É interessante notar como as primeiras leituras nos vêm à memória quando nos deparamos com os eventos de nosso ciclo de vida.
Uma das minhas primeiras leituras de direito, com exclusão das obras de obrigatória leitura, que me impressionou fortemente, ocorreu em 1958, quando quarto-anista de direito li Jean Cruet, “A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis”, 1 em que o professor da Sorbonne afirma “Vê-se todos os dias a sociedade reformar a lei; nunca se viu a lei reformar a sociedade”. Esta assertiva me vem à mente quando vemos, no título desta sessão, “A segurança jurídica no século XXI” presa ao “sistema de repartição de poderes”.
O que é segurança jurídica? Resposta simples a esta indagação é a de que ela é a certeza do que estou fazendo certo ou errado de acordo com a lei. E lei é aquilo que está escrito no diário oficial.
Isto nos leva a perguntar “quem faz a lei?”. E a resposta é “o governo”. E aí entramos na questão “o que é o governo”?
Disso partimos então para dizer “governo é aquilo que a lei maior de um país diz que é”. E lei maior de um país, nos dias de hoje, na maioria dos países é a Constituição.
Assim, no Brasil, temos que o nosso país é definido pela Constituição como república formada pela União de seus elementos Estados, Municípios e União Federal, sendo um Estado Democrático de Direito, que tem seus fundamentos enumerados na mesma lei maior, onde se estabelece que “todo o poder emana do povo” exercido por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, na forma estabelecida na Constituição.
A seguir a Constituição enumera os poderes da União, que devem ser independentes e harmônicos entre si, Legislativo, Executivo e Judiciário, aos quais determina suas funções, a saber: ao Legislativo, fazer as leis, ao Executivo dar cumprimento às leis e ao Judiciário dizer se a lei está sendo cumprida ou não.
Isto é o que o cidadão comum entende por lei e por governo, sem haver lido os sofisticados textos que nós, cultores do direito, escrevemos e que aos leigos pouco interessa.
E cidadão comum é o que constitui o povo, de cujo poder nascem as instituições que constituem o governo.
Assim, cabe ao cidadão cumprir as leis, que são feitas pelo Legislativo, postas em prática pelo Executivo e que serão, em caso de dúvidas, esclarecidas, em cada caso concreto, pelo Judiciário.
É o que o mundo era, ou deveria ser, principalmente após a Revolução Francesa, no século XVII que apregoava a igualdade, liberdade e fraternidade.
Hoje, porém, o que temos no século XXI?
Hoje mudou, e muito. Mudaram costumes, concepções, maneiras de ser e de viver. O progresso tecnológico e dos meios de comunicação vieram alterar e estão ainda alterando conceitos e concepções. Privacidade é quase uma quimera, que as redes sociais elevam à categoria de sonho.
Naturalmente, todas essas novidades modicaram e vêm modificando a vida social, e, voltando a Jean Cruet, levam à reforma das leis.
Essa necessidade de reforma das leis diz diretamente respeito à definição dos estados de direito, os quais em sua grande maioria se proclamam democráticos, embora divergências profundas sejam dadas ao conceito de democracia e principalmente aos poderes pelos quais os estados exercem sua função e razão sua existência.
Em nosso país, que adota a repartição dos poderes, como prescrito na Constituição, assistimos nos dias atuais um embate que se acentua em função globalização das ideias, antes restritas a leitura de uns poucos intelectuais e hoje difundidas e mal digeridas, por “soi disantes” intelectuais que procuram trazer ao nosso campo jurídico soluções alheias à nossa estrutura social,
Sofre assim a segurança jurídica em nosso país a influência de novas ideias e as vezes de ideais não tão novos que se refletem na estrutura organizacional dos poderes da União e de seu proceder, gerando insegurança jurídica com reflexos na vida cotidiana da sociedade.
No nosso direito positivo temos insculpido dentre os direitos e garantias fundamentais, o preceito de que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI), consagrada destarte a segurança jurídica.
Como, no entanto, temos nos dias de hoje a harmonia e independência dos poderes? Na verdade, a politização crescente com interesses eleitoreiros e de projeção de imagens pessoais dos integrantes de cada um desses poderes vem minando a certeza quanto ao direito e ao que dispõem as leis em casos concretos.
Fruto, como tem acentuado muitos autores, da constitucionalização de quase todas as matérias e de um sistema constitucional recursal que transformou nossa Suprema Corte em uma 4ª instância, gerou essa insegurança o desproporcional crescimento do número de litígios trazidos aos nossos tribunais, transformando um tribunal de um dos estados de nossa federação, o TJ de São Paulo no recordista mundial de número de processos que lhe são dirigidos, superando o número de 200 mil.
