Migalhas de Peso

Escalada dos preços dos combustíveis, um problema criado pela Constituição Cidadã de 1988

Destruiu-se um regime tributário simples, funcional e eficiente (imposto único) em nome da idéia de vanguarda e moderna que não deu certo, seguida da tentativa de consertar o estrago por meio inconstitucional.

13/6/2022

Há anos estamos assistindo aos debates sobre a crise dos combustíveis motivada pela escalada de seus preços que encarece o custo dos transportes, e, consequentemente, dos produtos e mercadorias transportadas que pressionam, por sua vez, o processo inflacionário que retira do cidadão o poder aquisitivo da moeda.

O consumidor, portanto, é duplamente atingido pela alta do preço dos combustíveis.

Várias tentativas de solução foram feitas pelo governo.

No governo Michel Temer, para interromper a greve dos caminhoneiros que ameaçava perigosamente o abastecimento dos grandes centros urbanos, com consequências imprevisíveis, foi implantado o regime de tabelamento de preços mínimos de transportes em nível que assegurasse razoável margem de lucro aos transportadores (caminhoneiros).

Lamentavelmente o Brasil priorizou o transporte terrestre, o meio de transporte mais caro, ficando acima do transporte ferroviário, e bem além do transporte marítimo, o mais barato deles.

Tempos se passarão e os fatores conjunturais supervenientes, como a guerra Ucrânia/Rússia, provocaram a escalada de preços dos combustíveis atrelados à variação cambial e à variação de preço do barril de petróleo no mercado internacional.

Foi tentada a redução dos preços da gasolina e do diesel por meio da lei complementar 192/22 que previu a instituição de tributação monofásica dos combustíveis derivados de petróleo, por meio de alíquotas variáveis ou por intermédio de alíquota ad rem segundo a deliberação dos Estados por intermédio do CONFAZ.

Pois bem, os Estados deliberaram instituir a tributação monofásica desses combustíveis por meio de alíquotas ad rem.

Dessa forma, o convênio 16/22 fixou o preço da gasolina em R$ 0,9986 o litro, ao passo que, odo diesel foi fixado em R$ 1,0060 o litro.

E previu, também, o regime de equalização de preços desses combustíveis, tendo em vista a diversidade de preços vigorantes nas diferentes regiões do país, em vista do custo de transportes para locais distantes das refinarias.

Por outro lado, a União zerou as alíquotas do PIS/Cofins, inclusive, sobre os combustíveis importados.

Porém, o tiro saiu pela culatra, pois, o preço do diesel ficou mais caro do que o preço vigente antes da eclosão da guerra Ucrânia/Rússia.

Esse novo regime tributário foi suspenso pela liminar concedida pelo ministro Alexandre de Moraes, antes mesmo da entrada em vigor em julho de 2022.

Foi, então, que o Congresso Nacional elaborou o PLP 18/22 prevendo a alíquota máxima de 17% do ICMS em relação a mercadorias e serviços essenciais. Depois de aprovada pela Câmara dos Deputados a proposta legislativa seguiu para o Senado Federal.

A aludida proposta padece do vício de inconstitucionalidade formal, porque a fixação de alíquotas seletivas em função da essencialidade de mercadorias e serviços é de competência do legislador estadual (art. 155, § 2º, III da CF), e não do legislador nacional.

Os Estados (governadores) estão exercendo forte pressão sobre o Senado Federal para rejeitar a proposta legislativa em discussão.

Na verdade, a pressão dos governadores para manter uma tributação dos combustíveis, um bem essencial, em nível superior à dos produtos em geral não é legítima, pois, já foi declarado pelo STF, em relação à energia elétrica tributada por 25% ou 32% conforme o Estado, que não pode essa tributação superar a alíquota vigente para as mercadorias e serviços em geral.

O caso julgado pelo STF referia-se à legislação do Estado de Minas Gerais que tributava a energia elétrica com a alíquota de 25%, enquanto as mercadorias e serviços em geral eram tributados por 17%.

O Estado de Minas pressionou o STF e este modulou os efeitos da decisão para a partir de 2024. Até lá Minas pode continuar tributando de forma inconstitucional.

Isso encorajou os demais Estados a não reduzirem as alíquotas incidentes sobre mercadorias e serviços essenciais (energia elétrica, combustíveis e telecomunicações), além de pressionarem o Senado Federal para manter essa tributação exacerbada, que representa a implementação ao inverso da seletividade de alíquotas em função da essencialidade de mercadorias e serviços.

