Em junho de 2022, a Segunda Seção do E. STJ, no julgamento dos EREsp 1.886.929 e 1.889.704, pacificou entendimento segundo o qual o rol da ANS é, em regra, taxativo, não sendo a operadora “obrigada a arcar com tratamento não constante do Rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol”. Essa decisão prevê, em seguida, alguns requisitos para que tal regra seja mitigada.
A primeira observação que se faz é que, embora tal precedente seja um importante norte interpretativo para as Cortes inferiores, não foi proferido em sede de recursos repetitivos, não possuindo, portanto, força vinculante em sentido estrito, tal como ocorre na hipótese estabelecida no artigo 927, inciso III, do Código de Processo Civil, devendo, pois, prevalecer o princípio do livre convencimento motivado (artigo 371 do Código de Processo Civil). Prova disso é que há decisões ocorridas após o precedente estabelecido pela Segunda Seção, no âmbito do próprio STJ, que seguem aplicando o entendimento segundo o qual o rol da ANS seria meramente exemplificativo1.
Em todo o caso, mesmo partindo do pressuposto de que o rol da ANS é dotado de taxatividade mitigada, tal como decidiu o STJ, em 1º de julho de 2022 entrou em vigor a Resolução Normativa 539/22 da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que amplia o tratamento para pacientes com Transtorno do Espectro Autista (TEA), Síndrome de Down ou Paralisia Cerebral diagnosticados com transtornos globais de desenvolvimento (CID F84). Assim, passou a ser obrigatória a cobertura para qualquer método ou técnica indicado pelo médico para o tratamento do paciente que tenha um dos transtornos enquadrados na CID F84.
Anteriormente, o Anexo I da RN 469 de 9/7/21, da ANS, já previa a “Cobertura obrigatória em número ilimitado de sessões para pacientes com transtornos específicos do desenvolvimento da fala e da linguagem e transtornos globais do desenvolvimento”, sendo que, no rol de procedimentos constante no Anexo I da referida Resolução, estão previstas “consulta com fisioterapeuta, consulta com psicólogo e consulta com fonoaudiólogo”. Contudo, era possível a interpretação de que se previa, de forma expressa, apenas as terapias isoladas, e não um método ou técnica que combinasse de forma sistematizada a imprescindível multidisciplinaridade dialógica de terapêuticas indicadas para pacientes com diagnósticos mais graves de transtornos globais de desenvolvimento, como preveem os métodos ABA, Denver, Treini e MIG, para citar alguns.
Dentro deste raciocínio, sempre foram frequentes as negativas de cobertura, chanceladas por parte do Judiciário, com base na taxatividade do rol da ANS, que não previa expressamente algumas técnicas específicas. As negativas ocorridas com base em tal fundamento, após a consolidação do entendimento da Segunda Seção do STJ, tenderiam a se aprofundar, dificultando a concessão judicial de alguns tratamentos multidisciplinares. Entretanto, da leitura cuidadosa dos documentos associados à Resolução Normativa 539/22, como a Nota Técnica 1/22, a ANS deixa claro que “o referido Rol, em regra, não descreve a técnica, abordagem ou método clínico/cirúrgico/terapêutico, a ser aplicado nos procedimentos listados nos anexos da RN 465/2021, permitindo a indicação, em cada caso, da conduta mais adequada à prática clínica”.
A liberdade que se confere ao médico quanto à escolha do método ou técnica fica ainda mais evidente a partir da leitura do item 4.10 do voto 657/22 da ANS, o qual destaca expressamente que “o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, em regra, não define a técnica, abordagem ou método clínico/terapêutico, (...) sendo a prerrogativa de tal escolha do profissional assistente, (...) o que garante o livre exercício profissional e inibe possível perda de cobertura obrigatória, em face do risco de não esgotamento da enumeração de todas as técnicas, abordagens e métodos disponíveis e aplicáveis na prática em saúde no Brasil (cognitivo-comportamental, de base psicanalítica, gestalt-terapia, entre outras), técnicas/métodos (Modelo Denver de Intervenção Precoce - ESDM; Comunicação Alternativa e Suplementar - Picture Exchange Communication System - PECS; Modelo ABA - Applied Behavior Analysis; Modelo DIR/Floortime; SON-RISE - Son-Rise Program, entre outros)”.
Assim sendo, não há qualquer dúvida de que houve uma expressa ampliação das regras de cobertura para pacientes com transtornos globais de desenvolvimento, vez que a Resolução Normativa 539/22 da ANS deixa claro que: a) cabe exclusivamente ao médico assistente indicar o tratamento adequado, especificando o método/técnica; b) a cobertura deve ser fornecida em número ILIMITADO de sessões; c) o rol da ANS não define métodos ou técnicas, a fim de evitar possível perda de cobertura obrigatória; d) as operadoras de plano de saúde não poderão negar atendimento a pacientes portadores de transtornos globais do desenvolvimento; e) mesmo que se parta do pressuposto de que o rol da ANS é dotado de uma taxatividade absoluta, não é mais possível utilizar tal fundamento para negar o tratamento de métodos/técnicas que congregam terapias multidisciplinares.
Pode-se concluir, portanto, que nos casos específicos de negativa de cobertura para métodos ou técnicas prescritas para pacientes diagnosticados com transtornos globais de desenvolvimento, não terá impacto a decisão da Segunda Seção do STJ, vez que a ANS deixou claro que o seu rol não prevê métodos ou técnicas, cabendo a sua escolha unicamente ao médico assistente. Caso a negativa por parte do plano de saúde ocorra, o Judiciário deverá coibir perdas de cobertura obrigatória, preservando, assim, a liberdade de escolha do médico.
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1 AgInt no REsp n. 1.994.389/CE, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 20/6/2022, DJe de 22/6/2022.