A Europa vive momentos delicados em sua coordenação de política externa desde o início da invasão russa em território ucraniano. As consequências desse conflito não se limitam apenas à temática bélica, mas fazem parte de uma extensa equação que coloca em discussão temas internos profundos que variam desde questões da integração europeia até questões energéticas, todo esse caminho passa necessariamente não só pelo conteúdo dos tratados que dão o alicerce jurídico e institucional da União como também perpassa pela matéria das celebrações de convenções internacionais feitas pela própria União.1
Interessante é notar o papel que o TJUE – TJ União Europeia, tem exercido ao longo dos anos como importante autor de decisões cuja jurisprudência influencia diretamente o campo do direito da União quanto à guia de atribuições na celebração das convenções internacionais.2 Nesta via, o presente trabalho pretende apresentar pontos introdutórios para uma melhor compreensão e estudo das influências da jurisprudência do TJUE nas atribuições implícitas da Corte quanto à celebração das convenções internacionais, segundo a inspiração do próprio contencioso europeu.3
Ao falarmos do paralelismo entre atribuições externas e internas da União, estamos falando, a partir da visão do prof. Fausto Quadros, de uma criação sensata da própria jurisprudência do tribunal que entende, na medida em que a União tiver definido num dado domínio material regras comuns no seu plano interno, que ficará investida de atribuições desse mesmo domínio igualmente no plano externo, podendo, nesse caso, os seus órgãos procederem à conclusão de acordos internacionais na referida matéria mesmo em um cenário de ausência de disposições expressas que lhe deem competência para tal. Em suma, se existe a previsão legal pelo art. 5º do TUE – Tratado da União Europeia, de atribuições num determinado domínio, logo existe também de forma implícita as mesmas atribuições por ordem externa, a isso classifica-se como uma atribuição implícita.4
Esse entendimento jurisprudencial advém em grande parte do caso AETR 5(proc. 22/70, AC 31-3-71) que tratou de um recurso interposto em 19/5/70 em que a Comissão das Comunidades Europeias pediu a anulação da deliberação do Conselho, de 20/3/70, relativa à negociação e à conclusão pelos Estados-membros da comunidade, no quadro da Comissão Económica das Nações Unidas para a Europa, do acordo europeu relativo ao trabalho das tripulações de veículos que efetuam transportes internacionais rodoviários (AETR)**
No que se refere a elaboração de tratados internacionais pela União, cabe ressaltar o disposto no art. 216 do TFUE – Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que estabelece categorias dos tratados internacionais em que a União poderá celebrar, sendo elas:
a) Acordos que os tratados prevêem de modo expresso;
b) Acordos cuja conclusão é necessária para a União alcançar objetivos fixados pelos tratados mesmo em domínios onde a UE não tenha alcançado no plano interno.
No tocante ao item “b” cabe uma importante anotação: nesse caso em específico se destaca o fato de que esse raciocínio advém também da própria jurisprudência. O TFUE absorveu o entendimento jurisprudencial do TJUE presente no caso Kramer6 (processo 3/76, 4/76 e 6/76).
c) Acordos cuja conclusão se encontra prevista num ato vinculativo da União;
d) Acordos cuja conclusão é necessária para permitir a União prosseguir com suas atribuições internas ou suscetíveis de afetar regras comuns ou de alteração de alcance. Enfatiza-se o fato do TFUE acolher neste caso a jurisprudência do TJUE proveniente do acórdão AETR.
Nota-se, portanto, a influência jurisprudencial até mesmo na divisão e na sistemática das categorias dos tratados internacionais a serem celebrados pela UE. Não obstante, as inspirações jurisprudenciais também verificam-se para além da classificação dos tratados atingindo também sua própria elaboração. Por exemplo, no ato de conclusão do tratado que reveste a forma e o regulamento ou de decisão, não tem função de receber o tratado na ordem da União, o TJUE bem se posicionou de forma clara no caso Haegeman II no que se refere “as disposições do acordo fazem parte integrante da ordem jurídica comunitária a partir da sua entrada em vigor”, entendimento que repetiu-se posteriormente no caso Opel Austria.
