O ano da nossa maioridade
Luís Roberto Barroso*
I. Os dezoito anos da Constituição de 1988
Em 5 de outubro deste ano, a Constituição brasileira completou dezoito anos. A data foi pouco comemorada e, em muitos ambientes, passou despercebida. Alguém poderia lembrar que a indiferença, em certas situações, é o contrário do amor. Mas este não parece ter sido o caso aqui. Justamente ao revés, a Constituição e o constitucionalismo se incorporaram de tal modo à rotina da vida que já não despertam maior emoção. Viramos uma democracia constitucional e já não é preciso ufanar-se disso a cada hora.
De fato, a Constituição cumpriu, e muito bem, o principal papel que cabe a um documento dessa natureza: organizar e limitar o poder e assegurar o respeito aos direitos fundamentais. O fato de não termos alcançado, ainda, o patamar desejado em múltiplos domínios não infirma o êxito no caminho percorrido. Além disso, foram dezoito anos de estabilidade institucional, em meio a tormentas diversas.
O grande problema decorrente do Texto de 1988 foi a excessiva constitucionalização de temas que deveriam ter sido relegados à legislação infraconstitucional, isto é, para a deliberação do Congresso Nacional. De tal fato resultou que boa parte da política ordinária, também referida como processo político majoritário, passou a se desenvolver, não por leis, mas por modificações à Constituição. A conseqüência inevitável é o número espantoso de emendas constitucionais que povoam a vida brasileira: mais de cinco dezenas em menos de duas décadas. Não obstante isso, o núcleo essencial da Constituição permaneceu o mesmo, conservando sua identidade histórica.
II. O Supremo Tribunal Federal em 2006
II.1. Mudanças na Presidência e na composição da Corte
Em maio desse ano, assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal, em substituição ao Ministro Nelson Jobim, a Ministra Ellen Gracie Northfleet. A bela cerimônia de posse e a ampla cobertura dos meios de comunicação deram a dimensão adequada ao fato de uma mulher – que chegara ao cargo de Ministra por mérito próprio e virtude pessoal – tornar-se presidente da corte. Além disso, ao longo do ano, passaram a integrar o tribunal dois novos Ministros nomeados pelo Presidente da República: Enrique Ricardo Lewandowski, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e professor titular de Teoria Geral do Estado da Universidade de São Paulo; e Cármen Lúcia Antunes Rocha, procuradora do Estado de Minas Gerais e professora de direito constitucional da PUC/MG. Os dois nomes, representativos da prática profissional e da academia, foram bem recebidos pela comunidade jurídica nacional.
II.2. Alguns casos marcantes
Não se pretende aqui inventariar o longo elenco de decisões importantes tomadas pelo STF em 2006. Faz-se apenas uma exemplificação sumária de alguns dos principais pronunciamentos da corte. Certamente merece destaque o acórdão, firmado por 9 votos a 1, que declarou constitucional a Resolução do Conselho Nacional de Justiça que vedava o nepotismo, isto é, a nomeação para cargos de confiança e funções gratificadas, no âmbito do Poder Judiciário, de parentes até o terceiro grau de magistrados e outros servidores da Justiça. Tal decisão superou a visão tradicional do princípio da legalidade, pelo qual o administrador somente poderia atuar na hipótese de autorização ou determinação constante de lei. O STF chancelou, neste caso, a importante tese de que os órgãos da Administração estão vinculados diretamente à Constituição e podem atuar com base nela, mesmo nas hipóteses de inércia ou omissão inconstitucional do legislador.
Em outra decisão de grande visibilidade, o STF entendeu ser aplicável às atividades e serviços bancários o Código de Defesa do Consumidor, excluindo o entendimento de que os bancos estariam sujeitos tão-somente à regulação do Banco Central. Houve também manifestações importantes do tribunal em questões associadas ao devido processo legal e à proteção dos direitos fundamentais, nos processos de perda de mandato parlamentar. A corte entendeu, com razão, que os direitos à ampla defesa e ao contraditório não poderiam ser derrogados por deliberação das casas do Congresso Nacional. Submeteu, assim, à Constituição, o ímpeto das paixões políticas e das maiorias eventuais.
II.3. A sobrecarga de trabalho
Merece registro e reflexão, igualmente, o que o Supremo Tribunal Federal não julgou ao longo de 2006, apesar das estatísticas espantosas do volume de trabalho. Dentre eles, por exemplo, casos relacionados com direitos fundamentais, como a legitimidade ou não da interrupção da gestação de fetos anencefálicos ou a constitucionalidade ou não das pesquisas com células-tronco; ou com a separação de Poderes, como a definição da validade ou não da condução da investigação criminal pelo Ministério Público; ou com a divisão de poderes entre os entes federativos, como a determinação de quem é o poder concedente em matéria de saneamento. E muitas outras mais, preteridas em meio a um caudaloso número de processos, cuja ida para a suprema corte carece de qualquer grau de racionalidade.
