A Quarta Turma do egrégio Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que as entidades fechadas de previdência complementar (EFPC ou Fundos de Pensão) não se equiparam às instituições financeiras para fins de cobrança de juros remuneratórios em contratos de mútuo firmados com seus participantes.
O entendimento adotado pelo STJ demanda atenção, pois a “sub-remuneração” da carteira de empréstimos contratados com EFPCs desatende ao Princípio do Equilíbrio Financeiro-econômico e Atuarial consolidado no caput do art. 202 da Constituição Federal.
O empréstimo a participantes é uma forma de investimento dos Fundos de Pensão, como consolidado há tempos nas regras do Conselho Monetário Nacional (CMN). A EFPC pode optar por investir, por exemplo, no CDB de um banco ou oferecer uma carteira de empréstimo. Em ambos os casos, deverá haver a rentabilidade esperada para que o plano de previdência se mantenha com boa rentabilidade e equilibrado. Caso os empréstimos não possam remunerar os “juros atuariais”, essas carteiras serão encerradas e a possibilidade de crédito para os participantes, em condições muito mais benéficas que o mercado oferece, tenderá a acabar.
Contudo, voltemos à decisão do STJ. Como ponto de partida, lembramos que o acórdão do REsp 1.854.818/DF em 30 de junho de 2022 não foi unânime: o voto proferido pela ministra relatora Maria Isabel Gallotti, acompanhado pelo ministro Raul Araújo, foi vencido pelo voto vista apresentado pelo ministro Marco Buzzi, acompanhado pelos ministros Luis Felipe Salomão e Antonio Carlos Ferreira, que também apresentou voto de divergência.
Esse cenário de divergência da Quarta Turma do STJ traduz um ambiente desafiador de argumentos jurídicos, seja pela ótica do voto vencido, seja pela ótica do voto vencedor.
Sem o objetivo de exaurir o tema, passamos a analisar os principais aspectos da decisão, iniciando pelo voto prevalecente do ministro Marco Buzzi, cujos fundamentos seguem de forma objetiva a seguir:
(i) a distinção entre as entidades fechadas de previdência complementar, que não visam o lucro, e as entidades abertas de previdência complementar, que buscam o lucro, conforme posicionamento sedimentado nos precedentes da Súmula 563 do STJ1;
(ii) a impossibilidade de realização de operação financeira com participantes nos mesmos moldes realizados por instituições financeiras, diante das características de associativismo e mutualismo inerentes aos Fundos de Pensão, uma vez que os valores alocados no plano de benefícios pertencem à massa de participantes diante de sua solidariedade;
(iii) a necessidade de reversão resultado superavitário em prol de participantes nos termos do art. 20 da L 109/2001, uma vez que os investimentos da entidade não podem ensejar crescimento, pois o patrimônio pertence aos participantes;
(iv) a existência de determinação liminar de suspensão do art. 29 da Lei nº 8.177/1991 em ação direta de inconstitucionalidade (ADI 504-9/DF) demanda a aplicação de jurisprudência favorável à tese de equiparação das entidades com instituições financeiras somente até 18.12.1991;
(v) a submissão das EFPC a Lei de Usura (Decreto nº 22.626/1933), com limitação de estipular contratos com taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal e contabilizar juros sobre juros para cobrança;
(vi) a possibilidade de empréstimo de dinheiro entre pessoas físicas ou pessoas jurídicas, com limitação as regras gerais contidas no Código Civil de 2002;
(vii) a inaplicabilidade das regras excepcionais previstas na MP 1963-17/2000 e posterior MP 2.170-36/2001, diante de sua aplicação para operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional;
(viii) a aplicação de encargos financeiros expressamente previstos na regulamentação não ficam prejudicados, tais quais a instituição de cláusulas de alienação fiduciária do imóvel objeto do financiamento; contratação de seguro com cobertura de Morte, Invalidez Permanente e Danos Físicos ao Imóvel (DFI); taxa adicional de risco e taxa de administração aludidas;
(ix) a limitação do volume de realização de operação financeira com participantes em 15% da carteira de investimentos do fundo de pensão, para minimização de risco;
(x) a não equiparação entre as entidades fechadas de previdência complementar e as entidades abertas de previdência complementar, como estabelece a LC 109/2001.
Com o maior respeito às posições diferentes, em nossa visão, o voto vencedor adotou premissa equivocada ao definir que a controvérsia diz respeito à “possibilidade de entidade fechada de previdência privada atuar como instituição financeira e, consequentemente, nas relações creditícias mantidas com seus beneficiários, cobrar juros capitalizados, em qualquer periodicidade”.
