CAPÍTULOS DE SENTENÇA
Geralmente as demandas litigiosas apresentadas perante o Poder Judiciário não exteriorizam um único pedido à petição inicial, mas, sim, de dois a três, ou, até mesmo mais; dependendo da complexidade do caso e, em razão disso, o juiz, ao analisar o mérito, redigirá um pronunciamento jurisdicional (seja tanto por decisão ou por sentença) a respeito de cada pedido.
Tal situação pode ser verificada na realidade concreta quando há uma demanda relativa a acidente do trabalho, em que o acidentado pede o reembolso das despesas médicas, danos materiais, em razão dos dias em que ficou afastado do trabalho, danos morais e, eventuais, danos estéticos. O juiz, neste caso, decidirá individualmente cada pedido, bem como sobre os honorários de sucumbência, julgando-os procedentes ou não.
Verifica-se que, além da tradicional divisão de um pronunciamento jurisdicional em relatório, fundamentação e dispositivo (ou decisório), há uma subdivisão na própria parte dispositiva, que seria os capítulos.
De acordo com Cândido Rangel Dinamarco1, influenciado por Enrico Tullio Liebman, os capítulos de sentença consistem em unidades autônomas do decisório, nas quais “cada uma dessas deliberações é distinta das contidas nos demais capítulos e resulta da verificação de pressupostos próprios, que não se confundem com os pressupostos das outras”.
Isto não significa, no entanto, que os capítulos possuem total independência quanto ao restante da sentença, ao ponto de serem aptos a constituírem um julgado apartado; esta autonomia absoluta seria em relação aos próprios capítulos.
Por outro lado, Oscar Valente Cardoso2 defende que os capítulos podem ser dependentes ou independentes entre si, guardando uma certa relação de prejudicialidade. Por exemplo, isto é constatado na situação em que uma demanda pede a anulação de contrato e a devolução dos valores. Há um vínculo entre os pleitos, de tal modo que caso aquele seja rejeitado este ficará prejudicado.
É importante salientar, ademais, que a teoria dos capítulos de sentença não se aplica somente às sentenças, mas, sim, a todo e qualquer pronunciamento jurisdicional de mérito, conforme é ensinado por Cândido Rangel Dinamarco3: “E, como não só a sentença comporta as decomposições inerentes à teoria dos capítulos, o estudo do tema expande-se a outros pronunciamentos judiciais, como as decisões interlocutórias e os acórdãos em geral”.
Esta teoria é de extrema relevância, pois a partir dela outros ramos do direito processual civil brasileiro são afetados, como, por exemplo: a coisa julgada e a liquidação de sentença, as quais serão analisadas a seguir.
COISA JULGADA E CAPÍTULOS DE SENTENÇA
O código processual brasileiro de 1973, elaborado por Alfredo Buzaid, com influências de Liebman, idealizava que a coisa julgada seria a qualidade de definitividade e imutabilidade do comando emergente de uma sentença que atinge a si mesmo, assim como os seus respectivos efeitos4.
Todavia, a definição adotada por Buzaid e a que constou no artigo 467 são diferentes, pois houve o Senado Federal, à época da tramitação do projeto, a alterou por meio de emenda. Isto é verificado ao se confrontar as ideias de Liebman sobre a coisa julgada com os dizeres adotados pelo legislador, principalmente na utilização dos termos “eficácia” e “sentença”. Sendo que, no entanto, o autor italiano citou “qualidade” e “comando emergente”, como menciona Luiz Dellore5.
Com a formulação do Novo Código de Processo Civil de 2015, o legislador tentou se aproximar mais à conceituação de Liebamn quanto à coisa julgada.
Apesar da substituição do vocábulo “eficácia” por “qualidade” (para uma simples confluência maior à definição liebmaniana), a grande alteração trazida foi em relação ao fato de não mais a sentença ser o único instrumento acobertado pela coisa julgada, mas, sim, todo e qualquer pronunciamento jurisdicional de mérito, seja decisão interlocutória, sentença, decisão monocrática ou acórdão.
A coisa julgada pode ser formada através da “imutabilidade e indiscutibilidade de uma decisão dentro do próprio processo em que foi proferida” (coisa julgada formal), de acordo com lição de Botelho de Mesquista6. Isto ocorre em razão da inrecorribilidade de decisão; ou, pelo esgotamento dos recursos cabíveis; ou, pela não interposição do recurso dentro do prazo legal; ou, pela anuência da não recorrebilidade. Além disso, é possível também a coisa julgada ser concebida por meio da imutabilidade e indiscutibilidade de decisão de mérito endoprocessual e panprocessual (coisa julgada material).
A partir desses conceitos podemos agora analisar a coisa julgada em conjunto com os capítulos de sentença.
Como mencionado anteriormente, na parte dispositiva dos pronunciamentos jurisdicionais, o juiz examina e julga o mérito, o que resulta nos capítulos de sentença; sejam autônomos ou dependentes entre si.
