Em recente acórdão publicado no início abril de 2022, a Segunda Câmara Cível do TJ/RJ, acolhendo a tese defendida em sede de contrarrazões pela empresa apelada, deixou de conhecer recurso de apelação, diante da constatação da ausência de impugnação específica dos fundamentos da sentença recorrida1.
Pelas mesmas razões, a Quarta Câmara Cível do TJ/RJ, também decidiu no mesmo sentido, ao julgar recurso de apelação que deixou de cumprir este importante requisito extrínseco de admissibilidade recursal.
A semelhança entre os dois julgados em destaque não se limita ao resultado das demandas. Outro fator comum entre os processos são os valores envolvidos nas causas. Tratam-se de processos típicos de enquadramento no contencioso cível estratégico. Para que se tenha uma ordem de grandeza, o valor da causa das duas demandas somado alcançou a quantia de um pouco mais de R$ 32 milhões. Tem-se, pois, que o entendimento fixado pelo tribunal fluminense nesses dois julgados, de inegável cunho estratégico para os demandantes, indica uma tendência das instâncias ordinárias exigirem com mais rigor, o que já vem sendo feito há muito tempo pelos tribunais superiores, ou seja, o preenchimento dos requisitos extrínsecos de admissibilidade recursal.
No âmbito do STJ, o crivo de admissibilidade dos recursos submetidos à análise da corte superior é bastante rigoroso, restringindo-se, assim, as possibilidades do enfrentamento do mérito recursal.
Entre as súmulas editadas pela corte superior no que diz respeito aos óbices para o enfretamento do mérito das razões de recursos submetidos às Turmas do STJ, destaca-se o verbete sumular 182:
“É inviável o agravo do art. 545 do CPC que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada”
A jurisprudência do STJ tem aplicado a súmula 182, especialmente quando as razões do agravo interposto em face da decisão denegatória do recurso especial se limitam a repetir os fundamentos expostos no próprio recurso especial, sem atacar os fundamentos específicos da decisão denegatória propriamente dita.
Tal rigor não vinha sendo visto nas instâncias ordinárias, mais especificamente nos julgamentos em segundo grau de jurisdição no Tribunal do Rio de Janeiro. Ainda que o código de processo civil possua previsão expressa para que o crivo de admissibilidade dos recursos em segundo grau também possa ser rigoroso neste sentido, na prática, as inteligências do art. 932, inciso III, e do art. 1.010, inciso III, ambos do CPC, vinham sendo pouco aplicadas nos julgamentos das apelações cíveis.
Não obstante, os dois recentes precedentes aqui indicados evidenciam que há uma sinalização clara no sentido de se passar a impor um maior rigor na verificação dos requisitos extrínsecos de admissibilidade recursal, ainda em segundo grau de jurisdição, especialmente quando o julgador for alertado pela parte.
Por isso, revela-se relevante entender a construção jurídica que foi estruturada nessas duas demandas e validada pelo tribunal nos acórdãos proferidos pela Segunda e Quarta Câmaras Cíveis, respectivamente.
Como em ambos os processos os recursos de apelação manejados em face das sentenças de primeiro grau se limitaram a reproduzir os argumentos defendidos nas defesas, sem, contudo, enfrentar os fundamentos das referidas sentenças, arguiu-se em sede de contrarrazões a afronta ao princípio da dialeticidade recursal e a consequente incidência do art. 932, inciso III e do art. 1.010, inciso III, ambos do CPC. Dispõem os dispositivos legais em comento:
“Art. 932. Incumbe ao relator:
III - não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida.