O cerne do julgamento não é a atuação de fundo de pensão como instituição financeira, mas sim a possibilidade ou não de cobrança de juros capitalizados, na forma da legislação e regulamentação própria do sistema, em contratos de mútuo celebrados com participantes.
As EFPC, bem como os seus órgãos reguladores (o Conselho Nacional de Previdência Complementar – CNPC e o Conselho Monetário Nacional – CMN, este no que tange aos investimentos dos Fundos de Pensão) e órgão fiscalizador (Superintendência Nacional de Previdência Complementar – PREVIC) são partes integrantes do Sistema Financeiro Nacional2. Conforme descrito na exposição de motivos da LC 109/2001, Fundos de Pensão são verdadeiros vetores de desenvolvimento econômico e social do País.
Mas isso não quer dizer que as EFPC operam no mercado na qualidade de instituição financeira. Em verdade, a pactuação de juros capitalizados em contratos de empréstimos celebrados por entidades de previdência privada encontra fundamento de validade em dispositivo da Constituição Federal – para que as EFPC mantenham planos com “reservas que garantam o benefício contratado” art. 202, caput – e regras da própria LC 109/01 e não mais na equiparação às instituições financeiras, prevista no revogado art. 29 da lei 8.177/91.
Deve-se admitir e compreender que a atividade de capitalização de reservas garantidoras engloba operações financeiras com participantes em razão de legislação e regulamentação próprias, que devem ser atendidas quando da execução do contrato, sob risco de prejudicar o equilíbrio financeiro e atuarial dos planos de benefícios e, por consequência, a finalidade precípua do sistema de previdência complementar: honrar o dever fiduciário, gerando resultados capazes de pagar os benefícios pactuados com os participantes e seus dependentes.
O empréstimo celebrado entre EFPC e participante não pode ser compreendido como programa de natureza assistencial, em razão das características associativa, solidária e mutualista dos fundos de pensão. Esse racional – adotado no voto vencedor - gera uma distorção, pois tende a determinar uma transferência de riquezas entre participantes. Os participantes que contratam empréstimos “ganhariam” valores em detrimento daqueles que não contratam empréstimos. Veja que os § 1º e 2º do art. 763 da LC 109/01 vedam os empréstimos assistenciais, assim considerados “aqueles em que o rendimento situa-se abaixo da taxa mínima atuarial do respectivo plano de benefícios”.
O regime de custeio por capitalização previsto na Constituição Federal pressupõe a possibilidade de juros capitalizados a cada mês, como se pretenda ocorra com qualquer investimento. A carteira de empréstimos de Fundos de Pensão é um investimento das reservas garantidoras, como se infere do parágrafo único do art. 71 da LC 109/2001, que autoriza expressamente a realização de operações financeiras entre a EFPC e seus participantes, incluindo-se a contratação de mútuos onerosos, devidamente regulados, como se disse, pelo Conselho Monetário Nacional (atualmente pela Resolução 4.994/22).
O argumento pautado na ausência de finalidade lucrativa das EFPC, em nossa opinião, também não encontra amparo: nos parece evidente que a realização de operação financeira em padrões de mercado não representa, de forma alguma, o rompimento da finalidade não lucrativa dos fundos de pensão. Observe-se que, em geral, o mercado oferece taxas muito mais elevadas que as carteiras de empréstimos dos Fundos de Pensão. Em verdade, deve-se prestigiar o essencial: o equilíbrio financeiro e atuarial dos planos de benefícios e, por consequência, de toda coletividade abrangida, que será contemplada com pagamento de benefícios complementares fruto de operações de investimento realizadas com os aportes efetuados por participantes e patrocinadores.
Dito de outra forma: ausência de finalidade lucrativa não justifica uma gestão ineficiente de recursos, a permitir a concessão de empréstimos sem que haja efetiva rentabilidade para o plano de benefícios (que pertence à coletividade).
