O Brasil adota como base estrutural a monogamia, por influências enraizadas ao longo da história, principalmente religiosas. No entanto, vive-se uma nova fase social, a família como instituição passa por alterações significativas, pelas ideias de desconstrução e liberdade afetiva e corporal, onde o fundamento principal é a liberdade sexual.
Jürgen Habermas, ao definir o mundo da vida (Lebenswelt) como espaço do agir comunicativo em que os autores situam seus pronunciamentos sob aspectos temporais e históricos, já ressaltava a influência de três elementos estruturais: cultura, sociedade e pessoa. Isto porque para o autor, haveria uma correlação direta entre a ação comunicativa e o mundo da vida, que reproduz estruturas simbólicas da cultura, da sociedade e das pessoas. Sob a perspectiva da evolução do direito de família, pode-se dizer que a noção tradicional da família em que se fundamentou nosso Código Civil, por exemplo até então assegurava uma coesão e integração social que necessariamente veio se rompendo com as novas reconfigurações da estrutura familiar.
No entanto, toda essa liberdade afetiva se esbarra na Constituição Federal, mais especificamente no art. 226, § 3º, que afirma ser a União um Estado monogâmico que oferece proteção a união estável entre homem e mulher para fins de entidade familiar.
É nessa circunstância que se insere a divergência de entendimentos e as inúmeras dúvidas que pairam sobre a cobertura previdenciária do cônjuge que renuncia aos alimentos ou ainda das circunstâncias de concubinato.
A exemplo, o direito à percepção do benefício da pensão por morte está claramente previsto no art. 74 da lei 8.213/91.
Em que pese a clareza de previsão dada pela lei 8.213/91 no que se refere ao benefício da pensão por morte, há que se evidenciar a peculiaridade de alguns casos que chegam até o Judiciário desafiando um posicionamento condizente com a sociedade brasileira.
Em termo, chegamos ao cerne da temática proposta. Cônjuge que renuncia alimentos tem direito à pensão por morte? E em casos de concubinato? E bigamia?
Sob a perspectiva normativa, o art.76, § 2º da lei 8.213/91 e o art. 111, caput do decreto 3.048/99 preveem que o cônjuge separado judicialmente ou divorciado ou de fato que recebia pensão alimentícia do cônjuge falecido concorrerá em igualdade de condições com os dependentes do art.16, inciso I da lei 8.213/91.
Trata-se do dever de assistência mútua atribuída aos cônjuges quando do casamento, é o que dá origem à obrigação alimentar. É o ônus que surge na solenidade do matrimonio e persiste mesmo após a dissolução do vínculo.
Mas quanto ao ex-cônjuge ou ex-companheiro que não recebia alimentos do falecido? No que se refere ao cônjuge que renuncia ao direito de alimentos na separação, tem direito ao recebimento do benefício da pensão morte, concorrendo em igualdade com os demais dependentes conforme previsto no ordenamento supracitado.
Não se trata de previsão normativa, mas de uma construção jurisprudencial. Inclusive o Superior Tribunal de Justiça editou a súmula 336 nesse sentido:
“ A mulher que renunciou aos alimentos na separação judicial tem direito à pensão previdenciária por morte do ex-marido, comprovada a necessidade econômica superveniente. ”
Ponderemos, o direito existe! No entanto, há a necessidade de comprovação de necessidade econômica posterior ao ato da separação. Ainda assim, observa-se que em casos onde o segurado falecido houver contraído matrimônio ou união estável posterior, a viúva terá de dividir a pensão por morte na cota de 50% (cinquenta porcento) e falecendo uma das duas partes, a sua cota não será redistribuída a outra, sendo, portanto, a cota extinta. Tal extinção é aplicada devido a atual previsão do art. 23, § 1º da Emenda Constitucional 103/19.
No que concerne à concessão de pensão por morte a(o) companheira(o) e concubina(o), são muitas nomenclaturas designadas a quem mantém relacionamento com individuo casado. O chamado concubinato impuro ou adulterino, traz questões jurídicas que exigem definições e decisões do Poder Judiciário.
Precipuamente, consigna ressaltar que o concubinato tem previsão no art. 1.521 do Código Civil, com expressa vedação:
Observemos então, em hipotética situação onde o(a) segurado(a) é casado(a) e constitui outro relacionamento similar ao conjugal de forma simultânea.
Considerando a situação descrita, é possível observar que o tema da cobertura previdenciária de situações de concubinato é divergente nos Tribunais, apesar de haver número significativo de decisões favoráveis nesse sentido.
Ademais, não se pode desconsiderar a questão do concubinato de longa duração gerar efeitos previdenciários, tema que teve sua repercussão geral reconhecida pelo STF por meio do RE 669.465, que posteriormente deu ensejo ao RE 883.168.
Por fim, chegamos à polêmica do recente julgado do STF - TEMA 526, concessão de pensão por morte em caso de bigamia.
Inicialmente, se faz importante pontuar algumas questões. Do ponto de vista sistêmico, dentro do nosso ordenamento, a bigamia é tipificada como crime, com previsão no art. 235 do Código Penal, prevendo pena de reclusão de 02 (dois) a 06 (seis) anos.
Outrossim, sabe-se de forma notória que a Previdência Social encontra respaldo com previsão no art. 201 da Constituição Federal, em que assegura a prestação de serviços previdenciários aos contribuintes, se estendendo aos dependentes conforme já discorrido.
Observando os pontos supracitados, nota-se o quanto o tema é polêmico e controverso ao ponto de ter sido inserido em julgamento no STF por meio do RE 1045273 (Tema 526).
O plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu em julgamento virtual com repercussão geral, que a(o) amante não tem direito a dividir a pensão por morte com cônjuge sobrevivente. A fundamentação da Decisão, inclusive entendimento da maioria dos ministros da Corte, é que legislação brasileira veda a bigamia ou poliamor, razão pela qual asseverou-se a aplicação reflexa para benefícios previdenciários.
O relator, ministro Alexandre Moraes, deu parecer com fulcro no artigo 1.723 do Código Civil, que veda a bigamia. Acompanharam o voto de Alexandre Moraes, os ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Kássio Nunes Marques, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux (Presidente do STF).
Fixando a seguinte tese:
“É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável.”
A temática é polêmica e divergente, contudo, o processo transitou em julgamento em 2 de abril de 2022, e a tese fixada foi que em casos de concubinato não há direito ao benefício da pensão por morte.
Em suma, a matéria abordada transcende as fronteiras do Direito Previdenciário e encontra escopo na constante evolução das relações humanas, pois o caráter protetivo do direito previdenciário também perpassa pelo enredo do equilíbrio entre as normas e a conjuntura social.
A partir da leitura constitucional do que, segundo o ministro Luís Roberto Barroso, se convém chamar de papel contra majoritário do STF, por exemplo, há evidência de decisões que em vários momentos divergem na doutrina majoritária, bem como o papel representativo, em que a Corte assume a postura de resolução de demandas sociais. O papel iluminista, por sua vez, se destaca pela ousadia nos avanços das decisões sempre em acompanhamento ao momento vivido pela sociedade, tal papel se faz ainda mais presente no Direito Previdenciário no que se refere a relacionamentos do mesmo gênero, concubinato, bigamia, inseminação artificial, barriga de aluguel, dentre outros pontos que derivam da constante evolução das relações humanas.
Nesse sentido, a advocacia precisa estar vigilante e perseverante na busca do direito pela adequação das leis em consonância com as constantes mudanças impostas pela sociedade a fim de cumprir seu papel de transformação social.