Introdução
Nas últimas semanas ganhou notoriedade, novamente, a discussão em torno do homeschooling ou da educação domiciliar no Brasil, após a Câmara dos Deputados aprovar o projeto de lei 3.179/12, por 264 votos favoráveis e 144 contrários.
Mas, afinal, o que é e como funciona essa modalidade de educação e onde ela existe mundo afora?
Pois bem. De acordo com o PL acima citado, a educação domiciliar consiste no regime de ensino de crianças e adolescentes, dirigido pelos próprios pais ou pelos responsáveis legais. A educação domiciliar visa ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, nos termos do disposto no art. 205 da Constituição (vide PL 3.179/12, art, 1º. § 1º, § 2º).
De acordo com o Ministério da Educação, no Brasil, cerca de 17 mil famílias e 35 mil crianças e adolescentes já estudam em regime de educação domiciliar. No cenário global, ainda de acordo com o MEC, esse direito é garantido legalmente em mais de 60 países, de todos os continentes, e 85% dos países membros da OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, reconhecem o homeschooling como direito das famílias.
A educação domiciliar enquanto direito dos pais
As famílias que praticam o homeschooling sustentam que o direito de educar os seus próprios filhos é um direito natural, isto é, uma norma criada pela própria natureza, precedendo, portanto, a lei escrita ou o direito positivo por ser inerente à condição humana. Nesta perspectiva, o direito à educação domiciliar encontra seu reconhecimento na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando essa diz: “Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos” (DUDH, Artigo 26.3).
Ainda na perspectiva do direito internacional dos direitos humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos estabelece que: “O Estado deve se comprometer a preservar a liberdade dos pais e, quando for o caso dos tutores legais, de assegurar a educação religiosa e moral dos filhos, que esteja de acordo com suas próprias convicções”. E esse mesmo texto é praticamente repetido no art. 12, item 4, da CADH – Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como o Pacto de San Rose da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário e, portanto, tem natureza de normal supralegal no ordenamento jurídico interno.
Outrossim, a Convenção dos Direitos da Criança, adotada pela assembleia geral das nações unidas em 1989, e ratificada pelo Brasil 1990, que serviu de fonte de inspiração ao legislador nacional na elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, diz que: “Caberá aos pais, ou quando for o caso, aos representantes legais, a responsabilidade primordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança”.
Há também fundamentos jurídicos no direito positivo brasileiro para a modalidade da educação domiciliar. Neste sentido, o art. 266 da CF/88, preceitua que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Ademais, o art. 205 da CF/88 define que: “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Em harmonia com o texto constitucional, o CC/02 estatui que: “compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I – dirigir-lhes a criação e a educação” (art. 1.634, I). A LDB – Lei das Diretrizes Básicas da Educação, e o próprio ECA (lei 8.069/90) também vão na direção de que a educação das crianças e adolescentes é responsabilidade da família e do Estado, isto é, um não exclui, necessariamente, o outro desse dever.
Portanto, diante de todo esse arcabouço jurídico, alegam os pais educadores reconhecer o papel do Estado na promoção da educação, entretanto, defendem que o próprio texto constitucional, as leis infraconstitucionais, bem como os tratados e convenções de direitos humanos, asseguram também a possibilidade de as famílias dirigirem a educação dos seus próprios filhos no ambiente domiciliar.
O entendimento do STF sobre a matéria
Um leading case sobre o homeschooling foi apreciado pela Suprema Corte brasileira em 2018. Trata-se do recurso extraordinário 888.815.
Na ocasião, uma família educadora do município de Canela/RS pediu o reconhecimento da modalidade de educação domiciliar na Secretaria de Educação da prefeitura, o qual foi negado. Ato contínuo, a família impetrou um mandado de segurança requerendo que fosse reconhecido o seu direito líquido e certo de educar os seus filhos em casa. A família perdeu na primeira instância, recorreu ao TJ do Rio Grande do Sul, mas, novamente, teve o seu pleito indeferido.
Inconformada com a decisão, a família interpôs um recurso extraordinário ao STF alegando que a CF/88 lhe garantia sim o direito à educação domiciliar. O recurso recebeu a característica de um tema de repercussão geral. Na prática, significou que o STF iria decidir não apenas a situação daquela família, mas também a situação de todas as outras famílias do país que educavam em casa.
O ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, deu um voto na direção que a CF/88 não apenas permite, mas garante a educação domiciliar. Ele próprio colocou alguns requisitos para a prática dessa modalidade até que o Congresso Nacional fizesse uma lei específica para regular tal ensino.
