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Só mais um pouquinho: Justiça veda forçosamente aborto decorrente de estupro de vulnerável

A conduta da juíza Joana Ribeiro Zimmer será investigada pelo TJ de Santa Catarina e não houve em momento algum qualquer tipo de preocupação com a qualidade de vida da impúbere e as eventuais consequências de manter a gravidez com riscos físicos a ambas.

22/6/2022

O caso da menina de 11 anos, que tenta fazer valer os seus direitos e realizar o aborto legal, como preconiza o art. 128, II do CP e que fora impedida judicialmente denota que foi, uma vez mais, vítima, mas agora o algoz foi a própria justiça brasileira, através do conservadorismo de uma magistrada que impôs a esta criança “aguentar mais um pouquinho” a gestação como forma de preservar o feto. Atitude esta amplamente defendida e incentivada pela promotora de Justiça. Ambas em audiência desrespeitando os preceitos legislativos.

A conduta da juíza Joana Ribeiro Zimmer será investigada pelo TJ de Santa Catarina e não houve em momento algum qualquer tipo de preocupação com a qualidade de vida da impúbere e as eventuais consequências de manter a gravidez com riscos físicos a ambas. Refletimos. ah

No Brasil, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2021, há um estupro a cada dez minutos no Brasil. O número é ainda mais assustador se observarmos que o índice de denúncias no país fica no entorno percentual de 10%. Portanto, claramente, temos casos de subnotificação o que sugere o agravamento exponencial da realidade brasileira no que tange ao estupro.

A família desta menina teve de procurar a Justiça em decorrência do hospital universitário Federal de Santa Catarina ter que se recusado a realizar o aborto em virtude de a menina estar com 22 semanas e dois dias, uma vez que segundo as regras internas do estabelecimento, o aborto somente poderia ser realizado até a vigésima semana. Definição esta não contemplada ou prevista pela lei penal, ao inverso, visto que o ordenamento penal vai por caminho diametralmente oposto, porque a norma é clara ao prever que o aborto é autorizado desde que seja a vontade da gestante ou de seu representante legal quando esta for incapaz, o que é o caso.

Em audiência, a magistrada afirma que o aborto após a vigésima semana pode ser considerado como uma autorização ao homicídio e indagou se a menina não poderia suportar a gravidez “mais um pouquinho” e, mesmo com a negativa da criança, houve clara indução e insistência para a mantença do status quo. Ora, não cabe a um representante da lei fazer uma pressuposição da norma, mas sim, a aplicar no caso concreto ainda mais quando os critérios são essencialmente objetivos.

O aborto legal, em decorrência de estupro, é uma norma estabelecida pelo ordenamento penal a fim de evitar que a vítima seja obrigada a conviver com o fruto do abuso e que os traumas advindos do estupro perdurem psicológica, física e/ou emocionalmente. Não existem critérios, limites ou impedimentos que autorizem qualquer magistrado a não conceder a medida, por se tratar de elemento objetivo, isto é, se a mulher/criança/incapaz foi vítima de estupro, seu aborto está legalizado, portanto, não há limite de semanas ou impedimentos com gestação ou qualquer outro subterfúgio que se queira utilizar além do próprio conservadorismo daquele que julga a medida.

De mais a mais sequer há no CP necessidade de autorização judicial para a aplicação da medida. Todavia, como o hospital se recusou a realizar o procedimento houve a provocação judicial a fim de garantir direito estipulado e previsto na norma penal brasileira. E, para perplexidade de qualquer estudante de direito, houve uma interpretação subjetiva de uma medida objetiva, insistimos nesse ponto.

Segundo reportagem, além da menina não ter seu direito garantido, houve piora em sua condição uma vez que, por determinação judicial, está mantida em abrigo a fim de se evitar que o procedimento seja realizado. Ora, a ignorância e o conservadorismo de algumas pessoas extrapola o senso comum. Não se precisa de elevada formação médica para se saber dos riscos físicos de uma gestação em uma menina de onze anos, já que seu corpo não está preparado para este processo, seus órgãos podem ser comprometidos, sua própria vida e a do feto podem estar em risco se a gestação prosseguir.

