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Garantia de crédito tributário deve sobrestar a persecução penal porque resguarda interesse do Fisco e direitos do investigado

Uma vez apresentado seguro garantia na integralidade do crédito para discutir a legitimidade da exação, a persecução penal deve ser sobrestada até que a questão seja solucionada perante o juízo especializado na análise da matéria.

22/6/2022

Em crime material de sonegação fiscal, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal é de que a discussão na esfera judicial tributária sobre a legitimidade do crédito após seu lançamento definitivo não impede o prosseguimento da ação penal1, ainda que assegurado o crédito tributário por seguro garantia.

Os fundamentos frequentemente usados são: (i) a independência das instâncias cível e penal2; (ii) a suspensão do procedimento criminal é facultativa (art. 93 do CPP), dependendo da discricionariedade do Juízo diante das particularidades do caso concreto3; bem como o fato de que o seguro garantia (iii) não obsta os efeitos da constituição do crédito, pois a garantia do débito apenas permite a discussão sobre sua existência em juízo extrapenal e (iv) não consta como causa extintiva de punibilidade – não se equiparando ao pagamento/parcelamento do tributo4.

Com efeito, o Código de Processo Penal permite a suspensão do processo se o reconhecimento da infração penal depender de decisão de competência do juízo cível5. O delito de sonegação pressupõe a existência de dívida tributária, conforme dispõe a Súmula Vinculante 24 do STF: “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV da lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.

Ademais, o STJ possui o entendimento de que o juízo penal não é sede própria para a discussão de existência de nulidade no procedimento administrativo-fiscal, de modo que não deve estender sua jurisdição sobre matéria que não lhe compete6.

A prejudicialidade inerente à persecução penal e ao processo judicial tributário que discute a validade da exação revela-se, portanto, pela sua capacidade de desconstituir o lançamento definitivo do tributo, afetando diretamente a tipicidade penal, não obstante a independência das instâncias.

Nesse sentido, o STJ tem determinado a suspensão de inquéritos e ações penais quando há deferimento de medida liminar7 ou procedência da ação de anulatória, ainda que pendente de recurso, por repercutir sobre a constituição do crédito tributário, enfraquecendo a materialidade delitiva8. O STF também manteve suspensa a persecução penal em razão de vícios formais que tenham levado ao cancelamento do lançamento do tributo9.

O delito material de sonegação deve representar uma efetiva lesão à arrecadação tributária (bem jurídico tutelado pela norma), posto que o direito penal só deve ser aplicado como ultima ratio com o propósito de proteger bens jurídicos. O panorama histórico da legislação tributária revela o interesse do Estado em estimular o adimplemento de tributos através do direito penal. Ao longo do tempo, diversas leis foram editadas sobre a extinção da punibilidade em razão do pagamento10.

Atualmente, em caso de parcelamento do débito antes do recebimento da denúncia, a pretensão punitiva ficará suspensa (assim como o prazo prescricional) até que o saldo seja quitado ou cancelado o parcelamento (arts. 68 e 69, Lei n.º 11941/09). O pagamento integral, a qualquer tempo, acarreta a extinção da punibilidade (art. 9º, §2º lei 10.684/03).

Assim, a arrecadação tributária é assegurada pelo adimplemento integral da dívida, a despeito do método de quitação (em parcelas ou de uma só vez). Por conseguinte, o seguro garantia salvaguarda o bem tutelado pela norma penal, afastando a justa causa para a persecução, dado que “destina-se a garantir o objeto principal contra o risco de inadimplemento, pelo tomador, das obrigações garantidas” (art. 3º), o qual “continuará em vigor mesmo quando o tomador não houver pagado o prêmio nas datas convencionadas” (art. 16), conforme Circular 662/22 da Superintendência de Seguros Privados - SUSEP.

Com efeito, se dinheiro e seguro garantia são equiparados para fins de substituição de penhora e garantia do valor da dívida ativa (art. 835, §2º CPC e art. 9, II lei 6.830/80) e a arrecadação tributária é assegurada pelo pagamento integral, deve-se suspender a persecução penal quando o crédito está resguardado, especialmente quando a Fazenda aceita o seguro oferecido, porquanto há certeza de pagamento, a despeito de não ser imediato.

Ademais, o sobrestamento pelo seguro garantia estimula que mais dívidas tributárias sejam asseguradas por garantia líquida e certa, o que traz eficiência e tranquilidade à eventual execução. De outro lado, o Estado desincentiva o adimplemento do tributo se é dado o mesmo tratamento penal a quem garante integralmente o crédito e a quem não adota nenhuma providência para proteger o Fisco.

Desse modo, a suspensão do processo penal pelo seguro garantia atende aos interesses do Estado sem comprometer sobremaneira o capital do sujeito passivo da obrigação tributária, em respeito ao princípio da menor onerosidade do devedor (art. 805 CPC), conciliando o direito constitucional de discutir em juízo a legitimidade da exação (art. 5º, XXXV CR/88) e o direito da Administração no pagamento da dívida.

Inquéritos policiais têm sido sobrestados até o julgamento de ação anulatória, em razão da garantia por depósito integral11, o qual suspende a exigibilidade do crédito tributário (art. 151, II do CTN). A análise, entretanto, deve ir além da suspensão da exigibilidade que, como é cediço, protege o contribuinte contra atos de cobrança. A persecução penal não pode ser usada como método de coação ao pagamento imediato.

