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Liberação de bloqueio judicial para pagamento de honorários: perspectiva de aprimoramento do Estatuto da Advocacia

A inserção do art. 24-A no Estatuto da Advocacia constitui efetivo avanço, pois impede que um indivíduo venha a ser privado da universalidade de seu patrimônio com o objetivo de restringir o seu acesso à defesa.

6/6/2022

A lei 14.365, de 2 de junho de 2022, promoveu diversas alterações no Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/94), que representam, em sua maior parte, importantes avanços para a advocacia, como o reconhecimento da atuação profissional perante a Administração Pública e a ampliação da possibilidade de sustentação oral nos Tribunais.

Dentre as alterações promovidas, chama especial atenção a garantia de liberação em favor do advogado de até 20% dos bens, direitos e valores pertencentes ao cliente, bloqueados por decisão judicial, para pagamento de honorários profissionais e o reembolso de despesas incorridas no curso da defesa, nos casos em que a decisão judicial tiver por consequência o bloqueio universal do patrimônio do cliente: 

Art. 24-A. No caso de bloqueio universal do patrimônio do cliente por decisão judicial, garantir-se-á ao advogado a liberação de até 20% (vinte por cento) dos bens bloqueados para fins de recebimento de honorários e reembolso de gastos com a defesa, ressalvadas as causas relacionadas aos crimes previstos na Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 (Lei de Drogas), e observado o disposto no parágrafo único do art. 243 da Constituição Federal.

§ 1º O pedido de desbloqueio de bens será feito em autos apartados, que permanecerão em sigilo, mediante a apresentação do respectivo contrato.

§ 2º O desbloqueio de bens observará, preferencialmente, a ordem estabelecida no art. 835 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

§ 3º Quando se tratar de dinheiro em espécie, de depósito ou de aplicação em instituição financeira, os valores serão transferidos diretamente para a conta do advogado ou do escritório de advocacia responsável pela defesa.

§ 4º Nos demais casos, o advogado poderá optar pela adjudicação do próprio bem ou por sua venda em hasta pública para satisfação dos honorários devidos, nos termos do art. 879 e seguintes da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

§ 5º O valor excedente deverá ser depositado em conta vinculada ao processo judicial. 

Como já afirmei em outra ocasião1, em casos criminais envolvendo alegado prejuízo à fazenda pública, a previsão legal de solidariedade entre os acusados para a reparação do dano ao erário muitas vezes resulta em bloqueios milionários sobre o patrimônio de cada um dos acusados. Isto acaba por alcançar todas as suas contas bancárias, bens móveis e imóveis. Como se trata de medidas cautelares com incidência ainda na fase de investigação ou no início do processo, naturalmente não há condenação, imperando-se a garantia de inocência. É a situações como esta que o recém-criado art. 24-A do Estatuto da Advocacia se refere quando alude ao “bloqueio universal do patrimônio do cliente por decisão judicial”.

Andou bem o legislador, portanto, ao assegurar que o indivíduo acusado de crime ou ato de improbidade administrativa, por exemplo, possa assegurar representação profissional por advogado, não apenas para defendê-lo na própria demanda que originou o bloqueio, como também em outras causas e questões, correlatas ou não, em que o indivíduo necessite constituir advogado. Não se trata, portanto, de questão afeta exclusivamente à advocacia criminal, como se poderia inicialmente pensar.

Uma preocupação relevante do legislador, contudo, foi ressalvar a liberação de até 20% do bloqueio para casos que envolverem tráfico de drogas (Lei 11.343) ou propriedades rurais ou urbanas em que houver a exploração de trabalho escravo (art. 243 da Constituição). Percebe-se o claro intento legislativo de não permitir que o advogado participe dos ganhos ilícitos de seu cliente, mesmo que tais recursos sirvam para assegurar o direito constitucional à defesa.