O fato é que a criança já se encontra no terço final de sua gestação e ainda não conseguiu ter seu direito legal ao aborto respeitado. Causa ainda mais espécie a argumentação, tanto da magistrada quanto da promotora, em quererem proteger a vida do feto: “Os riscos são inerentes a uma gestação nesta idade e não há, até o momento, risco de morte materna”.

Qual a lógica da magistrada e ratificada pela promotora? Observar a vida do feto para que este nasça prematuro, mas que a vida lhe seja preservada, ainda que posteriormente seja dado em adoção? Ora, nada disso está previsto em lei e, sequer este é o espírito da norma ter de se desdobrar em soluções criando novos problemas. Uma criança fruto de estupro que é mantida no útero da mãe contra a vontade da mesma e que “em tese” nasceria para não ter pais e ser colocada para adoção. Não há lógica e, tampouco, justificativa jurídica para o que se pretende em Santa Catarina.

Esta criança pode e deve ter seu direito de abortar respeitado. O que não se percebe é que há uma segunda violência em curso: a psicológica aplicada pela própria magistrada que tenta, reiteradamente, induzir a criança a manter a gestação, porém, será realmente que há uma plena compreensão da mesma do que está sendo feito pela magistrada? Este prolongamento do sofrimento não poderá ocasionar novos traumas ainda mais severos somados aos eventuais já impostos a uma criança de onze anos?

Não há interpretação, não há acomodação normativa quando se fala em defesa da dignidade da pessoa humana, da defesa de uma criança, mas sim, um claro vilipendio ao seu direito legal de exercer sua vontade de não querer prolongar uma situação danosa perpetrada por terceiro. Só faltou, neste arcabouço de bizarrices judiciais reiteradas, a magistrada chamar em juízo o estuprador para indagar se o mesmo não quereria ser o pai da criança e cuidar da mesma.

O Brasil possui problemas estruturais severos, a população está cada vez mais próxima da pobreza, no entanto, o que mais causa espécie não é a pobreza econômica, mas sim, a mental de uma julgadora em não cumprir uma norma de maneira objetiva, impor uma gestação sem que ninguém a tenha solicitado a fazer e induzir, tanto a criança quanto a mãe, a manter a gravidez de alto risco para o feto e sua mãe. Somente faltou dizer que seria o mais adequado para a promoção e mantenedura da família brasileira.

O que não foi observado, em momento algum, foi a posição da criança de 11 anos, senão vejamos: estupro de vulnerável, em geral, por algum parente próximo, com clara relação de confiança com resultado de violação e estupro de uma criança, com sequelas físicas, mentais e emocionais indeterminadas. Futuro comprometido e presente incerto com uma gravidez, uma criança cuidando de outra e sem nem se saber se o estuprador foi responsabilidade ou se há risco de nova violência para a criança, nada disso foi indagado ou pensado. O que a criança, de fato quer? O que foi dito é: voltar a ser criança e o que a justiça de Santa Catarina lhe impõe: ser mãe!

Será tão custoso compreender que tudo o que esta criança deseja é ter a sua vida de volta, brincar com as amiguinhas, estudar e ter seu cotidiano normal? Não, isso não lhe pode ser concedido, pois, eis que surge a Justiça e lhe impede, sem qualquer motivo concreto, de retirar o fruto indesejado de uma violação a seu corpo, já que sua “obrigação” dentro da moral e dos bons costumes é ter o fruto gerado em seu ventre. Nada, repito nada, dentro da legislação pátria autoriza o comportamento da magistrada em comento. Que seja autorizada a interrupção desta gravidez e que cesse imediatamente o sofrimento daquela que apenas e tão somente buscou auxílio e proteção da Justiça e encontrou o prolongamento de seu sofrimento e menoscabo do mesmo. Até quando?

Antonio Baptista Gonçalves
Advogado, pós-doutor em Desafios en la postmodernidad para los Derechos Humanos y los Derechos Fundamentales pela Universidade de Santiago de Compostela, pós-doutor em Ciência da Religião pela PUC/SP.

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