Parece-nos que os fundamentos apresentados no voto vencido da Ministra Maria Isabel Gallotti atenderiam de forma mais adequada ao norte principiológico determinado pelo legislador constituinte. Confiram-se os fundamentos legais:
(i) a Lei 8.177/1991 pretendeu expressamente a equiparação das entidades fechadas de previdência complementar às instituições financeiras quando da operação com participantes;
(ii) a existência de jurisprudência divergente do STJ no tocante a equiparação de fundo de pensão com instituição financeira no período de vigência do art. 29 da Lei 8.177/1991;
(iii) há a autorização da LC 109/2001 para realização de operações financeiras entre EFPC e seus participantes, com regulamentação pelo CMN;
(iv) o princípio fundamental de manutenção do equilíbrio financeiro e atuarial dos planos de benefícios administrados por entidades abertas ou fechadas devem nortear as regras para realização de operações financeiras com o patrocinador, participantes e assistidos;
(v) a distinção entre entidades fechadas de previdência complementar e entidades abertas de previdência complementar, especialmente para obtenção de lucro, não impede operações financeiras com seus participantes e assistidos no caso de concessão de empréstimos ou financiamentos com previsão capitalização mensal de juros;
(vi) as entidades fechadas de previdência complementar e entidades abertas de previdência complementar apresentam a mesma função: “administrar os recursos das contribuições dos participantes, assistidos e patrocinador, as quais, acumuladas sob o regime de capitalização, ao longo de toda a relação contratual, irão constituir as reservas financeiras destinadas a assegurar os pagamentos dos benefícios oferecidos”;
(vii) o resultado positivo do plano de benefícios de EFPC será apurado e utilizado em prol da massa de participantes, conforme determinação do conselho deliberativo, em atendimento as normas do CNPC, diferentemente dos resultados apresentados por e entidades abertas de previdência complementar;
(viii) as entidades fechadas de previdência complementar de fato não constituem instituições financeiras, o que não altera o fato de integrarem o Sistema Financeiro Nacional, possuindo regime jurídico próprio para tal;
(ix) o Conselho Monetário Nacional, na qualidade de órgão regulador do Sistema Financeiro Nacional, detém competência para dispor sobre as operações realizadas por EFPC;
(x) o art. 71 da LC 109/2001 autoriza legalmente a realização de operações financeiras com participantes, sendo certo que o mesmo é disciplinado pela Resolução CMN 4.661/2018 (atual Resolução 4.994/2022), sem qualquer limitação imposta no que se refere a cobrança de juros, assegurada a rentabilidade superior a taxa mínima atuarial ou índice de referência;
(xi) os programas assistenciais de natureza financeira previstos na Lei 6.435/1977 não se confundem com as operações com participantes previstas no art. 71 da LC 109/2001;
(xii) os encargos financeiros cobrados pelas EFPC ainda são inferiores aos praticados por instituições financeiras, que de fato visam lucro;
(xiii) aplica-se as regras da MP 1.963-17/2000 às EFPC quando das operações financeiras com participantes.
O sistema de previdência complementar, especialmente os profissionais que atuam no ambiente contencioso que defendem os Fundos de Pensão, devem perseguir a solução jurídica que atende ao regime jurídico próprio das EFPC, defendida de forma consistente no voto vencido. É preciso uma atuação sólida, capaz de demonstrar que a imposição de limitações judiciais para realização de operações financeiras com participantes de planos de benefícios não atende aos anseios constitucionais do regime de previdência complementar. Para os empréstimos em curso, o atual entendimento do STJ poderá gerar perdas para os planos de previdência e a prevalência do decisum acabará por inviabilizar as carteiras de empréstimos dos Fundos de Pensão, pois serão incapazes de rentabilizar as reservas, que deverão ser usadas para pagar os benefícios complementares.
Não há dúvida que a estreita divergência existente no âmbito do próprio STJ confere espaço para que os operadores de direito fomentem o debate e busquem a consolidação de entendimento capaz de, verdadeiramente, prestigiar a proteção das reservas contidas nos planos administrados pelas EFPC e, por consequência, do patrimônio dos participantes, assistidos e beneficiários.
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1 Código de Defesa do Consumidor é aplicável às entidades abertas de previdência complementar, não incidindo nos contratos previdenciários celebrados com entidades fechadas. (SÚMULA 563, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 24.02.2016, DJe 29.02.2016)
2 Informações retiradas do sítio eletrônica do Banco Central, em consulta realizada 14.07.2022, as 16:59: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/sfn
3 Confiram-se:
Art. 76 (...)
§ 1º Os programas assistenciais de natureza financeira deverão ser extintos a partir da data de publicação desta Lei Complementar, permanecendo em vigência, até o seu termo, apenas os compromissos já firmados.
§ 2º Consideram-se programas assistenciais de natureza financeira, para os efeitos desta Lei Complementar, aqueles em que o rendimento situa-se abaixo da taxa mínima atuarial do respectivo plano de benefícios.