A primeira eleição em território brasileiro data de 1532. Naquela oportunidade, apenas tinham direito ao voto os chamados “homens bons”: homens, brancos, com certa linhagem familiar, acúmulo de bens e de propriedade.
Quase 300 anos depois, em 1824, a primeira Constituição Brasileira permitia a alguns brasileiros votarem indiretamente para os cargos de senador e de deputado. Mais uma vez, só tinham capacidade eleitoral os homens, brancos, com mais de 25 anos de idade e que comprovassem determinada renda. Em outras palavras, não podiam votar os jovens, as mulheres, a maior parte dos assalariados, os soldados, os índios e todos os negros escravizados.
Finalmente, já em tempos de República, ocorreu a primeira eleição direta para ocupar o cargo da presidência. Em 1894, Prudente de Morais foi eleito com apenas 270.000 votos (cerca de 2% da população brasileira naquele momento).
Em 1932, enfim, as mulheres conquistaram o direito de elegerem as pessoas que as representariam – direito exercido efetivamente nas eleições de 1935 e rapidamente interrompido pela ditadura varguista de 1937. Apenas em 1946, os brasileiros e brasileiras (somente alfabetizados e alfabetizadas) puderam voltar a se manifestar nas urnas. Durou menos de 20 anos. Mais uma vez, o direito de eleger diretamente a pessoa a ocupar o cargo da presidência da República foi interrompido pelo golpe militar de 1964.
A história do direito de voto no Brasil, portanto, é de exclusão e de (poucos) altos e (muitos) baixos. Entretanto, abandonando de vez um regime ditatorial que suprimiu os mais básicos direitos fundamentais e da cidadania, a promulgação da Constituição Federal de 1988 instituiu o sufrágio universal (mais conhecido como o pleno direito de votar e de ser votado): “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, dita o parágrafo único do primeiro artigo da Constituição Cidadã.
“Vi a história brotar nas ruas e na garganta do povo; vi, pela onipotência do voto direto, a ressurreição da participação política e das pressões legítimas pelos preteridos e injustiçados.” Com essa frase, Uliysses Guimarães expressou bem o otimismo de sua era: enfim, brasileiros e brasileiras participariam ativamente na escolha dos rumos da nação!
Natural que se acreditasse naquele momento que a participação política através do voto direto seria para sempre exercida com gosto, em comemoração àquela importante conquista banhada de sangue e suor após séculos de exclusão. Porém, 34 anos depois, uma crise democrática tomou forma através do aumento dos votos em brancos e nulos.
Muitos que votam branco ou nulo consideram uma forma de protesto e de expressar o descontentamento com o cenário político atual e com os sujeitos que, de alguma maneira, parecem personificá-lo. Não cabe aqui qualquer julgamento moral contra ou a favor daqueles que pensam dessa maneira. Afinal, a democracia não se exerce apenas pelo voto, mas também pelas diversas formas de manifestação do pensamento, particularmente por meio de protestos das mais diversas naturezas.
Nesse sentido, brilhante é a Constituição de 1988 que, conforme ensinamentos de Joaquim Falcão, “não nos destinou e fez prisioneiros definitivos da ambição monopolista da democracia partidária. Aquela que se exerce apenas pelo sistema partidário e por eleições com voto direto, secreto, obrigatório e periódico, para o Poder Executivo e para o Poder Legislativo.”
A Ordem Constitucional fundada em 1988, portanto, trouxe mais do que o sufrágio universal. Ela estabeleceu a “democracia concomitante” no Brasil, conceito explicado por seu idealizador mencionado acima: “Entendemos a representação política dos cidadãos no poder como gênero. Comporta pelo menos três espécies de representação: representação partidária, representação direta (que dispensa representação) e representação participativa. Daí falarmos em democracia partidária, democracia direta e democracia participativa. A soma das três é a democracia concomitante.”
De todo modo, exercer a cidadania e viver a democracia, independente da(s) espécie(s) escolhida(s) para se manifestar(em), exige informação e conhecimento. Por essa razão, é importante que se compreenda exatamente o que é e quais são os efeitos dos votos brancos e nulos.
Primeiramente, importante saber que as eleições no Brasil são ditadas por regras diferentes a depender do cargo em disputa. Este texto é focado na eleição aos cargos de chefe do Poder Executivo Federal, Estadual e Municipal, ou seja, a Presidência da República, a governança das unidades federativas e a prefeitura dos municípios.
O artigo 77 da Constituição da República de 1988, em seus §§ 2º e 3º, determina que “será considerado eleito Presidente o candidato que, registrado por partido político, obtiver a maioria absoluta de votos, não computados os em branco e os nulos”. “Se nenhum candidato alcançar maioria absoluta na primeira votação, far-se-á nova eleição em até vinte dias após a proclamação do resultado, concorrendo os dois candidatos mais votados e considerando-se eleito aquele que obtiver a maioria dos votos válidos”.
