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Recuperação judicial de produtor rural e a reforma de 2020

Não obstante às diversas controvérsias que cercam a recuperação judicial de produtor rural que ainda merecem atenção, em especial com relação aos créditos sujeitos ao procedimento, estão em evidência as alterações legislativas que reconhecem a legitimidade para a propositura do pedido.

13/7/2022

Em recente julgamento a Segunda Seção do STJ, por unanimidade, deu provimento ao REsp 1905573/MT (2020/0301773-0) e ao REsp 1947011/PR (2021/0204775-4), ambos afetados ao regime de processos repetitivos, para reconhecer a possibilidade do deferimento do processamento da recuperação judicial de produtores rurais. 

Muito embora o tema já tenha sido objeto de enfrentamento em outras oportunidades pelo Superior Tribunal de Justiça contando, inclusive, com jurisprudência uniforme nas Turmas de Direito Privado da Corte, restou aprovado o tema repetitivo 1.145, o qual prevê que: “Ao produtor rural que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos, é facultado requerer a recuperação judicial, desde que esteja inscrito na Junta Comercial no momento em que formalizar o pedido recuperacional, independentemente do tempo de seu registro”. 

A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), entidade sindical de grau superior e âmbito nacional, que participou do julgamento como amicus curiae, defendeu como injusta e incorreta a ideia de que o instituto da recuperação judicial serve apenas aos produtores rurais mal-intencionados com objetivo abusivo de descumprimento de obrigações. Assim, afirmou que “a agropecuária brasileira é a atividade produtiva nacional que vem sustentando bravamente a economia, mas também sofre diretamente os efeitos de crises econômicas e de variações climáticas, necessitando, dessa forma, de proteção normativa e oportunidades de recuperação, quando necessário”. Em conclusão, a CNA manifestou-se favoravelmente a “adequação da interpretação jurídica e econômica que permite ao produtor rural requerer, em momento de dificuldade financeira, a recuperação judicial, de maneira a manter sua atividade produtiva e, por consequência, contribuir para o equilíbrio da economia brasileira”. 

Por outro lado, a Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), que também participou do julgamento como amicus curiae, registrou que o exercício de atividade regular a que faz menção o art. 48, caput, da lei 11.101/05 (antes da entrada em vigor da lei 14.112/20) se refere à atividade da pessoa jurídica e, portanto, devem ser consideradas apenas as atividades exercidas após a inscrição no Registro Público de Empresas. Nesse sentido, ressaltou os elevados custos para a concessão de crédito em decorrência dos riscos a serem considerados pela “mudança substancial do status jurídico do produtor rural (e do consequente regime jurídico a que ele se submete) no curso da relação contratual”. Em suma, conclui pela necessidade de se “exigir o registro do empresário rural na Junta Comercial há mais de dois anos, independentemente da comprovação da atividade rural em período anterior ao registro, pois tal expediente foi fruto de inovação trazida com a nova Lei, podendo ser permitida a comprovação por meio de documentos fiscais apenas dos procedimentos de recuperação judicial ajuizados após a alteração normativa”. 

Antes da reforma operada pela lei 14.112/20, o núcleo da controvérsia do tema envolvendo a recuperação judicial do produtor rural cingia na interpretação dos dispositivos legais, especialmente na comprovação do exercício regular da atividade por mais de dois anos (art. 48 da LREF) e do Registro Mercantil na Junta Comercial (art. 51, V da LREF). 

Ao produtor rural está facultado o registro mercantil, não significando, com isso, que este não exerça atividade empresarial regular, conforme se depreende da redação do art. 971 do CC. Ademais, a ausência de registro não impede a qualificação da atividade do produtor rural como empresarial, nem a regularidade dessa atividade, porque aquele que pratica a atividade rural sem registro exerce, indiscutivelmente, atividade regular em face da facultatividade do registro. Portanto, o que se verifica na prática é o exercício regular da atividade rural largamente praticada por pessoas naturais não registradas, principalmente em razão de benefícios tributários. 

Nesse aspecto, acrescenta-se que o registro tem natureza declaratória e não constitutiva, na medida em que não é o registro na Junta Comercial em si que torna o sujeito empresário, mas sim o fato de exercer profissionalmente uma atividade econômica organizada para produzir ou circular bens ou serviços. A legislação, em síntese, criou estímulos para o registro do empresário. Assim, para que cumpra com a exigência do art. 48 da LREF, basta a comprovação de dois anos de atividades anteriores à distribuição do pedido de recuperação judicial, independentemente do tempo de registro Mercantil. Inclusive, a lei 12.873/13 já havia alterada a Lei de Recuperação de Empresas e Falência, incluindo o parágrafo segundo do art. 48, para afirmar os meios de provar de tempo de atividade rural, porquanto não decorre do registro. 

Outro tema que dividiu opiniões em relação à recuperação judicial do produtor rural dizia respeito aos créditos sujeitos ao procedimento. De um lado, a defesa pela submissão das obrigações constituídas antes do registro, de outro, somente as dívidas posteriores.

Em relação a este ponto, embora haja diversos argumentos possíveis de lado a lado, o principal está na impossibilidade de existirem, simultaneamente, dois concursos de credores sobre o mesmo devedor1. 

Essencialmente, para aqueles que sustentavam que somente as dívidas posteriores ao registro se submeteriam ao regime recuperatório da LREF, afirmavam que os contratos firmados anteriormente ao registro ocorreram com alguém que não exercia atividade empresária e que, portanto, estariam submetidos, por direito adquirido, a um regime de insolvência civil2. No entanto, veja-se que na eventual inviabilidade do negócio com a sua derrocada, não será possível criar dois regimes concursais, falência para as dívidas posteriores ao registro e insolvência para as dívidas anteriores ao registro, mormente por se tratar de patrimônio único. É inviável tecnicamente, sobre um mesmo patrimônio, criar dois concursos universais de credores. 

