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Burnout: o maior desserviço para a medicina dos últimos 50 anos

O burnout “grudou” como uma dessas colas instantâneas na pele do senso comum e resignadamente reconheço que ali vai ficar ainda por um bom tempo.

11/7/2022

Escrevo este artigo partindo do princípio que você acredita que o burnout é uma doença, portanto preciso apelar para a sua paciência para que o leia até o final.  O burnout “grudou” como uma dessas colas instantâneas na pele do senso comum e resignadamente reconheço que ali vai ficar ainda por um bom tempo. Entretanto, burnout não é apenas o maior desserviço para a medicina dos últimos 50 anos, mas, também, para a opinião pública. 

Estabeleço meio século de prazo, pois esse desserviço só compete com o do famigerado “transtorno das personalidades múltiplas”, um sucesso epidêmico nos EUA nos anos 70 e 80 que depois revelou-se uma grande farsa e caiu no esquecimento (não de todo mundo, claro, ainda há aqueles que acreditam nessa ficção). Para não me estender sobre este tópico, se você tiver interesse em dois assuntos (até onde pode chegar a credulidade humana e o “estrago” que a crença numa falsa doença pode produzir) assista ao interessante documentário “As 24 personalidades de Billy Milligan”, um desses casos de personalidades múltiplas que em dado momento chegou a ganhar repercussão nacional nos EUA.  

Voltando ao assunto em pauta, não é possível entender e conversar sobre burnout sem dar um “mergulho” para ver como essa teoria foi construída e qual é sua consistência. Todo mundo fala sobre burnout, mas poucos se lembram do MBI (Maslach Burnout Inventory). O burnout, hoje, é definido e “diagnosticado” por esse questionário com 22 perguntas, divididas em três blocos e considerado sinônimo de burnout. Maslach, a criadora e detentora dos direitos autorais do MBI, e Schaufeli, o principal teórico da área, dizem que “na prática, o conceito de burnout coincide com o MBI e vice-versa”. Os blocos correspondem a EE (exaustão emocional), DE (despersonalização) e RP (realização ou eficácia profissional).  O respondedor atribui notas conforme a frequência dos sentimentos descritos em cada quesito. 

Não poderei explicar todos os detalhes desse questionário, mas o que acontece é que o MBI “diagnostica” burnout em toda e qualquer pessoa a que se aplique esse instrumento. Mesmo que você responda que se sentiu sobrecarregado de trabalho apenas uma vez no ano, receberá o “diagnóstico” de “burnout leve”. Aqui temos o primeiro absurdo dessa “teoria”: através do MBI, você não poderá concluir que “não tem burnout” - é a primeira e única “doença” da história da medicina para a qual não existe critério de exclusão. E se todo mundo tem a “doença”, ninguém tem e seu conceito perde toda a credibilidade. Ou não? Mas este é apenas o início do nosso “mergulho”. 

As questões apresentadas pelo MBI são muito comuns na clínica psiquiátrica cotidiana – ou seja, correspondem a queixas que nós, psiquiatras, ouvimos todos os dias. Ocorre que Maslach acredita que as perguntas de seu questionário têm relação causal específica com o trabalho. Este é o segundo grande absurdo. Ao ignorar que essas perguntas podem receber respostas positivas em dezenas de transtornos psiquiátricos, sua ferramenta acaba englobando todos eles e os rotula como “burnout”, perfazendo cerca de 30 categorias diagnósticas da Psiquiatria. Quando a frequência de experiências “negativas” é baixa, rotula-se como burnout incontáveis experiências da vida cotidiana, que não chegam a caracterizar um transtorno mental. Ou seja, vão todas para o “saco sem fundo” do MBI, atendendo ao dito popular “caiu na rede é peixe” - aliás, “caiu no MBI é burnout”. 

Haveria ainda muita coisa a comentar sobre essa ferramenta, mas, se sairmos do âmbito desse questionário e dirigirmos nosso olhar para a clínica, podemos recorrer a Schaufeli, que escreveu a “bíblia” do burnout (The Burnout Companion to Study and Practice). O livro tem prefácio de Maslach, que ali registrou: “Esta é a única fonte verdadeira a que você deve recorrer”. Schaufeli apresenta uma compilação dos sintomas de burnout na literatura internacional. A lista resulta em inacreditáveis 132 sintomas. Casualmente, identifiquei mais 8, o que me leva a perguntar: como pode existir uma síndrome, com 140 sintomas? Com 140 sintomas, atribuindo burnout a todo mundo, englobando 30 diagnósticos psiquiátricos e comprometendo praticamente todos os órgãos e sistemas funcionais do corpo humano, a síndrome de burnout não caracteriza nada, senão um conjunto muito confuso de muitas coisas.

O grande desserviço que isso tudo traz para a medicina começa com a própria tentativa de inserção de uma falsa doença na nosografia médica, que, por sua vez, abre as portas para ilimitadas possibilidades de iatrogenia. Esta estranha palavra significa ato, conduta ou orientação médica que causa dano em vez de promover a cura e a saúde. Tanto sujeitos passageiramente aborrecidos com o trabalho quanto outros com depressão grave com risco de suicídio serão indistintamente rotulados com “burnout”, que não tem orientação terapêutica própria – consequência, claro, da confusão reinante nesse território. Alguns que não precisam de medicações serão medicados, outros, que exigiriam condutas terapêuticas bastante específicas e urgentes, terão seus casos varridos para baixo do tapete do burnout. E dá-lhe iatrogenia! 

Em tempo: se você não se convenceu, leia com seus próprios olhos no site oficial da OMS. Ali está escrito, em duas sentenças, que burnout não é uma condição médica, doença ou condição de saúde. Embora esclarecendo que não é uma doença, a necessidade de publicar essa nota mostra que em maio de 2019 a OMS já havia se dado conta de que havia produzido uma grande confusão. E confusão é sinônimo de burnout. 

Estevam Vaz de Lima
Psiquiatra e psicanalista e autor do livro “Burnout: a doença que não existe”.

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