No dia 15/5/22, o programa Fantástico1, da TV Globo, exibiu reportagem em que noticiou graves desvios e problemas no Farmácia Popular, política pública governamental que visa complementar a disponibilização de medicamentos utilizados na Atenção Primária à Saúde (APS), por meio de parceria com farmácias e drogarias da rede privada.
A reportagem relatou a visão dos servidores do Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde (Denasus), responsáveis pela auditoria do programa, de que tais irregularidades poderiam ser mitigadas ou até evitadas, com resultados positivos para o Erário, estimados pela CGU, na ordem de mais de dois bilhões de reais, caso o quadro do departamento não estivesse gravemente defasado, com redução de quase 40% (quarenta por cento) do efetivo.
O Denasus é o órgão responsável por ser o componente federal do Sistema Nacional de Auditoria do SUS, nos termos da lei 8.689/93, artigo 6º, §4º. Essa mesma lei, no seu artigo 6º, instituiu o Sistema Nacional de Auditoria (SNA), ao qual compete realizar, de forma descentralizada, a avaliação técnico-científica, contábil, financeira e patrimonial do Sistema Único de Saúde (SUS).
A descentralização do SNA é feita por meio dos órgãos estaduais e municipais (componentes) e da representação do Ministério da Saúde em cada estado e no Distrito Federal, atualmente denominados de Serviços de Auditoria (Seauds) e Divisões de Auditoria (Diauds).
Os auditores do departamento responsáveis pela fiscalização são recrutados a partir de processo seletivo interno do Ministério da Saúde entre os ocupantes de cargos das carreiras vinculadas à pasta.
A grave situação vivenciada pelo departamento, relatada pelo programa de televisão, também foi anteriormente identificada no Relatório de Auditoria TC 024.043/2016-8 do Tribunal de Contas da União, notadamente quanto à dificuldade de recomposição dos cargos vacantes. Para o tribunal de contas:
“O sétimo achado está relacionado a fragilidades no quadro de pessoal do Denasus. Primeiro, por causa do risco de grande perda de força de trabalho em 2019, pois a partir do referido ano os servidores poderão incorporar 100% da Gdasus (gratificação de desempenho da carreira) para fins de aposentadoria, sendo que, até lá, quase 65% do quadro de pessoal do departamento estará apto a se aposentar. Por essa razão, é provável que haja aposentadorias em massa no Denasus, o que poderá comprometer as atividades por ele realizadas, mormente se considerarmos que não existem planos para a reposição desse pessoal”.
A ausência de pessoal no DENASUS para a realização de auditoria e a necessidade de reposição do quadro de pessoal contrasta, porém, com os critérios dos editais de processo seletivo interno que são realizados para a seleção dos servidores interessados.
No Edital de Seleção DENASUS/MS 2/22, por exemplo, o órgão limitou o universo de servidores públicos aptos a participar do certame apenas à Carreira da Previdência, da Saúde e do Trabalho, à Carreira da Seguridade Social e do Trabalho e ao Plano Geral do Poder Executivo, que são as carreiras formadas a partir de cargos anteriormente não estruturados do Poder Executivo Federal. A circunstância de que tal limitação gerou o não preenchimento de diversas vagas, que permanecem desocupadas em função da indevida restrição, agrava ainda mais a situação.
É importante notar que portaria 2.692, de 15 de outubro de 2020, que regula a seleção de auditores para o DENASUS, não dispõe sobre qualquer limitação do rol de potenciais participantes.
Em função da restrição editalícia, apesar da disposição da norma regulamentadora, os integrantes da Carreira de Desenvolvimento Tecnológico, criada pela lei 8.691/93 para ser ocupada por profissionais habilitados a exercer atividades específicas de pesquisa e desenvolvimento tecnológico ou necessárias à atuação técnica dos órgãos ou entidades da Administração Pública, estão alijados de participar do processo seletivo.
Para o departamento, a exclusão dessa Carreira se justificaria porque o DENASUS não estaria elencado entre os órgãos citados no artigo 1º da lei 8.691/932, indicando a compreensão de que os Tecnologistas só poderiam trabalhar na Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, na Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde e na Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde.
A contradição - e a ilegalidade da restrição editalícia - reside no fato de que esta não é a realidade do Ministério da Saúde: os Tecnologistas exercem suas atribuições em diversas unidades da pasta, ainda que não relacionadas naquele dispositivo.
Esse contexto sedimentou-se ainda mais com a edição do decreto 9.795, de 17 de maio de 2019, que alterou significativamente a organização interna do Ministério da Saúde. A nova estrutura aprofundou uma realidade que já existia antes: a lotação, pelos Tecnologistas, nos mais diversos órgãos do Ministério. Com a edição do decreto, as atribuições das unidades elencadas na lei ou foram extintas, ou foram majoradas/diminuídas, ou foram atribuídas a outras unidades.
De fato, a previsão contida no artigo 1º da lei 8.691/93 denota má técnica legislativa que ignora concepção muito bem sintetizada pelo ilustre doutrinador português Freitas do Amaral, que aponta a “organização administrativa [como] o modo de estruturação concreta que, em cada época, a lei dá à Administração Pública de um dado país”3.