O sobrestamento também deve ser examinado a partir da finalidade do processo penal. O processo é o caminho necessário à apuração do delito e aplicação da pena12, mas trata-se sobretudo de instrumento de efetivação das garantias constitucionais, dentre as quais a dignidade da pessoa humana frente à violência do ritual judiciário13.

Inviável, portanto, que o processo (ou a investigação) penal permaneça em curso – submetendo o indivíduo a todos os constrangimentos inerentes à apuração criminal – se a apresentação da garantia leva a apenas duas situações: ou o Fisco tem o auto de infração confirmado, e a garantia é executada (extinguindo a punibilidade); ou o auto é desconstituído e nada é devido. Do contrário, utilizar-se-ia a persecução penal como pena em si mesmo e forma espúria de coerção ao pagamento, principalmente porque o sujeito passivo da obrigação tributária e o investigado são, frequentemente, pessoas distintas.

Por fim, inexiste prejuízo à apuração criminal na medida em que o prazo prescricional fica igualmente suspenso, nos termos do art. 116, I do Código Penal.

Isto posto, fica claro que uma vez apresentado seguro garantia na integralidade do crédito para discutir a legitimidade da exação, a persecução penal deve ser sobrestada até que a questão seja solucionada perante o juízo especializado na análise da matéria. Dessa forma, a medida resguarda o interesse do Estado no pagamento do tributo, contribui para que mais créditos tributários sejam garantidos e assegura direitos constitucionais dos contribuintes.

_______________

1 Jurisprudência em Teses do Superior Tribunal de Justiça n.º 176 e STF, AgR no HC 158053, Rel. Min. Cármen Lúcia., Segunda Turma, julg. 29.03.2019, publ. 10.04.2019; STF, HC 136.639, Rel. Min. Luiz Fux, julg. 14.10.2016, publ. 18.10.2016.

2 STJ, AgRg no REsp n. 1.390.734/PR, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, DJe de 21/3/2018.; STJ, AgRg no AgRg no AREsp n. 2.015.662/RO, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 10/5/2022, DJe de 13/5/2022.

3 STJ, RHC 88.672/GO, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 13/11/2018, DJe 28/11/2018.

4 STJ, AgRg no REsp n. 1.618.392/RJ, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe de 4/6/2020

5 Art. 92.  Se a decisão sobre a existência da infração depender da solução de controvérsia, que o juiz repute séria e fundada, sobre o estado civil das pessoas, o curso da ação penal ficará suspenso até que no juízo cível seja a controvérsia dirimida por sentença passada em julgado, sem prejuízo, entretanto, da inquirição das testemunhas e de outras provas de natureza urgente.

Parágrafo único.  Se for o crime de ação pública, o Ministério Público, quando necessário, promoverá a ação civil ou prosseguirá na que tiver sido iniciada, com a citação dos interessados.

Art. 93.  Se o reconhecimento da existência da infração penal depender de decisão sobre questão diversa da prevista no artigo anterior, da competência do juízo cível, e se neste houver sido proposta ação para resolvê-la, o juiz criminal poderá, desde que essa questão seja de difícil solução e não verse sobre direito cuja prova a lei civil limite, suspender o curso do processo, após a inquirição das testemunhas e realização das outras provas de natureza urgente.

§ 1º O juiz marcará o prazo da suspensão, que poderá ser razoavelmente prorrogado, se a demora não for imputável à parte. Expirado o prazo, sem que o juiz cível tenha proferido decisão, o juiz criminal fará prosseguir o processo, retomando sua competência para resolver, de fato e de direito, toda a matéria da acusação ou da defesa.

§ 2º Do despacho que denegar a suspensão não caberá recurso.

§ 3º Suspenso o processo, e tratando-se de crime de ação pública, incumbirá ao Ministério Público intervir imediatamente na causa cível, para o fim de promover-lhe o rápido andamento.

6 STJ, HC 467123, Rel. Min, Sebastião Reis Junior, Sexta Turma, julg. 23.06.2020, DJe 30.06.2020. No mesmo sentido: STJ, AgInt nos EDcl no REsp n. 1.717.016/PB, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 25/6/2019, DJe de 2/8/2019 e AgInt nos Edcl no REsp nº 1.717.016, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julg. 25.06.2019, DJe 02.08.2019

7 STJ, AgRg no RHC 66007, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julg. 28.04.2020, DJe 05.05.2020

8 STJ, RHC n. 113.294/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 13/8/2019, DJe de 30/8/2019.

9 STF, Recl. 31194, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, julg. 29.11.2019, publ. 13.12.2019 e STF Rcl. 46215, REl. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, julg. 27.04.2021, publ. 05.05.2021

10 Lei n.º 4.729/65 (art. 2º), Lei 8.137/90 (art. 14), Lei nº 9.249/95 (art. 34); Lei nº 9.964/00 (art. 15), Lei n.º 10.684/03 (art. 9º), Lei 11.941/09 (arts. 68 e 69) e Lei n.º 12.382/11 (art. 6º)

11 STJ, RHC n. 139.563/CE, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe de 27/9/2021.

12 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal – 10 ed. – São Paulo: Saraiva, 2013, p. 76.

13 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal – 10 ed. – São Paulo: Saraiva, 2013, p 80.

Leonardo Salgueiro
Sócio do escritório Fragoso Advogados.

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