Razão desse extraordinário aumento do número de causas trazido às nossas cortes, o fato de uma feliz iniciativa, a de serem transmitidas ao vivo as sessões de nossas cortes, transmitindo à população o modo de se fazer justiça, haver sido deturpada transformando-se em espetáculo em que a luz dos projetores estimula o anseio de desfrutar da ribalta, alimentando vaidades pessoais. Assim é que hoje muitas vezes se vê é a exibição de erudição de julgadores, com votos quilométricos, relegando ao esquecimento a prática prudente de apenas votar as decisões, dizendo “voto com o relator”, ou “voto com o dissidente”. Aliás a prática nos dias atuais adotada subtrai aos tribunais a sua natureza de colegiado, relevante a observação que faz José Renato Nalini, ex- presidente do TJESP de que, no Japão, a Suprema Corte se reúne a portas fechadas e suas decisões são concisas e do colegiado, não havendo personalismo, sem indicação de autoria dos votos e inexistindo referência a voto vencido.2
Tendo em vista a segurança jurídica no presente século e sua comparação com o século XX e seus reflexos na repartição dos poderes, história Tercio Sampaio Ferraz Junior que a teoria jurídica se desenvolvia numa espécie de tensão entre o legislador e o juiz, em que teria predominância o papel principal do primeiro, sendo tendo o juiz e a jurisprudência papel secundário como fonte do direito “(o juiz limitado a ser a boca da lei) 3 citando a seguir Teubner para quem a mudança no mundo jurídico deveu-se a quatro fenômenos atuais, a saber:
1º. - O ativismo judicial, que significaria o fim do direito dos códigos e a predominância da jurisprudência;
2º. – Um novo retorno ao direito natural, como argumentação jurídica, que no direito imediatamente posterior à 2ª grande guerra era mais voltado a contrapor - se ao totalitarismo;
3º. – A mudança dos movimentos sociais de protesto, passando a centrar-se menos contra o estado para focalizar as instituições econômicas e outros sistemas do mundo privado;
4º. – A transformação dos tipos de constituição que deixam de ser políticas para ceder terreno ao papel de constituição econômica, do trabalho, da previdência e outros sistemas sociais.
Apontada a sequência histórica, cabe-nos agora avaliar as repercussões do posicionamento dos tribunais face às constituições quais como a nossa, em que estão solidamente definidas as distinções entre os poderes.
Para isso invocamos o posicionamento de Ives Gandra da Silva Martins, que conceitua o consequencialismo como “...a adaptação das decisões às suas consequências na realidade para as quais são destinadas com flexibilização do entendimento teleológico das normas, na busca de uma justiça transcendente” 4 5, preocupando-se a seguir com a politização do Judiciário, sua decorrência como também do neo-constitucionalismo, que não poucas vezes invade a competência própria dos outros poderes, judicializando a política, com a nefasta busca das correntes minoritárias dirigindo-se ao Judiciário para obter “forma de suprir a sua incapacidade de fazer prevalecer suas opiniões ou ideologias” 6.
Nisto vemos, como Ives, não albergar a nossa Constituição esse ativismo.
Para nós, significa ele legislar sem mandato, que o povo delega a seus representantes que têm por missão fazer as leis, normas gerais que regem a vida em comum de todos, não somente cidadãos, definidos estes como eleitores, mas a qualquer pessoa, física ou jurídica que tenha passagem ou operações no Brasil, neles incluídos também os analfabetos e as crianças, incluídos os recém-nascidos.
De se atentar ainda para as consequências, e agora não falamos de consequencialismo, mas sim do resultado de se negar ao povo, detentor máximo do poder em nossa nação, o direito de ver cumpridas as suas determinações pelo voto direto, estabelecidas para nomear seus legisladores e mesmo para o executivo.
Não é, aliás, de se ignorar manifestações mais frequentes de se cogitar alterações nas regras de composição da magistratura, inclusive do STF, com limitação temporal de sua judicatura, ao mesmo tempo em que se colocam também posições de se tornar eletiva e por prazo determinado a magistratura.
Finalmente, recordemo-nos das palavras de Eros Roberto Grau, ministro do STF (04/10) que preocupado com a segurança jurídica no nosso país, escreveu em 2013, “O Poder Judiciário aqui, hoje, converte-se em um produtor de insegurança” 6, ressaltando que “Enquanto a jurisprudência dos nossos tribunais estiver fundada na ponderação entre princípios, na arbitrária formulação de juízos de valor, a segurança jurídica estará sendo despedaçada”.7
Volvendo a Jean Cruet, entendemos que cabe à sociedade reformar a lei, e aos juízes apenas dizê-la. A reforma das leis se faz pela sociedade, vale dizer, pelo povo, em um sistema democrático, através de legislativo pelo povo eleito, jamais por decisões judiciais.
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1 Livraria Progresso Editora, Salvador, 1956 – A obra teve sua primeira edição publicada pela Flammarion, Paris, 1908 e no mesmo ano publicada sua tradução para o português pela Livraria Bertrand . Lisboa
2 Atormentar o STF – Correio Popular, Campinas, 24/04/2022, P.A2.
3 Consequencialismo, Neoconstitucionalismo e Argumentação Jurídica “in” Consequencialismo no Poder Judiciário, coord. Ives Gandra da Silva Martins, Gabriel Chalita e José Renato Nalini. Ed. Foco, Jurídico Ltda., SP, 2019, p.111.
4 Consequencialismo Jurídico e a Constituição de 1988 “in” Consequencialismo no Poder Judiciário cit. p.
5 .
6 IVES....op. cit. p. 18
7 EROS ROBERTO GRAU, Por Que Tenho Medo dos Juízes (a interpretação /aplicação do direito e os princípios). Malheiros Editores, SP, 2013, p.18.