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O princípio da segregação de funções nas licitações de publicidade do Governo Federal: exceções à regra

Não existindo margem alguma para alterações na minuta do edital, como poderiam os responsáveis por sua formatação virem a influir em seu conteúdo e, ao mesmo tempo, nos atos praticados na fase externa da licitação?

20/7/2022

O princípio da segregação de funções tem por objetivo a distribuição de funções entre os servidores da administração, de forma a não concentrarem um grande rol de atribuições e poderes nas mãos dos mesmos atores. Nesse sentido, o Tribunal de Contas da União sedimentou no Acórdão 5.615/2008 -1ª câmara:

1.7.1. [...] consiste na separação de funções de autorização, aprovação, execução, controle e contabilização das operações, evitando o acúmulo de funções por parte de um mesmo servidor.  

Assim, a implementação deste axioma normativo tem como propósito justamente evitar ou reduzir o risco à ocorrência de erros, ou sua ocultação; coibir conflitos de interesse; evitar a ocorrência de fraudes ou ilicitudes, justamente visando o respeito à moralidade, isonomia e legalidade, indispensáveis para o exercício regular dos atos da administração.

Além de acautelar os procedimentos administrativos dos referidos riscos, busca-se – de igual forma – a promoção de uma “barreira de dupla proteção e segurança”, aumentando as chances de controle e garantindo uma melhor execução, daí que a Organização Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores (INTOSAI) em suas diretrizes para as Normas de Controle Interno do Setor Público entendeu:

[...] não deve haver apenas uma pessoa ou equipe que controle todas as etapas-chave de uma transação ou evento [ou processo de execução das despesas públicas]. As obrigações e responsabilidades devem estar sistematicamente atribuídas a um certo número de indivíduos, para assegurar a realização de revisões e avaliações efetivas. As funções-chave incluem autorização e registro de transações, execução e revisão ou auditoria das transações. 

Portanto, pelo princípio em exame, busca-se justamente impedir que um único agente venha a praticar atos e, posteriormente, venha a fiscalizar os atos praticados por si mesmo. Ora, poder-se-ia pairar suspeição acerca da limpidez ou da isonomia de um ato da Administração Pública quando um mesmo indivíduo acumula em si todas as funções. Logo, serve o princípio da segregação das funções como ferramenta de controle interno dos atos administrativos.

Trata-se, pois, de princípio de extrema relevância para andamento dos processos administrativos, sobretudo aqueles voltados à contratação de produtos e serviços, de que serve de exemplo o procedimento licitatório.

O princípio da segregação de funções no âmbito do procedimento licitatório, em que pese já amplamente difundido no âmbito da jurisprudência das Cortes de Contas e da doutrina especializada, somente foi positivado de forma expressa com a Nova Lei de Licitações – Lei 14.133/21.

Com efeito, foi neste Novo Diploma Normativo que o princípio da segregação das funções assumiu força cogente de maneira expressa, conforme se observa do art. 5º da Nova Lei de Licitações, bem como teve o seu conteúdo e alcance também delineado pelo legislador, conforme se observa do §1º do art. 7º, in verbis:

Art. 7º Caberá à autoridade máxima do órgão ou da entidade, ou a quem as normas de organização administrativa indicarem, promover gestão por competências e designar agentes públicos para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei que preencham os seguintes requisitos:

[...]

§ 1º A autoridade referida no caput deste artigo deverá observar o princípio da segregação de funções, vedada a designação do mesmo agente público para atuação simultânea em funções mais suscetíveis a riscos, de modo a reduzir a possibilidade de ocultação de erros e de ocorrência de fraudes na respectiva contratação. – os negritos não são originais. 

O objetivo do legislador, contemplando jurisprudência já consolidada do Tribunal de Contas da União, foi de separar as funções dos agentes públicos que atuaram ou vierem a atuar no procedimento licitatório, de modo a “reduzir a possibilidade de ocultação de erros e de ocorrência de fraudes na respectiva contratação”.

Todavia, em que pese a importância do princípio da segregação das funções, ele não é absoluto, devendo sempre ser interpretado a partir de um certo grau de profundidade em relação ao contexto fático-jurídico próprio do caso concreto.

De saída, a primeira observação que se tem no que se refere ao caráter não absoluto do princípio em tela é a impossibilidade de se atribuir, de maneira indistinta, uma atividade específica para cada agente público que venha a atuar no processo administrativo. É que, como se sabe, não é incomum inexistir agentes públicos capacitados em quantitativo suficiente para que haja a perfeita segregação das funções.

Nessa seara, não se impede que o mesmo agente venha a exercer mais de uma função e participar de mais de uma fase em um mesmo processo, o que se impede é o exercício de funções que, quando exercidas de forma aglutinada por um único indivíduo, representem risco aos princípios da administração pública.