Tributa-se mais onde é essencial a mercadoria e serviços porque são mais rentáveis e mais fáceis de arrecadar.

Essa monstruosidade que estamos vivenciando, sem que não haja órgão capaz de inibi-la de pronto, é fruto da Constituição Cidadã de 1988.

A nova ordem constitucional veio à luz sob o impacto de um discurso oco, porém, eficiente em torno da tributação não acumulativa que seria o regime tributário moderno que faria a economia crescer retirando a “odiosa” carga tributária em cascata.

Lembro-me que à época da vigência do IVC, à alíquota de 6%, da fonte produtora até o consumidor final, a alíquota final somava a 18%. O ICMS, que ao contrário do IVV, é um imposto não cumulativo, começa com a alíquota de 18%. Não é preciso ser inteligente para saber qual regime tributário é mais caro para o contribuinte. Mas, todos pagam felizes o imposto “não cumulativo” porque se livram da “odiosa tributação em cascata” plantada na cabeça dos leigos pelos astutos legisladores que engendram um regime tributário que não mais tributa em cascatas, mas, por meio de cachoeiras e por meio de comportas abertas de grandes represas do tipo Itaipu.

O que interessa para o contribuinte e para o consumidor não é o regime tributário, mas, o tributo barato e simples, sem complicações para a sua apuração com créditos/débitos e estorno de créditos nos casos de isenção e de não incidência (art. 155, § 2º, II da CF).

A ordem constitucional antecedente previa um regime tributário sobre os combustíveis bem simples e de fácil regulação do nível de sua imposição, para reduzir o custo desses combustíveis, conforme dispunha o art. 21, inciso VIII da CF/69 (Emenda 1/69)

Esse inciso VIII inseria na competência tributária da União a tributação única dos combustíveis nos seguintes termos:

“VIII - produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes e combustíveis líquidos ou gasosos e de energia elétrica, imposto que incidirá uma só vez sobre qualquer dessas operações, excluída a incidência de outro tributo (imposto) sobre elas.”

O mesmo regime era previsto em relação aos minerais do país (inciso IX).

Esse regime simples e inteligente colocava em mãos da União a tributação de mercadorias e serviços essenciais indispensáveis ao desenvolvimento das atividades econômicas.

O imposto único, como ficou conhecido, tinha por fim destinar o produto de sua arrecadação para custear as despesas de investimentos na áreas essenciais, para aumentar a capacidade produtiva do país.

Mas, veio a Constituição Cidadã de 1988 com o discurso de moderno tributo não cumulativo e inseriu na competência dos Estados a tributação sobre combustíveis, energia elétrica, comunicações e transportes intermunicipais e interestaduais (art. 155, § 2º, II da CF/88).

O antigo “imposto único” foi transformado em ICMS de competência estadual, passando esse imposto a revestir a natureza de imposto para custear as atividades gerais dos Estados membros. De imposto de investimento passou para imposto de custeio.

Com 26 Estados membros mais o e Distrito Federal, cada qual detendo sua competência legislativa própria em nome da autonomia da unidade federativa (art. 18 da CF), é impossível pensar em redução de alíquotas de forma uniforme. Na ordem constitucional antecedente somente a União definia a política tributária dos combustíveis e energia elétrica indispensáveis ao desenvolvimento de nossa economia.

Daí a tentativa do PLP 18/22 de fazer essa tributação uniforme dos combustíveis avançando na competência legislativa dos Estados membros.

Conclusão, destruiu-se um regime tributário simples, funcional e eficiente (imposto único) em nome da idéia de vanguarda e moderna que não deu certo, seguida da tentativa de consertar o estrago por meio inconstitucional.

Agora, os técnicos do Ministério da Economia estão estudando uma PEC para ZERAR as alíquota do ICMS incidente sobre o diesel, dentro da política de tudo ou nada.

É claro que isso não vai dar certo. É preciso, antes de mais nada, que os Estados reformulem a sua política tributária para redistribuir a carga tributária dos combustíveis e da energia elétrica para as mercadorias e serviços não essenciais, sob pena de quebradeira generalizada dos Estados que ao final de contas sobrará para a União socorre-lis financeiramente.

É incrível o que vem acontecendo em nosso país. Nada que esteja dando certo pode perdurar. É preciso sempre partir para o novo, o desconhecido, o moderno de efeito incerto e não sabido.

Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.

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