Nesse sentido, na III Jornada de Direito Comercial CJF/STJ, foram editados dois enunciados envolvendo a recuperação judicial de produtor rural. O Enunciado 97 prevê que “o produtor rural, pessoa natural ou jurídica, na ocasião do pedido de recuperação judicial, não precisa estar inscrito há mais de dois anos no Registro Público de Empresas Mercantis, bastando a demonstração de exercício de atividade rural por esse período e a comprovação da inscrição anterior ao pedido”. Ainda, o Enunciado 96 estabelece que “a recuperação judicial do empresário rural, pessoa natural ou jurídica, sujeita todos os créditos existentes na data do pedido, inclusive os anteriores à data da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis”. 

No que diz respeito à jurisprudência formada anteriormente à reforma introduzida pela lei 14.112/20, se observou, em grande parte, decisões favoráveis à recuperação judicial do produtor rural sem a exigência dos dois anos de registro e permitindo a inserção de créditos decorrentes de obrigações anteriores ao próprio registro. 

Outro elemento que merece destaque e que decorre do posicionamento jurisprudencial que já vinha sendo adotado, principalmente desde 2019, diz respeito a recepção pelo mercado e impacto nos financiamentos agrícolas. De acordo com o parecer da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) “não se observou qualquer recrudescimento ou enfraquecimento dos mecanismos de financiamento da agropecuária no Brasil, bem como não se verificou restrições de crédito ou outras eventuais anomalias para o crescimento do setor. Ao contrário, a cadeia produtiva do agro se adaptou com a ressignificação dos contratos de crédito rural e financiamento e a natural “precificação” pelos agentes econômicos diante da perspectiva da possibilidade de o produtor rural, em situação excepcional de exposição financeira, se valer da recuperação judicial”. 

Nesse contexto, a reforma da LREF de 2020 passou a reconhecer expressamente a legitimidade ao produtor rural pessoa física, assegurando a possibilidade de se valer do instituto recuperatório e, portanto, superando eventual controvérsia jurisprudencial com relação ao tema. De acordo com a nova redação, passa a ser detalhada a forma de comprovação do prazo de dois anos de atividade por meio da apresentação de documentos que comprovem a regularidade, tanto de produtores rurais pessoas naturais quanto de pessoas jurídicas (LREF, art. 48, §§ 2º e 3º). 

Com relação aos créditos sujeitos, a reforma introduziu a regra prevista no §6º do art. 49, para indicar que somente estão submetidos a recuperação judicial os créditos que decorram exclusivamente da atividade rural e que estejam contabilizados nos documentos referidos no art. 48 da LREF. 

Por outro lado, a LREF passou a estabelecer que não se sujeitam ao procedimento recuperatório: (a) créditos sem ligação com o exercício da atividade rural; (b) créditos de recursos controlados, caso já tenha ocorrido a renegociação da dívida na forma do Manual do Crédito Rural; (c) créditos decorrentes da alienação de propriedades rurais dos últimos três anos, bem como respectivos terceiros garantidores; (d) CPR com liquidação física. 

Não obstante às diversas controvérsias que cercam a recuperação judicial de produtor rural que ainda merecem atenção, em especial com relação aos créditos sujeitos ao procedimento, estão em evidência as alterações legislativas que reconhecem a legitimidade para a propositura do pedido, assim como a manutenção do posicionamento adotado pela Corte Superior, representando avanços que importam em maior segurança jurídica e desmitificam a recuperação judicial no âmbito rural, possibilitando sua utilização como verdadeiro meio de superação da crise econômico-financeira e manutenção da atividade viável.

____________

1 Nesse sentido, para Francisco Satiro “ambos os casos me parecem completamente equivocados, mormente por criarem duas esferas obrigacionais e patrimoniais em uma mesma pessoa, o que é inadmissível no ordenamento jurídico brasileiro”, conforme constou no parecer sobre o Caso Terra Forte (Recuperação Judicial do Grupo Terra Forte; TJSP, 1ª Vara Cível do Foro de Campinas/SP, processo de nº 1001471-18.2019.8.26.0568).

2 Este tipo de observação ocorre, por exemplo, no texto de Haroldo Verçosa e Rachel Sztajn ao considerar que: “Essa tese terraplanista procura justificar o favorecimento dos que atuam no agronegócio sem a condição formal de empresário rural, fruto da autonomia privada, no momento em que o navio ameaça soçobrar pela vinda de uma recuperação judicial, chegando-lhes a água pelos joelhos. Daí eles se jogam no barco salva-vidas, que havia sido previsto tão somente para os passageiros empresários, como previsto na legislação especial”. O desenho dado parece permitir uma visão em que se escolhe entre o adimplemento ou a recuperação judicial, enquanto a ausência de mecanismos não levará a outro efeito. (VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc; SZTAJN, Rachel. Os terraplanistas do direito mercantil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/299473/os-terraplanistas-do-direito-mercantil)

André Fernandes Estevez
Diretor executivo da Câmara de Arbitragem da FEDERASUL (CAF). Professor adjunto de Direito Empresarial na PUCRS. Doutor em Direito Comercial pela USP. Sócio em Estevez Advogados.

Diego Fernandes Estevez
Mestre em Direito pela PUC/RS. Sócio do escritório Estevez Advogados.

Caroline Pastro Klóss
Mestranda em Direito pela Universidade de Lisboa. Sócia do escritório Estevez Advogados.

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