A triste verdade é que o STF julga de menos porque julga demais. Enredado em um inacreditável varejo de dezenas de milhares de processos, não tem um mecanismo satisfatório para a seleção adequada do que é importante e do que é desimportante. Desempenha, assim, um impróprio papel de tribunal de terceira ou de quarta instância, revendo miudezas variadas em casos que deveriam ter se encerrado no segundo grau de jurisdição. Consciente ou inconscientemente, o tribunal é vítima de uma visão distorcida e tradicionalíssima no Brasil, pela qual quem tem mais competências tem mais poder. Como inevitável, a perspectiva quantitativa afeta a qualidade, a coerência e a visibilidade das decisões.
II.4. A luz no fim do túnel
No apagar das luzes de 2006, o Congresso Nacional aprovou duas medidas que repercutem no controle do STF sobre sua própria carga de trabalho: a súmula vinculante e a repercussão geral (aprovada na Câmara e remetida ao Senado). Não é o caso de aqui se explorarem as tecnicalidades dessas duas inovações, salvo para registrar que numa sociedade de massas não é possível escapar de figuras que permitam simplificar o processo decisório, abreviar o procedimento e tratar com distinção o que é verdadeiramente importante. Em médio prazo, duas inovações se tornarão inevitáveis no país: o respeito mais amplo aos precedentes dos tribunais, como forma amadurecida de se obter segurança jurídica, isonomia e eficiência; e a escolha pelo próprio Supremo Tribunal Federal dos casos que, por sua relevância e transcendência, merecem ser conhecidos pela corte. A jurisdição constitucional, no mundo todo, se exerce sobre algumas poucas centenas de casos, nunca mais de quinhentos. É ilusória a crença de que a mais alta corte serve melhor o país apreciando mais de cem mil casos por ano.
III. Eleições e reforma eleitoral
Neste ano, foi reeleito o Presidente Luís Inácio Lula da Silva, em segundo turno, para um novo mandato. No plano legislativo, renovaram-se a Câmara dos Deputados e um terço do Senado. Menos de vinte e quatro horas depois de encerrada a votação, já se sabia os resultados eleitorais de todos os níveis, em todo o país. É impossível não exaltar a condução do processo, com o horário gratuito de acesso ao rádio e à televisão, a organização eficiente da Justiça Eleitoral e a apuração extraordinariamente célere e confiável.
Nada obstante isso, a Reforma Política é tema central de todas as reflexões do período pós-eleitoral. De fato, há consenso de que, nessa matéria, o Brasil precisa de mudanças extensas e profundas. O objetivo principal de qualquer proposta sobre o assunto deve ser o de promover legitimidade democrática, governabilidade e virtudes republicanas. Nesses três temas se incluem a maior autenticidade dos partidos políticos, o desenvolvimento de mecanismos institucionais que facilitem a formação de maiorias parlamentares de sustentação política do governo, e a preservação do interesse público, da ética e da integridade dos agentes estatais.
Uma das propostas em circulação no ambiente acadêmico, elaborada pelo Instituto Ideias, recomenda, para daqui a oito anos, um novo sistema de governo: o semipresidencialismo. Para o sistema eleitoral, o voto distrital misto. E, em relação ao sistema partidário, uma fórmula que prestigie a fidelidade partidária e evite a pulverização excessiva (www.institutoideias.org.br). Independentemente das escolhas específicas, as múltiplas idéias sobre a Reforma Política precisam ser sistematizadas de maneira acessível e levadas ao debate público. Ah, sim, uma delas já foi rejeitada: a que pregava a conveniência da convocação de uma assembléia constituinte.
IV. Conclusão
Estes alguns dos temas que marcaram o debate constitucional em 2006. Há inúmeras discussões inconclusas e a agenda para 2007 está repleta. Em meio à aflição de tudo o que resta por fazer, é indispensável uma breve pausa para olhar para trás e celebrar o que foi feito, o longo caminho percorrido até aqui. No ano em que a Constituição chega à sua maioridade, o Brasil está muito melhor do que há dezoito anos atrás: amadurecido, estável institucionalmente e repensando a si próprio. É menos do que se gostaria, mas não é pouco. Um brinde ao futuro.
____________
*Advogado do escritório Luís Roberto Barroso & Associados e Professor titular de direito constitucional da UERJ
____________