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A convergência de oportunidades da nova lei de licitações para o setor de saneamento básico

O saneamento básico é um direito fundamental de todos os cidadãos brasileiros, extraído do direito à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ambos presentes na Constituição da República (arts. 6º e 225, respectivamente).

1/7/2022

1. Introdução

A aprovação do novo marco legal do saneamento básico (lei 14.026/20) elenca uma abertura de uma janela de oportunidades para que o país avance nesse setor, cuja prestação é historicamente deficitária. A aposta é que, de maneira integrada, os entes federativos (União, Estados, DF e Municípios), atuando preferencialmente com a iniciativa privada, atinjam as metas de universalização dos serviços de saneamento básico até 2033, garantindo o acesso à água potável à 99% da população brasileira e a coleta e tratamento de esgoto à 90%.

O saneamento básico é um direito fundamental de todos os cidadãos brasileiros, extraído do direito à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ambos presentes na Constituição da República (arts. 6º e 225, respectivamente). Em complemento, o acesso à água potável também é reconhecido como um direito humano fundamental, ao ponto de parte da doutrina defender o enquadramento do mesmo como um direito fundamental de sexta dimensão.1

Ainda no cenário internacional, vale destacar que, em 28/7/10, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a resolução A/RES/64/292, que declara a água limpa e segura e o saneamento básico como direitos humanos essenciais. Já em 2011, o Conselho dos Direitos Humanos da ONU, por meio da resolução 16/2, reconheceu esses direitos como fundamentais à vida e à dignidade humana.

Além de um direito humano, o saneamento básico também é um instrumento eficaz de otimização dos investimentos públicos. Estima-se que a cada real aplicado em saneamento, o Poder Público economiza R$ 4 em saúde, podendo chegar em torno de valores de R$ 6 a R$ 8 quando o investimento ocorre nas periferias das cidades, onde a carência de serviços públicos é maior.2

Apesar de assegurado na Constituição e em documentos internacionais, esses direitos ainda não são garantidos à grande parte da população brasileira. Segundo dados do Instituto Trata Brasil divulgados pelo relatório “Ranking do Saneamento Instituto Trata Brasil 2021”3, levando em consideração somente as 100 maiores cidades do país, existem 5,5 milhões de brasileiros sem água tratada e quase 22 milhões sem esgoto sanitário. É essa realidade que o novo marco legal do saneamento básico pretende alterar, atingindo, como se disse, a universalização desses serviços até 31/12/33.

2. O novo marco legal de saneamento básico

A lei 14.026/20 atualizou o marco regulatório de saneamento básico do país. O novo diploma alterou diferentes leis que abordam o tema no nosso ordenamento jurídico, sobretudo a lei 11.445/07, que estabelece as diretrizes nacionais para o setor.

Para alcançar as ambiciosas metas nacionais de universalização dos serviços de fornecimento de água e esgoto, o novo marco legal reconfigurou a base normativa do setor. Existe, atualmente, o incentivo à prestação delegada, que ocorrerá necessariamente por contrato de concessão, precedido de licitação, para os prestadores que não integram a administração do titular dos serviços, ao mesmo tempo em que fomenta a prestação regionalizada do saneamento.

Nesse novo cenário, as empresas estatais, que atualmente dominam o setor de saneamento no país, deverão participar das licitações públicas em igualdade de condições com as empresas privadas, para que se selecione a proposta mais vantajosa para a administração. Nesse contexto, foram proibidas as prestações de serviços públicos de saneamento básico mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária nos casos de o prestador não integrar a administração do titular (art. 10 da lei 11.445/07).

Nesse sentido, Alexandre Santos de Aragão e Rafael Daudt D’Oliveira acrescentam:

“Note-se que esta igualdade de condições, em relação às estatais, é uma imposição de via dupla: nem as empresas estatais podem receber vantagens competitivas, como dispensas de licitação, nem podem ser discriminadas negativamente, como vedações a participarem de licitações, linhas de créditos públicos apenas para as empresas privadas etc. Igualdade em ônus e em bônus, de parte a parte. Contudo, o espírito da lei, em princípio, parece ser mais o de atrair empresas privadas para atuar no setor, em substituição às estatais”.4

Outra marca importante do novo marco regulatório, como se disse, é a regionalização dos serviços públicos de saneamento básico. O inciso VI, do art. 3º da lei 11.445/07 (com redação dada pela lei 14.026/20) define a prestação regionalizada como a “modalidade de prestação integrada de um ou mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico em determinada região cujo território abranja mais de um Município”. Já as alíneas do dispositivo preveem a estruturação da regionalização nas seguintes formas: I) região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião; II) unidade regional de saneamento básico; e III) bloco de referência.