Nesse contexto, a eleição se dá pelo sistema majoritário simples: a pessoa candidata a ocupar o cargo de Chefe do Poder Executivo será eleita se obtiver mais da metade dos votos válidos, que desconsideram os votos brancos e nulos.
De acordo com o Glossário Eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral, o voto em branco é aquele em que o eleitor não manifesta preferência por nenhum dos candidatos. Já o voto nulo, por sua vez, é aquele em que o eleitor manifesta sua vontade de anular o voto. Para votar nulo, o eleitor precisa digitar um número de candidato inexistente.
Explica o Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo que “antigamente como o voto branco era considerado válido (isto é, era contabilizado e dado para o candidato vencedor), ele era tido como um voto de conformismo, na qual o eleitor se mostrava satisfeito com o candidato que vencesse as eleições, enquanto o voto nulo (considerado inválido pela Justiça Eleitoral) era tido como um voto de protesto contra os candidatos ou contra a classe política em geral”.
Atualmente, porém, a diferenciação deixou de ser relevante, pois vigora a regra da maioria absoluta dos votos válidos. Ou seja, tanto os votos nulos quanto os brancos não são computados. Nesse sistema, conforme explica Said Farhat, “votos nulos [e acrescentamos aqui: brancos] são como se não existissem: não são válidos para fim algum.”
Importante mencionar que há uma grande onda de desinformação no sentido de que caso mais de 50% dos eleitores anulassem seus votos, haveria uma nova eleição. O fato é que isso não procede, sendo essa uma das maiores fake news de todos os tempos. Provavelmente, a origem desse desentendimento está em uma interpretação equivocada do artigo 224 do Código Eleitoral, que dita que “se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais ou do município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias.”
Contudo, a “nulidade” a que se refere o artigo 224 não tem relação com o “voto nulo”. O artigo 224 está inserido no Capítulo V do Código Eleitoral, que dita as regras referentes à nulidade da votação. Trata-se de circunstâncias em que a votação é nula por motivos como, por exemplo, ser realizada em dia, hora, ou local diferentes do designado (artigo 220, III, do Código Eleitoral); ou é anulável por razões como, por exemplo, alguém votar com falsa identidade em lugar de outro eleitor (artigo 221, III, c, do Código Eleitoral).
Embora o sistema brasileiro opte pela obrigatoriedade da votação, como votar ou em quem depende apenas do eleitor, que deve exercer seu direito de forma consciente. Por isso, ao votar nulo ou em branco, necessário que se entenda que está sendo exercida uma opção ativa de não participar da democracia direta.
Em um contexto geral, como já citado, entende-se que essa pode ser considerada por alguns como uma forma legitima de protesto contra a atual situação política, seja a respeito dos partidos e candidatos ou do declínio da confiança e credibilidade no processo. Votar nulo ou votar em branco é, sobretudo, um direito da cidadania.
Entretanto, assim como é necessário compreender as consequências técnicas de se optar pelo exercício desse direito, é crucial que se haja consciência da crise de representatividade que é agravada pelo acúmulo de votos brancos e nulos. Por exemplo, no segundo turno da eleição presidencial de 2018, 42,1 milhões de eleitores (cerca de um terço do total) não escolheram nenhum candidato, seja através do voto nulo, do voto em branco ou da abstenção.
Essa crise de representatividade acaba por ir além do processo eleitoral, ou seja, o povo não se sente plenamente representado pelos partidos políticos, pelos indivíduos que os compõem ou pelos atuais ocupantes dos cargos. Apesar de serem legítimos os votos em branco e nulos, os mesmos não são considerados ao final do processo eleitoral, o que coloca em questionamento a soberania popular. Afinal, de acordo com os dados oficiais, cerca de 58 milhões de eleitores votaram para eleger o atual Presidente da República (Jair Bolsonaro), enquanto 89 milhões optaram por outro candidato ou por não participar. Padrão semelhante à anterior ocupante do cargo (Dilma Rousseff), que se elegeu com apenas 38,2% dos votos totais. Percebe-se, assim, um padrão na frágil democracia brasileira nas últimas eleições: há mais pessoas que não se veem representadas pela pessoa que ocupa (ou que ocupou) o mais alto cargo da nação, do que pessoas que efetivamente escolheram aqueles projetos políticos.
A história do direito de voto no Brasil mostra que não houve uma ascensão contínua e natural de direitos. O sufrágio universal foi conquistado aos poucos, com fortes decadências e interrupções ao decorrer do percurso. Parece ruim para os rumos de uma nação andar em círculos: lutar tanto por um direito para, ao fim, não o ver exercido. Rodar e rodar, mas, em pleno 2022, acabar com um cenário eleitoral não tão diferente daquele que elegeu Prudente de Morais em 1894: com pouca participação popular.