Na madrugada de 24 de junho de 2022, o STF deu início ao julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 708, relatada pelo ministro Luís Roberto Barroso. A ação, ajuizada por 4 partidos políticos, questiona o comportamento da administração pública relativo ao Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, que estava paralisado desde o início de 2019. Ligado ao Ministério do Meio Ambiente, o “Fundo Clima” tem o objetivo de financiar projetos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas1.
O voto do Ministro Barroso julga a ação totalmente procedente para reconhecer a omissão da União ao não alocar integralmente os recursos do Fundo Clima referentes ao exercício de 2019, para determinar que que a União não mais se omita em fazer funcionar o Fundo e para vedar o contingenciamento de receitas que integram o Fundo2. Ao final, ainda propõe a fixação da seguinte tese:
“O Poder Executivo tem o dever constitucional de fazer funcionar e alocar anualmente os recursos do Fundo Clima, para fins de mitigação das mudanças climáticas, estando vedado seu contingenciamento, em razão do dever constitucional de tutela ao meio ambiente (CF, art. 225), de direitos e compromissos internacionais assumidos pelo Brasil (CF, art. 5º, par. 2º), bem como do princípio constitucional da separação dos poderes (CF, art. 2º c/c art. 9º, par. 2º, LRF).”
Essa tese pode ser lida como uma forma de vincular, em definitivo, o dever de alocação eficiente de recursos do Fundo Clima, visando preservar a função originária pensada para seu funcionamento. Trata-se de importante avanço pragmático, que pode impedir a malversação de recursos que devem ser destinados à mitigação e à adaptação às mudanças climáticas.
Mitigação e adaptação às mudanças climáticas, aliás, deveriam ser consideradas prioritárias por qualquer governo responsável. Segundo o último relatório do Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (AR6/IPCC), metade da população mundial já vive sob risco climático e, nas regiões mais vulneráveis, muitas vezes coincidentes com as mais carentes, o número de mortes por secas, enchentes e tempestades na última década foi 15 vezes maior do que nas demais regiões. De acordo com a 4ª Comunicação Nacional do Brasil à Convenção Quadro da ONU sobre mudança do clima, a ausência de mitigação pode impactar gravemente a produção energética e agrícola do país, com efeitos graves como por exemplo a redução em 65% da área apta ao cultivo de soja, já nos próximos 20 anos.
Indo além de sua dimensão pragmática, o voto do Ministro Barroso também consolida três importantes entendimentos jurisprudenciais em teses jurídicas caras aos debates sobre políticas socioambientais. Em primeiro lugar, estabelece que, por força do art. 225, a tutela ambiental não deve ser lida como juízo político discricionário, mas sim como obrigação vinculante. Afirma que “tratados sobre direito ambiental constituem espécie do gênero tratados de direitos humanos e desfrutam, por essa razão, de status supranacional. Assim, não há uma opção juridicamente válida no sentido de simplesmente omitir-se no combate às mudanças climáticas”.
Em segundo lugar, argumenta que, por força do princípio da separação dos poderes, o Poder Executivo não possui a opção de ignorar as destinações orçamentárias que são determinadas pelo Poder Legislativo na confecção do orçamento público, como é o caso das destinações específicas de recursos ao Fundo Clima. Explica que a Lei de Responsabilidade Fiscal traz entre seus objetivos a limitação da discricionariedade do Poder Executivo no contingenciamento de valores, para que seja assegurado o cumprimento das despesas obrigatórias, incluindo as despesas relacionadas aos deveres constitucionais de tutela e restauração do meio ambiente.
Em terceiro lugar, reitera, de maneira expressa, a tese da possibilidade de judicialização de políticas públicas que sejam insuficientes para o enfrentamento da crise climática. Segundo o Ministro Barroso, o Supremo Tribunal Federal tem o dever de exercer o controle sobre decisões alocativas quando constatar que as escolhas tomadas no âmbito do Poder Executivo “estiverem eivadas de desvio de finalidade, não verossimilhança dos motivos que as determinaram ou violação da proporcionalidade, implicando grave prejuízo ao núcleo essencial de direitos fundamentais”.
No caso concreto, esses vícios estariam evidentemente caracterizados em razão da “situação de colapso nas políticas públicas de combate às mudanças climáticas, sem dúvida alguma agravada pela omissão do Executivo atual”. Isso porque: (a) os recursos do Fundo Clima ficaram paralisados durante todo o ano de 2019 e parte do ano de 2020; (b) essa inoperância se deu em função de escolha deliberada da União; (c) não procede a alegação de que o não funcionamento ocorreu em razão da espera pelo novo marco de saneamento, visto que os recursos não se destinam exclusivamente e nem majoritariamente a este fim; e (d) a alocação posterior dos recursos se deu às pressas, após a propositura da ação e possivelmente em razão dela.
