonstra que o dano é uma consequência eventual do ilícito, mas que não há cabimento em ter que se esperar pelo dano para se poder invocar a prestação jurisdicional”.

7 MARTINI, Sandra Regina. Metateoria do direito fraterno e direito do consumidor: limites e possibilidades do conceito de fraternidade. RDC. v. 113. São Paulo: Revista dos Tribunais, 271-295. A transindividualidade com escopo na fraternidade: “Por sua vez, o centro de referência na fraternidade é a relação intersubjetiva (reconhecimento a partir do outro) marcada por uma relação horizontal e igualitária, que exige dos indivíduos reconhecimento mútuo e responsabilidades comunitárias, de forma a implementar e proteger interesses transindividuais a exemplo do direito do consumidor” .

8 Observar Lei nº 13.188/2015, que disciplina o direito de resposta ou retificação do ofendido em matéria divulgada, publicada ou transmitida por veículo de comunicação social.

 9 SARLET, Ingo Wolfgang. Teoria geral dos direitos fundamentais. In: Curso de direito constitucional. Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 387. Essa tutela é designada pela dogmática constitucional em duas variantes: ‘direitos fundamentais de ordem privada’ ou ‘direitos constitucionais da personalidade’.

10 MIRANDA, Jorge. Direitos fundamentais.  2ª ed. Coimbra: Almedina, 2018. p. 152.

11 SILVA, Jorge Pereira. Deveres do Estado de protecção de direitos fundamentais: fundamentação e estrutura das relações jusfundamentais triangulares. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015 .

12 MATOS, Filipe Albuquerque. Ilicitude extracontratual (umas breves notas). In: Novos olhares sobre a responsabilidade civil. Centro de Estudos Judiciários. Jurisdição Civil. Outubro 2018, p. 13. Explica: “Condição fundamental para afirmar a existência de uma norma legal de protecção reside na circunstância de o legislador ter prefigurado a tutela dos interesses privados de modo directo e imediato. Sendo as normas legais de protecção maioritariamente normas de direito público, não basta que os interesses dos particulares sejam protegidos de modo reflexo ou mediato face ao interesse público, ou da colectividade que surge naturalmente protegido a título principal”.

13 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações. Introdução à responsabilidade civil. 2º ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 434. Explica: “o princípio do risco enfatiza o valor da segurança jurídica, que traduz, no âmbito do direito, as preocupações extrajurídicas com a estabilidade econômica e com a ordem política

14 PAPAYANNIS, Diego M. Comprensión y justificación de la responsabilidad extracontractual. Buenos Aires: Marcial Pons, 2014, p. 122. 

15 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 30.

16 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 244.

Fernando Rodrigues Martins
Mestre e doutor em direito das relações sociais pela PUC-SP. Professor, adjunto de Direito Civil na Universidade Federal de Uberlândia. Ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia.

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