Sem sombra de dúvidas, a empresa familiar é um dos institutos mais antigos que se tem conhecimento, posto que decorre de evento natural, ou seja, não advém de criação legal e sim de fenômeno espontâneo, oriundo das relações humanas entre seus pares. A professora Roberta Nioac Prado confere a seguinte conceituação:
“(i) a empresa familiar é aquela que se identifica há pelo menos duas gerações, pois é a segunda geração que, ao assumir a propriedade e a gestão, transforma a empresa em familiar; (ii) é familiar quando a sucessão da gestão está ligada ao fator hereditário; (iii) é familiar quando os valores institucionais e a cultura organizacional da empresa se identificam com os da família; (iv) é familiar quando a propriedade e o controle acionário estão preponderantemente nas mãos de uma ou mais famílias”.
A entidade familiar mais antiga que ainda opera nos dias de hoje é a Houshi Ryokan, que atua no ramo de hospedagem. Situada na província de Ishikawa, no Japão, foi fundada no ano de 718 (ou seja, há impressionantes 1.304 anos!) e está sendo administrada atualmente pela 46ª geração.
No Brasil, de acordo com dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 90% das empresas brasileiras possui caráter familiar, o que representa cerca de 65% do PIB Produto Interno Bruto brasileiro e emprega aproximadamente 75% dos trabalhadores no país. A partir da rápida análise dos dados apresentados, resta cristalina a excepcional relevância que as empresas familiares possuem para a economia pátria, mormente em razão da função social exercida.
As maiores vantagens dessas sociedades é seguramente a intimidade entre os integrantes, o senso de confiança e lealdade, a vontade de zelar pelo patrimônio, dentre outros que decorrem do laço familiar. São elementos que estão presentes, na grande maioria das vezes, nos membros de uma família e que reverberam espontaneamente para a esfera empresarial.
Nessa perspectiva, outro ponto relevante a ser observado é a maior fluidez na tomada das decisões pela cúpula da sociedade. Quer dizer, não é necessário convocar os acionistas e/ou a diretoria para resolver questões da empresa. Sendo estes indivíduos também pertencentes à um núcleo familiar, há uma expectativa realista de que as deliberações sejam realizadas com mais agilidade em virtude da informalidade que permeiam essas relações.
Contudo, ao mesmo tempo que o relacionamento pessoal entre os indivíduos é um impulso positivo para a associação empresarial (affectio societatis), também é a principal motivação do encerramento das atividades. Lamentavelmente, a perpetuação ao longo do tempo deste tipo societário é extremamente raro.
Segundo o SEBRAE, 70% das empresas familiares sobrevivem à geração de seu fundador e apenas 5% permanecem ativas após a sucessão entre a 2ª e 3ª gerações. Diversos fatores influenciam para este desfecho, mas a falta de planejamento sucessório é certamente o principal responsável. Senão, vejamos.
Consoante apontam as informações colhidas pela consultoria PwC em 87 países no ano de 2020, tão somente 34% destas têm como política de governança o testamento, enquanto apenas 28% afirmaram ter instituído protocolo familiar e 23% alegam contar com política de emprego familiar.
Os registros acima dispostos são de vital importância para debatermos o cenário sucessório das empresas familiares e as razões pelas quais na grande maioria das vezes não é obtido êxito na continuidade da atividade societária pelos herdeiros.
Consoante fora mencionado acima, as explicações para o espantoso percentual de insucesso localizam-se mais no aspecto psicológico do que no mundo jurídico. Em outros termos, nos sentimentos e ressentimentos nutridos durante o transcurso da vida. Isto porque o ser humano é profundamente complexo, sendo certo que, mesmo dentro das famílias, persistem profundas incompatibilidades que tornam inviável o convívio.
Ainda que seja difícil para qualquer pessoa admitir e planejar isto, há unicamente três finais para uma empresa familiar: a alienação para terceiros, a sucessão pelos herdeiros ou a falência. Justamente por tratar-se de dolorosa realidade, o fundador evita de todas as maneiras enfrentar este fato e reluta em idealizar um planejamento sucessório.