Dessa forma, demonstrada a inexistência do risco, não há óbice para o exercício de mais de uma função por parte do mesmo ator. Aliás, sobre essa temática, o Tribunal de Contas da União, analisando a representação 01980420148, estabeleceu:

A segregação de funções é princípio básico de controle interno que consiste na separação de atribuições ou responsabilidades entre diferentes pessoas, especialmente as funções ou atividades-chave de formalização, autorização, execução, atesto/aprovação, registro e revisão, facultando a revisão por setores diferentes nas várias etapas do processo e impedindo que a mesma pessoa seja responsável por mais de uma atividade sensível ao mesmo tempo, sem o devido controle. (TCU 01980420148, Relator: BRUNO DANTAS, Data de Julgamento: 04/11/2015) – os destaques são nossos. 

O que se observa do excerto da decisão ora transcrita é que segregação de funções tem como condão a possibilidade de controle e revisão de atividades essenciais, justamente para evitar vícios ou ilicitudes decorrentes do cúmulo de funções em um mesmo indivíduo.

Dessa forma– frisa-se – não se tratando de atividades relacionadas ou cuja prática de uma permita a verificação da outra, também não há que se falar em obrigatoriedade de absoluta individualização das funções, sendo possível que um indivíduo possua mais de uma atribuição ou responsabilidade, desde que observada a situação aqui mencionada.

De outra banda, a própria lei 8.666/93, embora não tivesse estabelecido de forma expressa e direta o princípio da segregação de funções, carrega em seu bojo disposições que, não somente são materialização de tal princípio, como também traz exceções à sua aplicação.

Com efeito, fundando-se no princípio da segregação de funções, o legislador estabeleceu na lei 8.666/93, em seu artigo 9°, I, a impossibilidade de participação – direta ou indireta – em licitação ou execução de obra ou serviço e fornecimento de bens a eles necessários, do “autor do projeto, básico ou executivo, pessoa física ou jurídica”.

Não obstante, o §1° do mesmo artigo 9º estabelece: a possibilidade de “participação do autor do projeto ou da empresa a que se refere o inciso II deste artigo, na licitação de obra ou serviço, ou na execução, como consultor ou técnico, nas funções de fiscalização, supervisão ou gerenciamento, exclusivamente a serviço da Administração interessada.”

Assim a própria Lei de Licitações ainda vigente já estabelece uma hipótese de exceção ao princípio da segregação das funções, de modo que a depender da forma de participação e das funções é até mesmo possível a atuação do indivíduo que participou da escrita do projeto em atividades de “fiscalização, supervisão ou gerenciamento.”, inclusive na fase de execução do contrato.

Ora, se é permitido pelo próprio legislador o acúmulo de funções com teor fiscalizatório, não há razão para não se permitir o acúmulo de funções que não causem risco algum aos princípios da Administração Pública.

O que se observa disso é que não se trata de princípio absoluto – o da segregação de funções -, mas sim que deve ser interpretado e aplicado de acordo o caso concreto, à luz do contexto fático-jurídico, oportunidades em que ele poderá ser mitigado ou até mesmo relevado.

Feita essa rápida introdução, passemos ao exame da aplicabilidade deste princípio das licitações de publicidade.

Como é cediço, durante a fase interna de todo procedimento licitatório os mais relevantes atos administrativos são praticados ora pela unidade orgânica demandante, ora pela unidade licitante.

 Ordinariamente, a unidade orgânica demandante aponta a sua necessidade de contratação e a materializa por meio de um termo de referência e demais atos acessórios. A unidade licitante recebe a proposição originada na área demandante e dá continuidade aos demais atos da fase interna (verificação da disponibilidade orçamentária, aprovação da autoridade superior, elaboração da minuta do edital, dentre outros atos).

Não obstante, os processos licitatórios de contratação de serviços de publicidade possuem contornos próprios estabelecidos pelo legislador na Lei n° 12.232/10, distinguindo-os dos demais processos licitatórios e, consequentemente, alterando a forma e abrangência de incidência do princípio da segregação de funções.

Com efeito, no procedimento licitatório de publicidade não há termo de referência, que normalmente é um dos documentos inaugurais do processo, mas sim briefing em que a área demandante aponta a sua necessidade de comunicação. Nessa toada, a área demandante não elabora termo de referência e encaminha para a unidade licitante, mas sim confecciona um briefing juntamente com a minuta do edital e encaminha para unidade orgânica que processará o certame.

Como decorrência das especificidades do processo licitatório de publicidade, a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (SECOM/PR), enquanto autoridade máxima do SICOM – Sistema de Comunicação de Governo do Poder Executivo Federal, impôs a toda Administração Direta Federal a adoção dos modelos de edital por ela disponibilizados em seu site, conforme se verifica do teor do §3º do art. 7º da IN/SECOM nº 03/208, in verbis:

Art. 7º [...]

§1º O anunciante utilizará o modelo de edital disponível no site www.secom.gov.br e o roteiro para elaboração do briefing, anexo I desta Instrução Normativa, com as adaptações necessárias ao atendimento das especificidades de cada órgão ou entidade. 