Além disso, o Ministro Barroso reconhece que, de 2019 em diante, o exponencial aumento do desmatamento na Amazônia Legal evidencia grave retrocesso socioambiental. Nos termos do voto:
[...] os resultados objetivamente apurados indicam que o país caminha, em verdade, no sentido contrário aos compromissos assumidos e à mitigação das mudanças climáticas, e que a situação se agravou substancialmente nos últimos anos. Esse é o preocupante e persistente quadro em que se encontra o enfrentamento às mudanças climáticas no Brasil, que coloca em risco a vida, a saúde e a segurança alimentar da sua população, assim como a economia no futuro.
Aliás, conforme apontam estudos da Fundação Getúlio Vargas e do WWF-Brasil e, também, do Instituto Clima e Sociedade, esse grave cenário de retrocessos resultou em um vigoroso aumento na judicialização das políticas socioambientais brasileiras3. Estamos, por isso, em um momento de franca expansão do conceito de “litígio climático”, que representa o acionamento do Poder Judiciário para questionar comportamentos comissivos ou omissivos de agentes públicos ou privados relacionados ao clima.
Nesse cenário, não há como negar que o voto do Ministro Barroso, na ADPF 708, se acolhido pela Suprema Corte, representará grande avanço para a matéria no futuro, sobretudo porque poderá dar segurança a magistrados e magistradas de todo o Brasil para avançarem em entendimentos e acolherem teses relativas ao tema em suas decisões.
Os casos de litígio climático trazem consigo diversas possibilidades a respeito da transição energética justa, do combate ao racismo ambiental e sobre o comportamento de agentes públicos e privados. A linha argumentativa do voto do Ministro Barroso pode representar um caminho a ser seguido para a resolução destas contendas, sem retirar das instâncias políticas o poder de tomada de decisão.
É certo que ainda há muito o que se avançar para a reconstrução das políticas socioambientais brasileiras. No entanto, presenciar mais uma ocasião na qual um membro da mais alta corte do país utiliza a urgência do atual contexto com a impossibilidade de tolerar juridicamente determinadas ações e omissões por parte do Estado, contribui muito para que o debate alcance um termo adequado – sobretudo porque, conforme os reiterados avisos da comunidade científica responsável, a humanidade está ficando sem tempo para solucionar a crise climática. O caminho está posto, o necessário é segui-lo o quanto antes.
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1 “O Programa Fundo Clima se destina a aplicar a parcela de recursos reembolsáveis do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, ou Fundo Clima, criado pela Lei 12.114 em 09/12/2009, regulamentado pelo Decreto 7.343, de 26/10/2010, e atualmente regido pelo Decreto 10.143, de 28/11/2019.O Fundo Clima é um dos instrumentos da Política Nacional sobre Mudança do Clima e se constitui em um fundo de natureza contábil, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente com a finalidade de garantir recursos para apoio a projetos ou estudos e financiamento de empreendimentos que tenham como objetivo a mitigação das mudanças climáticas”. Fonte aqui.
De acordo com o artigo 5º, incisos II, da Lei 12.114/2009, os recursos do FNMC devem ser aplicados em apoio financeiro, não reembolsável, a projetos relativos à mitigação da mudança do clima ou à adaptação à mudança do clima e aos seus efeitos, aprovados pelo Comitê Gestor do FNMC, conforme diretrizes previamente estabelecidas pelo Comitê.
2 Por tais fundamentos, em respeito ao direito constitucional ao meio ambiente saudável (CF, art. 225), ao dever do país de cumprir com direitos compromissos assumidos internacionalmente (CF, art. 5º, § 2º), bem como em observância ao princípio da separação dos Poderes, que rege as “despesas que constituam obrigações constitucionais e legais” (CF, art. 2º c /c art. 9º, § 2º, LC 101/2000), julgo procedente a ação para: (i) reconhecer a omissão da União, em razão da não alocação integral dos recursos do Fundo Clima referentes a 2019; (ii) determinar à União que se abstenha de se omitir em fazer funcionar o Fundo Clima ou em destinar seus recursos; e (iii) vedar o contingenciamento das receitas que integram o Fundo.
3 Disponível aqui.