À luz do conceito trazido pelo autor, deve-se ter em vista que a organização administrativa está em um contínuo movimento confluente com as mudanças por que passa o Estado ao longo do tempo, notadamente quando o recorte são suas unidades orgânicas na ponta da execução de atividades que estão em contínua evolução e aperfeiçoamento4.
Não é à toa que, para Paulo Modesto, as normas de organização ocupam grande relevo no estudo do direito administrativo contemporâneo. Nesse cenário, não é nenhuma surpresa a constatação dos desafios apresentados à disciplina da organização administrativa, em geral, e em particular no Brasil, tida pelo autor como “o capítulo mais inconsistente do direito administrativo nacional”5.
A má técnica legislativa consiste na indicação, na lei instituidora da carreira, de unidades orgânicas de determinada pasta ministerial que estão intrinsecamente associadas a contingências da dinâmica administrativa que, pela sua própria natureza, são passíveis de sucessivas alterações via ato administrativo normativo (decreto). Tal previsão é expressa na Constituição da República:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
VI - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;
b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;
Evidencia o descolamento da previsão legal à realidade o fato de que os Tecnologistas, ainda que não exerçam suas atividades naquelas unidades elencadas na lei, que já sofreram sucessivas alterações por força das contínuas reconfigurações da estrutura do Ministério da Saúde, continuam a perceber regularmente a Gratificação de Desempenho de Atividade e Ciência e Tecnologia (GDACT) e têm as suas promoções e progressões regularmente processadas.
O fato é que o Denasus, carente de servidores públicos para a realização das suas finalidades institucionais, adere a uma injustificada restrição sob fundamento que só é utilizado para o fim de impedir os Tecnologistas a participarem do certame, mas não impede qualquer um dos ocupantes desse cargo de exercer suas atividades em outras unidades do Ministério da Saúde diversas daquelas apontadas no artigo 1º, §1º, da Lei n. 8.691/93. Em outras palavras, os motivos que poderiam justificar tal limitação deveriam também ser aplicáveis a outras situações no órgão, o que não ocorre na realidade.
Essa conduta viola, de partida, o princípio da legalidade, por contrariar a Portaria que regulamenta o processo seletivo. Viola, também, o princípio da impessoalidade, pois confere tratamento desigual entre os administrados, favorecendo determinadas carreiras em detrimento de outras, conduta que fica ainda mais evidente e desproporcional quando se observa que essa limitação vai de encontro às determinações do próprio TCU sobre o tema e à grave deficiência de quadro de pessoal.
A insistência em tolher a participação de servidores qualificados, nesse mesmo sentido, também viola o princípio da eficiência, pois condena o próprio Denasus a não dispor dos melhores quadros do Ministério da Saúde, em um repetitivo contexto de dificuldades na auditoria e no controle interno do Sistema Único de Saúde, não só em relação à qualificação, mas principalmente na postura de preferir ter vagas ociosas a ocupá-las com servidores capacitados.
A grave realidade de cargos vacantes na auditoria do Denasus e a frágil argumentação utilizada pelo departamento para justificar o alijamento de uma das carreiras mais qualificadas da pasta evidenciam também um dos grandes desafios do direito administrativo da organização administrativa, que é o descompasso existente entre a estrutura jurídica existente e os desafios que se revelam a uma Administração Pública cada vez mais complexa e plural, manifestando o desafio de exercer novos papéis em antigas estruturas.
Em situações como a relatada, é inevitável o dever da Administração Pública de manter coerência no seu agir, em especial quanto aos fundamentos que baseiam situações concretas com a mesma identidade (teoria dos motivos determinantes).
No caso ora apresentado, é destituído de sentido admitir que os Tecnologistas possam atuar em diversas unidades do Ministério da Saúde, ao largo do que prevê o artigo 1º, §1º, da Lei n. 8.691/93, mantendo-se tal limitação apenas ao Denasus, departamento de papel essencial na fiscalização do Sistema Único de Saúde e que não pode prescindir de auditores qualificados que podem ser encontrados justamente entre os integrantes da Carreira de Desenvolvimento Tecnológico.
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1 https://globoplay.globo.com/v/10578318/ (acesso em 16/05/2022). A reportagem se inicia com 1 hora e 24 minutos e a passagem sobre a carência de servidores se inicia com 1 hora e 35 minutos.
2 Art. 1º Fica estruturado, nos termos desta lei, o Plano de Carreiras dos órgãos e entidades da Administração Pública Federal Direta, Autárquica e Fundacional, integrantes da área de Ciência e Tecnologia, que tenham como principais objetivos a promoção e a realização da pesquisa e do desenvolvimento científico e tecnológico.
§ 1º Os órgãos e entidades de que trata o caput são os seguintes:
(...)
XXXIV - Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde;
XXXV - Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde; e
XXXVI - Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde.
3 AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo. v. I, 4. ed. Coimbra: Almedina, 2016, p. 613.
4 A respeito da estrutura da organização administrativa brasileira, cfr. MOTTA, Fabrício. Organização estrutural da administração pública brasileira. In: HACHEM, Daniel Wunder; GABARDO, Emerson; SALGADO, Eneida Desiree (Coord.). Direito administrativo e suas transformações atuais: Homenagem ao professor Romeu Felipe Bacellar Filho: Anais do Seminário da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: Íthala, 2016, pp. 217-226
5 MODESTO, Paulo. As fundações estatais de direito privado e o debate sobre a nova estrutura orgânica da Administração Pública. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 539.