O direito de convivência familiar é intrínseco ao sadio desenvolvimento da prole, sendo dever da família e do Estado fazer com que referido direito seja resguardado de forma primordial, tal como preconiza o art. 4º do ECA.
Nesse cenário, após delimitado o regime de convivência, tanto por tutela de urgência quanto por sentença de mérito, cabe aos genitores, principalmente o genitor não detentor da guarda física, cumprir o regime de convivência1 com regularidade em prol do sadio desenvolvimento da prole, por se tratar de um dever jurídico do progenitor (e direito da prole em si).
Saliente-se que a convivência familiar é ínsita à relação parental e não pode ser tolhida ao alvedrio de ressentimentos alheios, como já se manifestou Carla Matuck Borba Seraphim:
O direito fundamento à convivência familiar impõe à família, à sociedade e ao Estado o dever de cuidado; ao mesmo tempo coloca a criança e o adolescente como sujeito ativo de direitos fundamentais, como o direito fundamental à convivência familiar a comunitária.2
Rolf Madaleno, por sua vez, ressalta a importância do papel de cada um dos genitores no desenvolvimento dos menores:
A importância e o papel de cada um dos progenitores na formação e criação dos seus filhos são únicos e completamente insubstituíveis, tanto o pai quanto a mãe são igualmente responsáveis pela sua prole, e o exercício da parentalidade, este vínculo jurídico que existe entre um progenitor e o seu filho, constitui um direito fundamental e absoluto.3
Nesse sentir, Dimas Messias de Carvalho reconhece que “o genitor não guardião possui, portanto, o dever de conviver e cuidar do filho, sendo que o descumprimento injustificado do dever jurídico de convivência importa em abandono afetivo, ocasionando danos morais, suscetível de reparação civil.”4
Igualmente, Maria Berenice Dias reconhece que “o direito de convivência não é assegurado somente ao pai ou à mãe, é direito do próprio filho de com eles conviver, o que reforça os vínculos paterno e materno-filial”.5
Ou seja, significa dizer que além de um dever dos genitores, cumprir o regime de convivência constitui direito do menor, de modo que sua violação pode consternar a dinâmica da família e, consequentemente, gerar incertezas e dúvidas nos menores, afetando tanto o seu desenvolvimento quanto abalando as relações familiares propriamente ditas.6
Nesse cenário, é manifesta a violação ao art. 1.5897 do CC/02; aos arts. 4º8 e 199 do ECA e ao art. 22710 da Carta Magna, que, por sua vez, determinam que é dever da família assegurar com absoluta prioridade a convivência familiar, pelo que tal direito/dever é amplamente reconhecido e difundido pela jurisprudência.11
Caso o regime de convivência não seja cumprido por um dos genitores, é plenamente possível que seja manejado incidente de cumprimento de sentença visando compelir o genitor não guardião a cumprir referido regime em benefício dos menores, nos termos do art. 536 do CPC, tal como já se manifestou a jurisprudência.12
Em síntese, a convivência familiar é um direito13 dos menores e um dever dos genitores, pelo que caso o regime de convivência não seja cumprido e, instado a cumprir referido regime, o genitor permaneça inerte, é viável a fixação de astreintes, como já admitido pela jurisprudência.14
Tanto é assim que Fernanda Tartuce defende a possibilidade da fixação de multa em caso de descumprimento (pelo genitor não guardião). Vejamos:
Espera-se que, a partir do diálogo, os pais possam encontrar caminhos pacíficos de convivência e respeito aos interesses de seus filhos.
Caso, contudo, seja necessário se valer da autoridade judicial, é pertinente a aplicação do Código de Processo Civil para implementar medidas que assegurem o resultado prático equivalente ao adimplemento. Dentre as possibilidades, destacam-se, por sua utilidade para atender a situações de convivência impedida, a imposição de multa por tempo de atraso e a busca e apreensão.15
Frise-se que o pedido de fixação de eventual multa deve ser calcado também no viés educativo da medida para que o genitor não guardião respeite tal direito-dever e não prejudique os menores.
Nessa senda, autorizar que o convívio familiar seja realizado de acordo com a boa vontade do genitor não guardião, eximindo seu descumprimento, flerta com incentivo ao abandono afetivo.
Portanto, ainda que se admita que o afeto, o amor e carinho não possam ser impostos de forma coercitiva, tais sentimentos podem ser desenvolvidos com o necessário convívio parental (afastando-se os percalços de ressentimentos e rejeições), sendo necessário rememorar que o dever de cuidado deriva do poder familiar de per si e não pode ser escusável sob qualquer argumentação.
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1 (TJ-MG - AI: 10000210370433001 MG, Relator: Ana Paula Caixeta, Data de Julgamento: 24/06/2021, Câmaras Cíveis / 4ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 25/06/2021)
2 Direito da infância, juventude, idoso e pessoas com deficiência. Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti, Flavia Piva Almeida Leite, Roberto Senise Lisboa, coordenadores. São Paulo: Atlas, 2014.
3 MADALENO, Rolf. MADELNO, Rafael. Guarda compartilhada: física e jurídica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
4 DE CARVALHO, Dimas Messias. Direito das Famílias. São Paulo: Saraiva, 2017.
5 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
6 (TJSP; AC 1003909-53.2019.8.26.0362; Ac. 13931005; Mogi Guaçu; Sétima Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Luiz Antonio Costa; Julg. 03/09/2020; DJESP 10/09/2020; Pág. 2263)
7 Art. 1.589. O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação.
8 Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
9 Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral.
10 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
11 (TJMS; AI 4000357-67.2020.8.12.9000; Segunda Câmara Cível; Rel. Des. Vilson Bertelli; DJMS 26/10/2020; Pág. 151)
12 (TJSP; AI 2143550-24.2020.8.26.0000; Ac. 14014606; São Paulo; Nona Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Edson Luiz de Queiroz; Julg. 30/09/2020; DJESP 05/10/2020; Pág. 1868)
13 (TJ-RS - AC: 70081271702 RS, Relator: Jorge Luís Dall'Agnol, Data de Julgamento: 31/07/2019, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: 02/08/2019)
14 (TJSP; AI 2180456-13.2020.8.26.0000; Ac. 14034439; Sumaré; Nona Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Edson Luiz de Queiroz; Julg. 06/10/2020; DJESP 14/10/2020; Pág. 2036))
15 TARTUCE, Fernanda. Processo Civil no Direito de Família: teoria e prática. São Paulo: Método, 2018.