Diante disso, aplicando a teoria dos capítulos de sentença em conjunto com a coisa julgada, é plausível se concluir que há a possibilidade de ocorrência da coisa julgada “parcial”.
Isto porque, utilizando-se o exemplo anteriormente citado do acidente do trabalho, se o juiz, em decisão interlocutória, decidisse que o pedido dos danos estéticos deveria ser afastado, a parte autora poderia interpor recurso contra tal decisão. No entanto, caso isto não acontecesse, haveria a preclusão desta matéria, com o trânsito em julgado e, consequentemente, a formação de coisa julgada material.
Neste sentido, a título de elucidação, é importante citar ensinamento dado por Fernando Machado Carboni7:
“Caso o autor peço dano material no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) e a sentença condene o réu ao pagamento de R$ 6.000,00 (seis mil reais), se apenas o autor apela para tentar a procedência total, a condenação em no mínimo R$ 6.000,00 (seis mil reais) fez coisa julgada material. O tribunal poderá aumentar a indenização ou mantê-la no valor fixado na sentença. Mas jamais poderá diminuí-la ou excluí-la, pois violará a coisa julgada material e os princípios ‘tantum devolutum quantum appelatum’ e da proibição da ‘reformatio in pejus’. A sentença de primeira instância tem dois capítulos: o que concedeu a indenização de R$ 6.000,00 (seis mil reais), atingida pela coisa julgada material, pois não recorrido, e o que negou o valor de R$ 4.000,00, passível de modificação pelo tribunal, pois objeto do recurso”
Todavia, diante dessa situação emerge-se uma pergunta: o efeito devolutivo não afeta toda a matéria envolvida na lide?
Para resolver esta questão, é importante antes a apresentação dos fundamentos nos quais a resposta é baseada.
De acordo com o artigo 1.002 do CPC, é possível a interposição de recurso contra todos os capítulos do pronunciamento judicial ou, apenas, de parcela deles. Em complementação a isto, o artigo 1.013, caput e §1º do CPC menciona que somente haverá a devolução do julgamento ao tribunal das matérias e questões relativas ao capítulo impugnado.
Embora o artigo 1.013 do CPC seja referente à sentença, salienta-se que a sua respectiva inteligência é aplicável a todo e qualquer recurso, conforme posicionamento de Assis Araken8.
Assim sendo, compreende-se que não há a devolução de toda a matéria envolvida no processo ao tribunal, mas, sim, somente dos capítulos recorridos. E, consequentemente, opera-se a coisa julgada nos capítulos que não forem devolvidos ao tribunal através de impugnação.
Tal entendimento é corroborado por diversos autores, entre ele: Cândido Rangel Dinamarco, Humberto Theodoro Júnior, Marcelo José Magalhães Bonício, José Carlos Barbosa Moreira, José Roberto dos Santos Bedaque, Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes, Ana Cândida Menezes Marcato9.
Em consonância, destaca-se que o Enunciado 100 do Fórum Permanente de Processualistas Civis aponta expressamente que “não é dado ao tribunal conhecer de matérias vinculadas ao pedido transitado em julgado pela ausência de impugnação”.
Outro questionamento, no entanto, que surge com a teoria dos capítulos de sentença aplicada à coisa julgada é quanto à liquidação de sentença.
LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA
Os artigos 583 e 783 do CPC estipulam que, para o início da pretensão executiva da liquidação de sentença, é necessária a presença de título executivo, fundado em obrigação certa, líquida e exigível.
A partir de simples leitura verifica-se que ambos os artigos não mencionam nada em relação aos capítulos de sentença. Todavia, conforme artigo 356, § 4º do CPC, o legislador permitiu o início da liquidação e do cumprimento de pronunciamento jurisdicional que julgou parcela do mérito, ou seja, quanto aos capítulos.
Em adição a isto, o artigo 523 do CPC prevê que, no tocante à parcela incontroversa, é plenamente possível o início do cumprimento definitivo da sentença.
Neste sentido, é importante destacar ensinamento de Cândido Rangel Dinamarco10, o qual esclarece que não há impeditivos para a liquidação do(s) capítulo(s):
“não é incomum a sentença condenatória conter uma parte líquida e uma parte ilíquida, ou genérica – ou seja, um capítulo com a perfeita quantificação dos bens que constituem objeto da obrigação, em convivência com outro, no qual se condena o réu sem determinar desde logo o valor. (...) Em caso assim, é possível a pronta execução fundada no capítulo líquido, ao mesmo tempo em que se promove a liquidação por artigos com referência ao capítulo portador da condenação genérica”
Em consonância, salienta-se posicionamento do Ministro Marco Aurélio a respeito do tema, no julgamento do Recurso Extraordinário 666.589:
“[...] Ainda que envolvida decisão formalmente unitária, esta pode ser materialmente plural, presentes partes cindíveis do dispositivo, cada um, segundo Humberto Theodoro Júnior, ‘contendo solução para questão autônoma em face das demais’.
[...]