É de se observar que o dispositivo usou o modo imperativo (“utilizará”) em relação à delimitação do âmbito de ação do órgão público federal anunciante. Isto é, não há discricionaridade nem para os Ministérios nem para os órgãos de hierarquia inferior quanto ao formato e ao conteúdo do edital de publicidade: é obrigação utilizar o modelo fornecido pela SECOM/PR.

Além disso, o caput do art. 7º da mesma IN/SECOM nº 03/2018 impõe a submissão prévia da minuta do edital à análise e à aprovação da SECOM/PR, antes de ser inaugurada a fase externa do certame:

Art. 7º Será previamente submetida para análise e aprovação da SECOM a minuta de edital de licitação destinado à contratação de serviços de publicidade prestados por intermédio de agência de propaganda, de responsabilidade:

I - da administração direta, em todos os casos; e

II - da administração indireta, na contratação de valor anual superior a dez vezes o limite previsto na alínea 'b' do inciso II do art. 23 da Lei nº 8.666, de 1993. 

A regra é tão abrangente que alcança não somente os órgãos da Administração Direta, como também as entidades que compõem a Administração Indireta. Trata-se de regra cogente que precisa observada por todo o ecossistema da Administração Pública Federal.

Pois bem. O que tal regramento repercute na aplicação do princípio da segregação de funções?

A grande questão está na escrita do edital da licitação, de forma que seria completamente possível e cabível a participação de um mesmo agente público tanto na fase interna, quanto na fase externa, mesmo quando da participação do agente na “redação” do edital.

Isto porque, especialmente nas licitações públicas federais, há pouca (ou nenhuma) discricionariedade por parte do agente público quanto à redação do edital, pois obrigatório é que o modelo do edital disponibilizado pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República deve obrigatoriamente ser seguido.

Nessa toada, considerando a obrigatoriedade de utilização do modelo de edital fornecido pela SECOM/PR, não há – nos processos licitatórios de publicidade, qualquer violação ao princípio da segregação de funções quando da participação de um mesmo servidor do poder público tanto na fase interna, quanto posteriormente na fase externa. Não há a mínima margem de discricionariedade, quer em relação à unidade demandante, quer seja em relação à unidade licitante, no que refere a alterações na minuta do edital, a qual já está previamente estabelecida.

Não existindo margem alguma para alterações na minuta do edital, como poderiam os responsáveis por sua formatação virem a influir em seu conteúdo e, ao mesmo tempo, nos atos praticados na fase externa da licitação? 

À toda evidência, considerando o regramento instituído pela SECOM/PR, ainda que os atos praticados por possíveis servidores públicos tivessem o condão de influir nos atos posteriores, este âmbito de influência seria praticamente nulo, haja vista que não há margem para qualquer alteração significativa no edital, cujas regras não são por ele criadas, nem aperfeiçoadas, mas sim pelo órgão máximo do Sistema de Comunicação de Governo do Poder Executivo Federal – SICOM, a SECOM/PR. 

Portanto, perfeito exemplo de maleabilidade do princípio da segregação de funções ao caso concreto é o ora trazido. Assim, existindo pouca (ou nenhuma) discricionaridade por parte do agente público quanto à redação do edital, não se pode falar em violação ao princípio estudado, sendo plenamente possível a participação do agente público em ambas as fases da licitação. 

__________ 

BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal de 1988, institui normas para licitações e contratos da administração pública e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm. Acesso em: 14 jul. 2022. 

BRASIL. Lei n° 14.133, de 1° de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em: 14 jul. 2022. 

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 5.615/2008-TCU-2ª Câmara. Relator: Ministro Raimundo Carreiro. Brasília, 4 de dezembro de 2008. Diário Oficial da União, 8 de dez. 2008. 

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Representação n° 01980420148 – TCU – Plenário. Relator: Ministro Bruno Dantas. Brasília, 4 de novembro de 2015.

Tribunal de Contas do Estado da Bahia. Organização Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores (INTOSAI). Diretrizes para as normas de controle interno do setor público. Disponível em: http://www.tce.ba.gov.br/images/intosai_diretrizes_p_controle_interno.pdf. Acesso em: 14 jul. 2022

Edvaldo Barreto Jr.
Advogado. Sócio fundador do escritório Barreto Dolabella Advogados. Diretor da Área de Direito Publicitário e Contratações Públicas. Procurador do Distrito Federal. Mestre em direito. MBA em Marketing pela ESPM (em curso). Autor de livro e artigos jurídicos.

João Gabriel Castro de Oliveira
Graduando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (CEUB) e em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UNB). É colaborador no Barreto Dollabella Advogados Associados. Possui experiência acadêmica em áreas diversas, destacando-se a participação em programa de Mobilidade na Universidad de La República Uruguay, tendo estudado o tema Sociedad y Pensamiento Sociológico Latino-americano.

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