À título de aprofundamento das influências jurisprudenciais na temática que extrapolam o âmbito dos tratados e alcançam como um todo a política externa e de PESC – Segurança Comum da União Europeia, absorve-se o entendimento da prof. Maria José Rangel de Mesquita quanto à prima facie - ensinamento no qual pelo entendimento jurisprudencial do TJUE as bases jurídicas de direito originário relativos à política externa e de segurança comum e da PCSD – Política Comum de Segurança e Defesa, estão em prima facie aos princípios e normas primárias de direito da União, não expressamente afastados pelo TUE, dotando-os de igual valor e importância graças aos decorrentes ensinamentos presentes nos acórdãos julgados no contencioso europeu.7
Nessa esteira, ensina Mesquita:
No limite, a sujeição da PESC ao método comunitário no que não esteja expressamente excluído pelo TUE e pelas regras e procedimentos específicos aplicáveis, implica, não obstante o afastamento da sindicabilidade dos actos e comportamentos da União e dos seus órgãos e dos Estados pelo TJUE, que a apreciação do comportamento dos Estados, à luz do Direito da União, possa ser efectuada no quadro das ordens jurídicas nacionais pelos tribunais nacionais na sua qualidade de tribunais comuns de Direito da União Europeia - apesar da impossibilidade de utilizar o processo das questões prejudiciais na escrita medida da regra da exclusão da competência do Tribunal da União enquanto traço de especificidade da Política Externa e de Segurança Comum.8
Sendo assim - e retomando ao cerne da presente pesquisa quanto às atribuições para elaboração de convenções e tratados internacionais por parte da UE sob influência da jurisprudência do TJUE, cabe ressaltar o parecer de número 1/789 do TJUE em que o tribunal admitiu a participação dos Estados-membros num acordo em matéria de política comercial comum em razão deste comportar uma obrigação de financiamento de um determinado estoque (stock) regulador, algo que ainda não tinha uma definição pré estabelecida imposta via de regra aos Estados-membros e que, por viés do próprio TJUE, enquanto a questão não fosse resolvida, os Estados-membros deveriam participar a par da comunidade Europeia. Assim, o referido parecer confirmou a tese de atribuições paralelas da comunidade e dos Estados-membros no que tange a participação na elaboração de convenções internacionais.
Por tudo isso e de modo geral quanto às atribuições, a prof. Ana Maria Guerra Martins10 destaca avanços importantes na primeira fase de jurisprudência do TJUE para a temática, quais sejam:
Que as atribuições externas podem ser implícitas, ou seja, as atribuições da comunidade no domínio internacional não resultam necessariamente de disposições expressas nos tratados, podendo retirar-se implicitamente de outras disposições dos tratados e dos atos adotados pelos órgãos comunitários;
1.Que as atribuições externas podem ser implícitas, ou seja, as atribuições da comunidade no domínio internacional não resultam necessariamente de disposições expressas nos tratados, podendo retirar-se implicitamente de outras disposições dos tratados e dos atos adotados pelos órgãos comunitários;
2. Que essas atribuições implícitas podem ser exclusivas ou não, consoante a comunidade a nível interna detenha competência exclusiva ou não;
3. Que o princípio que dominou a matéria da capacidade internacional das comunidades europeias na primeira fase foi o do paralelismo de atribuições internas e externas, o que significa que mesmo na ausência de legislação interna a comunidade poderia celebrar acordos internacionais se assim fosse necessário, com fito de atingir algum dos objetivos presentes no tratado.11
Dessa forma, conclui-se que ao menos nas linhas gerais propostas para a propedêutica do tema que o TJUE desempenha papel fundamental, por meio de suas jurisprudências, na influência de toda uma coordenação a reger a política externa da UE. O que nos leva a pensar, na ótica do direito comunitário, questões de direito comparado na aplicabilidade também dos órgãos e afins dentro do Mercosul, o que pode vir a ser objeto de estudo posteriormente.
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1 CÂMARA, Joana Brito. A Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia no Tratado de Lisboa. Cascais: Principia, 2016.
2 MESQUITA, Maria José Rangel de. Introdução ao Contencioso da União Europeia: lições. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2018.
3 A autora Ana Maria Guerra Martins cita em sua obra “Os Desafios Contemporâneos à Ação Externa da União Europeia: Lições de direito internacional público II. Coimbra: Almedina, 2018.“ em nota de rodapé, p. 141, a existência de um estudo desenvolvido da Jurisprudência do TJUE relativa às atribuições da Comunidade para concluir acordos internacionais, indicando Marise Cremona em “External Relations and External Competence of the European Union: the emergence of an integrated policy” in Paul Craig / Graínne de Búrca, The evolution of EU Law, 2ª ed., Oxford, Oxford Uni Press, 2011, p. 217.
4 QUADROS, Fausto de. Direito da União Europeia.3ª ed.Coimbra: Almedina, 2015, p. 266.
5 Ac. de 31/3/71, Comissão c. Conselho, proc. 22/70, Rec. 1970, p. 263 e segs.
6 Pedido de decisão prejudicial em compromissos internacionais, competência da comunidade, e limitação em pesca no mar de um Estado membro. Ao adotar medidas que comportam limitações ao exercício da pesca, tendo em vista a conservação dos recursos do mar; um Estado-membro não põe em perigo nem os objetivos nem o funcionamento do regime instituído pelos regulamentos números 2141/70 e 2142/70, que estabelecem respectivamente, uma política comum das estruturas no setor da pesca e uma organização comum de mercado no setor dos produtos da pesca. Tais medidas também não constituem medidas de efeito equivalente a uma restrição quantitativa às trocas intracomunitárias, proibidas pelos artigos 30º e seguintes do Tratado.
7 MESQUITA, Maria José Rangel de. A Actuação Externa da União Europeia depois do Tratado de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2011, p.395.
8 Id. p. 396.
9 Parecer de 4/10/79, parecer nº 1/79, Rec. 1979, p. 2871 e segs.
10 MARTINS, Ana Maria Guerra. Os Desafios Contemporâneos à Ação Externa da União Europeia: Lições de direito internacional público II. Coimbra: Almedina, 2018.
11 Id. p. 143.