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Procedimentos relativos à norma geral anti-elisão – MP nº 66/2002

As inovações trazidas pela MP 66/2002 configuram verdadeira afronta à Constituição Federal.

12/9/2002

 

Procedimentos relativos à norma geral anti-elisão – MP nº 66/2002 *

Luciana Rosanova Galhardo

Priscila Stela Mariano da Silva

Estevão Gross Neto

Em 30.8.2002, foi publicada a Medida Provisória nº 66 ("MP 66/2002") que teve como objetivo promover uma "minirreforma tributária". A medida tratou de diversos assuntos, tais como o fim da cumulatividade da Contribuição para o Programa de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público ("PIS/PASEP"), a compensação de créditos fiscais, o pagamento e parcelamento de débitos tributários federais, entre outros. No entanto, analisaremos aqui somente as disposições que regulam a possibilidade de o Fisco vir a desconsiderar atos e negócios praticados pelo contribuinte.

A possibilidade de o Fisco vir a desconsiderar atos ou negócios praticados pelos contribuintes está prevista no artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional ("CTN"), com a redação dada pela Lei Complementar nº 104, de 10.1.2001 ("LC 104/01"). De acordo com o referido dispositivo, a autoridade administrativa poderá desconsiderar os atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.

À época da publicação da LC 104/01, muito se discutiu a respeito do alcance, validade e constitucionalidade dessa norma, que pretendia combater a elisão fiscal. Elisão fiscal é a prática denominada economia lícita de tributo, em que o contribuinte analisa as alternativas legais disponíveis para a estruturação de seus negócios e adota aquela com menor carga tributária.

Já trazia grande preocupação a possibilidade de negócios válidos, lícitos e eficazes, praticados pelos contribuintes, virem a ser desconsiderados pelo Fisco simplesmente porque implicavam economia fiscal.

Até a publicação da MP 66/2002, contudo, a LC 104/01 não poderia ser aplicada pois uma de suas próprias disposições previa a necessidade de lei ordinária estabelecer os procedimentos a serem observados para a desconsideração dos atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

Com a publicação da MP 66/2002, que pretendeu justamente regulamentar a aplicação da LC 104/01, volta à pauta a discussão acerca da constitucionalidade e legalidade desta "norma anti-elisão".

O artigo 13 da MP 66/2002 praticamente repete o texto do artigo 116 do CTN, estabelecendo que poderão ser desconsiderados pelo Fisco os atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. Esclarece, contudo, preliminarmente, que os atos ou negócios jurídicos a que se refere não são aqueles que implicam a ocorrência de dolo, fraude ou simulação. Assim, a MP 66/2002 eliminou os questionamentos antes existentes quanto ao significado do verbo "dissimular" e quanto ao alcance da norma, deixando claro que esta não se referia a atos simulados (conforme defendia grande parte da doutrina até então) e que se pretende de fato combater diretamente as práticas de planejamento tributário.

A letra do artigo 14 da MP 66/2002 corrobora esse entendimento, dispondo que são passíveis de desconsideração os atos ou negócios jurídicos que visem reduzir o valor de tributo, evitar ou postergar o seu pagamento, ou ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

Para avaliar os atos ou negócios praticados pelo contribuinte e determinar sua desconsideração, as autoridades fiscais deverão basear-se nos seguintes critérios: (i) falta de propósito negocial; e (ii) abuso de forma.

A falta de propósito negocial ficaria evidenciada caso o contribuinte realizasse determinado ato ou negócio, optando pela forma mais complexa ou mais onerosa, entre aquelas existentes para a prática de tal ato ou negócio. O abuso de forma jurídica corresponderia à prática de um ato ou negócio jurídico indireto que produzisse o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico simulado.

Além da falta de propósito negocial e do abuso de forma, existe a previsão genérica de que outros critérios (não mencionados) podem ser levados em conta para fundamentar a desconsideração de ato ou negócio jurídico.

De maneira simplificada, o Fisco estaria autorizado a desconsiderar um ato ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte sempre que entendesse que haveria uma outra alternativa a ser seguida, mais normal ou mais usual que aquela adotada, capaz de produzir os mesmos efeitos econômicos, mas onerada com uma carga tributária maior.

Trata-se de verdadeira tributação por analogia, vedada pelo artigo 108, parágrafo 1º do Código Tributário Nacional. Mesmo assim, os artigos 16 e 17 da MP 66/2002 deixam claro que é a analogia que determinará a desconsideração dos atos dos contribuintes.

O artigo 16 da MP 66/2002 determina que, ao final do procedimento de fiscalização, o servidor competente para efetuar o lançamento do tributo deverá encaminhar à autoridade administrativa responsável pela fiscalização uma representação solicitando a desconsideração dos referidos atos. Tal representação deverá conter relatório circunstanciado do ato ou negócio praticado e a descrição dos atos ou negócios equivalentes ao praticado (parágrafo 3º, inciso I, do artigo 16).

Posteriormente, conforme determinado pelo artigo 17, a autoridade administrativa responsável decidirá, em despacho fundamentado, sobre a desconsideração dos atos ou negócios jurídicos praticados. Tal despacho deverá conter, além da fundamentação: (i) descrição dos atos ou negócios praticados; (ii) discriminação dos elementos ou fatos caracterizadores de que os atos ou negócios jurídicos foram praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária; (iii) descrição dos atos ou negócios equivalentes aos praticados, com as respectivas normas de incidência dos tributos; e (iv) resultado tributário produzido pela adoção dos atos ou negócios equivalentes referidos no item (iii) acima, com especificação, por tributo, da base de cálculo, da alíquota incidente e dos encargos moratórios.