Essa distinção provoca reflexos no cumprimento do ato – que pode ser realizado de modo independente -, assim como – e esta é a questão central deste processo – no trânsito em julgado, que se mostra passível de ocorrer em momentos separados presentes os capítulos autônomos da decisão. Conforme Dinamarco, ‘podem variar, em relação aos diversos capítulos de uma só sentença, os momentos em que cada um deles passa em julgado’
[...]
O Supremo admite, há muitos anos, a coisa julgada progressiva ante a recorribilidade parcial também no processo civil. É o que consta do Verbete nº 354 da Súmula, segundo o qual, ‘em caso de embargos infringentes parciais, é definitiva a parte da decisão embargada e que não houve divergência na votação’ Assim, conforme a jurisprudência do Tribunal, a coisa julgada, reconhecida na Carta como cláusula pétrea no inciso XXXVI do artigo 5º, constitui aquela, material, que pode ocorrer de forma progressiva quando fragmentada a sentença em partes autônomas.
Disso tudo decorre outra consequência lógica, agora tendo em conta a propositura de rescisória e o prazo para tanto, objeto deste extraordinário: ocorrendo, em datas diversas, o trânsito em julgado de capítulos autônomos da sentença ou do acórdão, tem-se, segundo Barbosa Moreira, a viabilidade de rescisórias distintas, com fundamentos próprios”.
Assim sendo, constata-se que é admissível a liquidação e o cumprimento de sentença do(s) capítulo(s) de sentença ou de pronunciamento(s) judicial(is), de forma apartada, cujo teor esteja(m), obrigatoriamente, acobertado(s) pela coisa julgada.
CONCLUSÃO
A teoria dos capítulos de sentença, nos ensinamentos de Cândido Rangel Dinamarco, consiste na divisão da parte dispositiva dos pronunciamentos judiciais em capítulos, de acordo com os pedidos formulados, explicitamente e implicitamente, à petição. Vale ressaltar, no entanto, que tal teoria não se aplica exclusivamente às sentenças, mas, sim, a todos os pronunciamentos judiciais de mérito.
O emprego da mencionada teoria causa enormes reflexos em diversas áreas do processo civil brasileiro, dentre elas a coisa julgada e a liquidação de sentença.
A partir da aplicação dos capítulos de sentença à coisa julgada, é plenamente possível a ocorrência da coisa julgada “parcial”, haja vista que, caso um recurso não abarque certo item de um pronunciamento judicial de mérito, esse capítulo transitaria em julgado e, consequentemente, formaria coisa julgada. Este entendimento, inclusive, causaria consequências na liquidação/cumprimento de sentença, uma vez que, com a formação de coisa julgada, quanto a certo capítulo do pronunciamento de mérito, não haveria impeditivos para o início da liquidação do julgado que não comportar mais modificações e/ou discussões; ainda que o mérito, como um todo, não tenha transitado em julgado.
Tal entendimento, além de ser corroborado por diversos doutrinadores, dentre ele, Cândido Rangel Dinamarco e Humberto Theodoro Júnior, é sustentada também pela legislação (artigos 356, § 4º; 523, 583 e 783, todos do CPC), bem como pelo Supremo Tribunal Federal.
Diante disso, apesar da coisa julgada, em certos casos, não acobertar todo o mérito de uma lide, nada impede que haja a liquidação do capítulo de pronunciamento judicial que não admita mais modificação e/ou discussão, haja vista a didática da teoria dos capítulos de sentença.
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1 DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de Sentença. São Paulo: Malheiros, 2008, 3ª Ed., p. 34-35.
2 CARDOSO, Oscar Valente. Capítulos de Sentença, Coisa Julgada Progressiva e Prazo para a Ação Rescisória. Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo, n. 70, p. 75-85, jan. 2009, p. 76
3 DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de Sentença. São Paulo: Malheiros, 2008, 3ª Ed., p. 11.
4 LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 1984. 1ª Ed., p. 54.
5 DELLORE, Luiz; GAJARDONI, Fernando da Fonseca; JUNIOR; Zulmar Duarte de Oliveira. Processo de Conhecimento e Cumprimento de Sentença: comentários ao CPC de 2015: volume 2. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método. 2ª Ed, 2018, p. 604-625.
6 MESQUITA, José Ignacio Botelho de. A coisa Julgada. Rio de Janeiro: Forense. 2004, p. 11.
7 CARBONI, Fernando Machado. Coisa Julgada Parcial de Capítulos de Sentença. Revista do CEJUR/TJSC: Prestação Jurisdicional, v. 1, n. 03, p. 138 – 160 dez. 2015.
8 ASSIS, Araken. Manual dos Recursos. São Paulo; Revista dos Tribunais. 6ª ed. rev., atual e ampl., 2014, p. 248.
9 BUIKA, Heloisa Leonor. Análise da teoria dos capítulos de sentença e suas implicações no âmbito dos recursos. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, n. 133, p. 42-56, abr. 2014.
10 DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de Sentença. São Paulo: Malheiros, 2008, 3ª Ed., p. 127.