Os benefícios desse sistema são vários e cada modalidade de prestação regionalizada apresenta uma vantagem agregada. No caso das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, por exemplo, a execução dos serviços em bloco envolve o compartilhamento de instalações operacionais de infraestrutura entre os municípios limítrofes e o interesse comum no planejamento, execução e operação das estruturas necessárias à prestação dos serviços (art. 3º, inciso XIV, da lei 11.445/07).

Além disso, o agrupamento de municípios pode viabilizar, do ponto de vista técnico e econômico, a concessão dos serviços de água e esgoto em municípios menos atrativos, que podem não despertar o interesse do mercado se considerados isoladamente. Técnica comumente denominada como subsídio cruzado. É preciso reforçar que pelo novo marco regulatório a concessão dos serviços ocorrerá, necessariamente, por licitação pública. Por isso torna-se fundamental que os modelos de concessão que surgirão a partir dessa imposição legal sejam atrativos e viáveis, evitando, desse modo, a ocorrência de licitações desertas que prejudicam o interesse público e, em última análise, os direitos dos cidadãos.

No modelo regionalizado, os ganhos financeiros ocorrem de maneira escalonada. Nesses casos, municípios que são mais rentáveis compensam aqueles que não são (art. 2º, inc. XIV, da lei 11.445/07).

Acrescenta-se que a regionalização é um processo lógico extraído do próprio desenvolvimento urbano das cidades, especialmente nas regiões conurbadas. Nesse sentido, Rafael Vanzella e Jéssica Borges destacam:

“A municipalização do saneamento básico é, por conseguinte, contraditória ao processo de desenvolvimento das cidades. O crescimento da população em determinadas cidades fá-la-á mais dependente dos municípios circunvizinhos que suportarão as infraestruturas necessárias para o atendimento da população regional. E vice-versa: as economias dos municípios mais adensados recomendarão o compartilhamento das eficiências com aqueles menos adensados. As soluções de projeto e de negócio levarão esses dados em consideração. O sucesso de uma cidade fará o interesse local ser afastado pelo interesse comum. Se tudo der certo, a municipalização é etapa histórica que deverá ser em algum momento superada, ao menos no setor de saneamento básico”.5

As alterações introduzidas pela lei 14.026/20 vão ao encontro dessa análise. Conforme se verá a seguir, foram previstas diferentes formas de regionalização, compulsórias ou voluntárias, entre municípios limítrofes ou não e com diferentes desenhos interfederativos (instituída pela União, pelos Estados ou pelos próprios Municípios) como formas de superar as dificuldades geradas pela municipalização do setor.

_____

1 FACHIN, Zulmar; DA SILVA, Denise Marcelino. Acesso à água potável: direito fundamental de sexta dimensão. Campinas: Millennium Editora, 2010.

2 CAPOMACCIO, Sandra. Investimento em saneamento básico retorna em benefícios à saúde. Jornal da USP, 2021. Disponível em: . Acesso em: 27/10/2021.

3 Disponível em: Acesso em: 15/10/2021

4 ARAGÃO, Alexandre dos Santos; D’OLIVEIRA, Rafael Daudt. Considerações iniciais sobre a Lei nº 14.026/2020 – Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico. In: DAL POZZO, Augusto Neves (coord.). O Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico. 1 Ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2020. p. 34.

5 VANZELLA, Rafael Domingos Faiardo; BORGES, Jéssica Suruagy Amaral. Notas sobre a prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico. In: DAL POZZO, Augusto Neves (coord.). O Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 232.

Thaís Marçal
Mestre em Direito pela UERJ. Advogada e árbitra listada no CBMA, CAMES e CAMESC. Coordenadora acadêmica da ESA OAB/RJ.

Caio Macêdo
Graduando em Direito pela FND-UFRJ. Membro da Liga Acadêmica de Direito Administrativo da FND-UFRJ.

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