As inovações trazidas pela MP 66/2002 configuram verdadeira afronta à Constituição Federal, pois a tributação por analogia e a concessão de poderes discricionários às autoridades administrativas ferem princípios basilares de nosso ordenamento jurídico, tais como o princípio da legalidade, da segurança jurídica, da livre iniciativa e da propriedade privada.

No plano do direito tributário, o princípio da legalidade adquire contornos estritos, sendo designado como princípio da estrita legalidade. Em função da reserva absoluta de lei, o Fisco só pode exigir tributo se houver um ato normativo com força de lei que estabeleça que determinada situação específica está sujeita a tributação. A lei deve conter não somente a autorização para a conduta arrecadatória do Fisco, mas também uma descrição completa dos elementos e critérios que irão determinar a exigência tributária no caso concreto.

Nesse sentido, podemos falar também em princípio da tipicidade tributária, segundo o qual a norma tributária deve conter uma descrição completa e de tal modo precisa dos fatos, que leve a uma aplicação objetiva da norma, impedindo uma interpretação subjetiva ou tendenciosa por parte do Fisco.

Assim, o tributo só se torna devido quando verificamos no caso concreto exatamente a conduta prevista na norma, com todos os seus contornos, não sendo possível haver exigência fiscal se não ocorre precisamente a hipótese descrita.

Quando o contribuinte se antecipa ao fato gerador do tributo, adotando as alternativas legais disponíveis para estruturar seus negócios sem realizar a conduta descrita em lei, não há que se falar em tributação.

Não pode o Fisco obrigar o contribuinte a praticar o fato gerador do imposto, ou a adotar a alternativa mais onerosa para realização de seus negócios. Do contrário, estaremos diante de verdadeira hipótese de confisco, e de verdadeira afronta ao princípio da legalidade, em todas as suas formas.

Igualmente, não pode o Fisco exigir tributação simplesmente porque o ato praticado pelo contribuinte tem os mesmos efeitos econômicos daquele previsto em lei como fato gerador do tributo. Para que ocorra a tributação, é necessário que haja um ato normativo com força de lei que descreva especificamente aquela hipótese de incidência, de forma clara e detalhada. Não é admitido o uso de analogia (conforme previsto no artigo 108, parágrafo 1º do CTN) para se alargar o campo de atuação da norma tributária. A lei tributária é taxativa, cerrada, e não abre espaço para a discricionariedade na sua interpretação.

O próprio artigo 110 do CTN estabelece que o conteúdo, o alcance, o conceito e as formas dos institutos de direito privado não podem ser alterados pelas autoridades fiscais na interpretação ou aplicação da lei. Justamente por isso, é vedado às autoridades fiscais desconsiderar um negócio jurídico lícito e tecnicamente perfeito, do ponto de vista do direito privado, para dar-lhe determinado efeito tributário através de uma interpretação econômica.

Ao instituir a possibilidade de desconsideração de um negócio jurídico devido à ausência de "propósito negocial" ou pela adoção de um mecanismo indireto, a MP 66/2002 fere não só o princípio da legalidade, como também o princípio da livre iniciativa e da propriedade privada, que garantem ao contribuinte o direito de organizar seus negócios e dispor de seus bens da maneira que bem lhe aprouver.

Os defensores da teoria do "abuso de direito" alegam que a livre iniciativa do contribuinte e seu direito de organizar os negócios da maneira menos onerosa possível, tem como limite o direito arrecadatório do Fisco, bem como os princípios constitucionais da isonomia e da capacidade contributiva. Nesse sentido, se dois atos ou negócios jurídicos têm efeitos econômicos similares, indicando que os agentes econômicos têm a mesma capacidade contributiva, o tratamento tributário aplicável a esses dois negócios deve ser exatamente o mesmo.

Muito embora válido o argumento da isonomia, ele esbarra no princípio da legalidade, à medida que deveria haver previsão legal específica equiparando a tributação de um determinado negócio jurídico à tributação do outro. Ademais, instaura-se o conflito com a norma que impede a tributação por analogia.

A simples tentativa de se estabelecer uma regra genérica que permita uma equiparação de negócios jurídicos pelas próprias autoridades administrativas, com base em critérios subjetivos, sem prévia e específica previsão legal, é medida perigosa que põe em risco a segurança jurídica do contribuinte e certeza da incidência tributária, tornando a tributação um mecanismo aleatório e desigual.

Na prática, as alterações promovidas pela MP 66/2002 dão às autoridades fiscais poderes demasiadamente amplos, um "verdadeiro cheque em branco" que ameaça a ordem jurídica.

Através de uma norma de tal natureza, cria-se um campo temerário e subjetivo para as autoridades fiscais, em flagrante desrespeito aos princípios consagrados em nossa Constituição. O assunto é polêmico e deverá ser objeto de longas discussões doutrinárias e judiciais.

______________

* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

Ó

2002. Direitos Autorais reservados a Pinheiro Neto Advogados.

 

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