Porém, o entendimento da Corte, seguiu a perspectiva do ministro Alexandre de Moraes, segundo o qual a CF/88, em seus arts. 205 e 227, prevê a solidariedade do Estado e da família no dever de cuidar da educação das crianças. Já o art. 226 garante liberdade aos pais para estabelecer o planejamento familiar. Segundo ele, o texto constitucional visou colocar a família e o Estado juntos para alcançar uma educação cada vez melhor para as novas gerações, de tal maneira que só os Estados totalitários afastam a família da educação de seus filhos. Sendo assim, o ministro entendeu que o ensino domiciliar é uma possibilidade compatível com a CF/88, mas que carece de regulamentação legal no país.
Em suma, o STF reconheceu a constitucionalidade do homeschooling no Brasil.
Insegurança jurídica para as famílias educadoras
Apesar dos fundamentos constitucionais e legais do homeschooling, bem como do entendimento do STF sobre a matéria, muitas famílias foram e são alvos de notificações dos conselhos tutelares e dos MPs estaduais Brasil afora para averiguação de suposta prática de crime de abandono intelectual (art. 246 do CP) por não estarem com seus filhos matriculados em escolas regulares, ocasionando uma situação de insegurança jurídica para pais e mães, inclusive o receio de perderem a guarda dos seus filhos.
Diante desse cenário e na ausência de uma norma Federal que versasse sobre o tema, alguns entes federados (Estados, DF e Municípios) aprovaram leis estaduais, municipais e distrital que regulamentavam a educação domiciliar em âmbito local. Contudo, praticamente todas elas foram alvos de ADIN’s – Ações Diretas de Inconstitucionalidade, e, por conseguinte, declaradas inconstitucionais pelos tribunais de justiça estaduais, geralmente sob o argumento de que somente a União Federal poderia legislar sobre o assunto.
Visando impedir ou amenizar as eventuais punições impostas às famílias educadoras enquanto a modalidade não fosse regulamentada pelo Congresso Nacional, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos oficiou os conselhos tutelares do Brasil orientando que:
1. As crianças e adolescentes educados em casa não sejam identificados como se estivessem em abandono intelectual;
2. As crianças e adolescentes educados em casa, bem como as famílias educadoras, sejam excluídas de eventuais listas de evasão escolar, até a tramitação final do PL 2.401/19;
3. Os procedimentos em andamento envolvendo famílias educadoras sejam sobrestados pelo mesmo período; e
4. Em eventuais visitas ou solicitações realizadas pelos assistentes sociais às famílias educadoras, as mesmas sejam tratadas com a dignidade da pessoa humana, garantida pela CF/88.
5. Ressaltamos que as famílias educadoras e as instituições que as representam compreendem o papel dos conselhos tutelares e estão disponíveis para o diálogo e esclarecimentos necessários sobre o tema.
6. Por fim, encaminhamos em anexo a nota oficial conjunta do MMFDH – Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, e do MEC – Ministério da Educação, propondo a regulamentação da educação domiciliar, por meio do PL 2.401/19.
A partir daí, todas as forças das famílias educadoras e das associações que militam pela educação domiciliar se concentraram em buscar a aprovação da regulamentação e, portanto, a pacificação do tema, junto ao Congresso Nacional, mobilizando parlamentares para a aprovação da matéria.
Considerações finais
A aprovação do projeto de lei 3.179/12 na Câmara dos Deputados em 18/5/22 teve uma ampla participação das famílias educadoras no plenário da casa: pais e filhos acompanhavam atentamente a discussão do assunto e os votos dos parlamentares. Ao final da apuração, comemoraram efusivamente a aprovação do PL, que agora será apreciado pelo Senado Federal e, uma vez aprovado, vai à sanção presidencial, para que enfim se torne uma realidade na vida dessas famílias.
É bem verdade que o homeschooling trata-se de um direito pleiteado por uma minoria de famílias brasileiras, visto que a grande maioria dos pais preferem colocar seus filhos nas escolas regulares, sejam elas públicas ou privadas. Entretanto, a democracia é exatamente o governo da maioria com a proteção dos direitos das minorias, razão pela qual a educação domiciliar, já praticada e regulamentada em diversos países desenvolvidos ao redor do globo, merece ter a sua proteção legal também no Brasil.
Por fim, cabe ressaltar, que a educação domiciliar não é contra a escola, ela é a favor da escolha! A escolha dos pais educarem os seus próprios filhos, em observância a todos os requisitos previstos na legislação que busca harmonizar a autonomia dos pais na direção educacional da família aliada à proteção dos direitos da criança e do adolescente.