Art. 1.010. A apelação, interposta por petição dirigida ao juízo de primeiro grau, conterá:
III- as razões de reforma ou de declaração de nulidade”
Nos acórdãos que julgaram os recursos de apelação, a tese de violação ao princípio da dialeticidade recursal diante da constatação da ausência de impugnação específica dos fundamentos da sentença foi reconhecida, valendo destacar os seguintes trechos dos julgados:
Apelação Cível 0100620-80.2021.8.19.0001 -
“(...) No mérito, a apelante reitera ipsis litteris a argumentação veiculada na contestação, no sentido de que, em resumo, os dados produzidos e entregues pela autora teriam sido realizados em desacordo com os requisitos constantes na especificação técnica do contrato. Ocorre que não juntou à contestação nenhuma prova documental a fim de corroborar o alegado. E, instada em provas, manifestou desinteresse na fase probatória (e-fls. 670). Sobreveio a sentença, fundamentando que “No caso dos autos, a ré alega que os dados produzidos e entregues pela autora teriam sido realizados em desacordo com os requisitos constantes na especificação técnica do contrato, razão pela qual foram reprocessados e interpretados pela própria ré. Entretanto, tal alegação está desacompanhada de qualquer prova.”. Mas, como pontuado, a apelante reproduz o teor da contestação de e-fls. 554/573, consoante se verifica do cotejo de ambas as peças; não exercendo combate às razões sentenciais (...). Deve-se concluir, portanto, que diante do relatado acima, in casu, na verdade, a matéria devolvida a esta colenda Corte não guarda relação direta com a sentença recorrida, sendo certo que as razões recursais se encontram divorciadas da matéria objeto do decisum impugnado. Deveras, se substitutiva fosse a atuação do segundo grau, não haveria necessidade de irresignação analítica ponto a ponto, mas como é recursal a atividade desempenhada nesse grau de jurisdição, a parte insatisfeita, ao recorrer da sentença, tem a obrigação de declinar os pontos que pretende ver reformados e indicar os fundamentos de fato e de direito que servem de amparo para a sua pretensão. Assim, tem-se que a inicial recursal se revela incongruente, máxime porque as razões contidas no seu bojo não guardam relação com a sentença recorrida”.
Apelação cível 0216631-03.2018.8.19.0001 -
“Assim, o recurso interposto não atende ao disposto no art. 1.010, III, do CPC/20151, tendo em vista que as razões do apelo não impugnam especificadamente os fundamentos da sentença. (...) Vale observar que a simples repetição de argumentos expendidos perante o Juízo de primeiro grau, sem abordar especificadamente as teses de que se valeu o Juízo de piso para embasar o decisum recorrido, traduz inconformismo infundado da parte com a decisão desfavorável, não ensejando, assim, o reexame da matéria e a prolação de novo julgamento, haja vista o descumprimento do chamado “Ônus da Impugnação Especificada”. (...) Enfim, considerando que a parte apelante não atacou as razões de decidir do Juízo sentenciante, deixando assim de atender a requisito extrínseco de admissibilidade, impõe-se o não conhecimento do recurso. Por conta de tais fundamentos, voto no sentido do não conhecer do recurso, por flagrante inadmissibilidade”.
Verifica-se, pois, imperiosa, a dialeticidade entre a decisão recorrida (sentenças) e as razões recursais. Com efeito, não identificada a dialeticidade, deixa de ser preenchido um requisito extrínseco de admissibilidade recursal.
Neste sentido, o professor Barbosa Moreira já destacava em sua obra: O Novo Processo Civil Brasileiro2:
“(...) As razões de apelação (“fundamentos de fato e de direito”), que podem constar da própria petição ou ser oferecidas em peça anexa, compreendem, como é intuitivo, a indicação dos errores in procedendo, ou in judicando, ou de ambas as espécies, que ao ver do apelante viciam a sentença, e a exposição dos motivos por que assim se hão de considerar. Tem-se decidido, acertadamente, que não é satisfatória a mera invocação, máxime em peça padronizada, de razões que não guardam relação com o teor da sentença”
Conclui-se, assim, que a mera repetição dos argumentos já expostos em sede contestação ou na própria petição inicial, em peça padronizada, sem que os fundamentos da sentença tenham sido efetivamente especificamente impugnados, torna o recurso de apelação imprestável, uma vez que deixa de atender um requisito extrínseco de admissibilidade, acarretando o seu não conhecimento pelo órgão julgador.
Destarte, no tempo em que são aplicados ao campo da justiça algoritmos e inteligência artificial que permitem a produção em massa de peças processuais, o crivo um pouco mais rigoroso na admissibilidade de recursos nas instâncias ordinárias evidencia o perigo da padronização de tais peças no contencioso civil estratégico, além de exigir, cada vez mais, uma detida e diligente atuação do advogado na condução do processo.
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1 Apelação Cível 0100620-80.2021.8.19.0001, Segunda Câmara Cível, Des (a). Rel (a). Maria Isabel Paes Gonçalves.
2 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Processo Civil Brasileiro, 18ª Edição, pág 155.