No entanto, equivoca-se enormemente ao proceder desta forma, posto que as chances de manutenção do empreendimento concebido por este são muito maiores quando a sucessão é feita em vida, já que, após o falecimento deste, esta necessariamente será realizada, porém de modo desorganizado, o que gera na prática muitos desentendimentos entre os herdeiros.
Em realidade, o ideal é que o evento morte não seja causa para uma sucessão abrupta e sim que compreenda um processo contínuo e natural, com o propósito precípuo de causar o mínimo de traumas possível para a atividade empresarial.
Sugere-se, principalmente, que o fundador promova a profissionalização administrativa e societária e, ainda, a elaboração de um plano sucessório. Para tanto, deve-se primeiramente identificar as aptidões de cada eventual sucessor, de modo que todos sejam alocados nas respectivas áreas de interesse e nenhum se sinta preterido.
Certamente, o planejamento sucessório demanda tempo e energia, posto que o empresário deve, desde a concepção de sua prole, dedicar-se a formação de seus filhos para substitui-lo. Entretanto, esta tarefa revela-se essencial caso pretenda que todo o esforço empregado na empresa seja conservado pelas próximas gerações.
Afinal, do que adianta iniciar e desenvolver uma empresa se esta será encerrada imediatamente após o seu óbito?
Diante disso, uma vez que todos os herdeiros estiverem satisfatoriamente alocados na sua área, não apenas os próprios como todos os demais colaborados, estarão cientes da posição em cada um ocupa e, assim, o fundador deve dispor abertamente – e também, expressamente, por meio dos documentos correspondentes – quem irá o suceder na gestão da atividade societária e qual será a função dos demais.
Em outras palavras, o filho que tiver maior vocação para a tecnologia, deveria ser designado para a gestão desta área. Aquele que dispuser de aptidão com o direito, deveria encabeçar o corpo jurídico. E assim por diante, sendo certo que o descendente que apresentar melhor capacidade administrativa e habilidade nas relações humanas será o escolhido para a gestão global do tipo societário. Em síntese, a liderança deve ser conquistada e não herdada.
A probabilidade de obter êxito quando todos os herdeiros sentem que foram considerados dentro da estrutura societária e estão realizados com os cargos que ocupam é muito maior, especialmente pela sensação de ter conquistado a vaga por merecimento e não apenas em razão do sobrenome que carregam.
É um assunto que, não obstante aparentar estar num futuro longínquo, é improtelável. Afinal, todo o esforço empregado nos dias atuais somente valerá a pena caso a empresa se perpetue no tempo e são os herdeiros os principais responsáveis para tanto.
Por conseguinte, o fundador que pretende que sua empresa esteja acima de si próprio e possa a vir continuar em atividade após o seu falecimento, necessita dividir sua potência entre a criação de seus herdeiros (eventuais sucessores) e os negócios. Ademais, não podemos olvidar que a experiência não deixa a tarefa mais fácil. Pelo contrário. Quanto mais gerações surgem, proliferam-se os componentes da família e os conflitos tendem a acentuar-se.
Ao fim e ao cabo, sabemos que os irmãos não nascem essencialmente para ser sócios e na maioria das vezes também não são preparados durante o seu desenvolvimento para tanto e é neste momento que surgem os desencontros. Aliás, o cenário mais comum que observamos na prática é que as desavenças se iniciam no âmbito profissional, mas acaba perpassando para a esfera pessoal, sendo trazidos à baila questões da esfera pessoal-familiar.
Nas hipóteses em que não é delineado um planejamento sucessório eficiente, as dissonâncias logo surgem e, assim, recorre-se às mediações familiares nas empresas. Muitas vezes, contudo, não tem-se a preocupação de investigar a real origem do problema, o que obstaculiza o convívio harmônico no longo prazo sem o suporte constante de terceiros.
Em suma, o que podemos extrair de todo o exposto é que na maioria dos casos o fundador está concentrado em aumentar e estabilizar a sociedade, e acaba por deixar de lado o planejamento sucessório desta após a sua morte, justamente por ser um evento difícil de encarar e, ainda mais, de projetar
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