Neste ponto, porém, entende-se que o legislador poderia ter regulado melhor a questão caso tivesse efetuado alguma distinção quanto à origem do bloqueio. Isto porque, pelo menos sob o aspecto criminal, há uma importante distinção a ser travada entre as medidas de sequestro e arresto/especialização de hipoteca legal.2

O sequestro de bens (arts. 125 a 132, CPP) recai sobre os bens que tiverem sido adquiridos com os proventos de infração criminal — ou, caso não encontrados ou se encontrarem no exterior, sobre bens ou valores equivalentes. Esta medida tem por finalidade acautelar estes bens e valores, de modo a assegurar o perdimento a ser declarado em eventual sentença condenatória (art. 91, II e §§ 1.º e 2.º, CP). Neste caso, é pressuposto da decretação da medida a existência de indícios veementes da proveniência ilícita dos bens. A medida recai, portanto, sobre bens de origem ilícita.

Por outro lado, o Código de Processo Penal prevê as medidas cautelares patrimoniais de especialização da hipoteca legal e de arresto3 (arts. 134 a 137, CPP), cuja finalidade precípua é garantir eventual reparação do dano, tendo em vista que eventual sentença condenatória também tem por efeito tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime (art. 91, I, CP). Nestes casos, porém, não se cogita da origem ilícita do patrimônio que servirá para a reparação do dano. As medidas, portanto, recaem sobre patrimônio de origem presumidamente lícita.

Esta distinção é importante na medida em que, apesar da importância de se assegurar representação profissional por advogado ao indivíduo acusado de crime, não poderá o sistema jurídico permitir que o advogado venha a ter participação nos supostos resultados do crime imputado a seu cliente. Esta preocupação, como dito, restou plasmada no texto legal com a ressalva feita às imputações de crimes relacionados ao tráfico de drogas. O mesmo poderia ser dito no caso de advogado que viesse a representar indivíduo acusado de corrupção passiva (art. 317, CP), por perceber vantagem indevida na condição de agente público.

Necessário, portanto, limitar a reserva de honorários agora prevista no art. 24-A do Estatuto da Advocacia, de modo a excepcionar desta reserva o patrimônio do cliente que tiver sido objeto de sequestro. Permitir-se-ia, assim, o desbloqueio apenas nos demais casos em que a restrição patrimonial não tenha por fundamento a pretensa ilicitude da origem dos recursos. Este é o caso, por exemplo, de medidas processuais civis, como a penhora e a indisponibilidade de bens, prevista na Lei de Improbidade Administrativa, e medidas processuais penais, como o arresto e a especialização de hipoteca legal.

Esta proposta, caso venha a ser incorporada pelo legislador, cumpriria finalidade dúplice.4

Primeiramente, asseguraria que na decretação de medidas cautelares patrimoniais, fosse evitada a decretação de medidas “amorfas” ou “disformes”, como a “indisponibilidade”, de modo a misturar os pressupostos e requisitos específicos das medidas cautelares patrimoniais no processo penal, a ponto de não configurarem nem sequestro nem arresto/especialização de hipoteca legal, mas figuras intermédias, sem previsão legal.5 A exigência de delimitação morfológica das medidas decretadas, de modo a estabelecer em que casos poderá ou não haver a reserva de percentual com vistas a assegurar pagamento de honorários ao advogado, também poderá evitar a burla de etiquetas — existente quando a medida é decretada com um nome, mas para atingir finalidade distinta —, assegurando-se que o regramento legal do sequestro6 incida apenas naqueles casos em que houver efetiva demonstração de indícios veementes da proveniência ilícita dos bens sequestrados.

Além disso, tal previsão impediria que o requerimento de desbloqueio de parcela dos bens para custeio de honorários pudesse ser rejeitado sob a pecha de consistir em ato de lavagem de dinheiro. Explica-se: a lei 9.613, de 1998, criminaliza o ato de ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. Constitui lavagem de dinheiro, nos termos do § 1.º do art. 1.º da Lei, também os atos de converter estes recursos provenientes de crime em ativos lícitos, ou a sua movimentação ou transferência. Ainda que se entenda que o crime de lavagem de dinheiro somente se configura quando houver a intenção de mascarar a proveniência ilícita dos bens7, algo que certamente não ocorrerá quando o objetivo for o pagamento de legítimos honorários advocatícios como contraprestação por serviços jurídicos devidamente prestados, tramitam perante os tribunais brasileiros diversos casos de imputação de lavagem de dinheiro a advogados, justamente por perceberem honorários.8 Esta é uma questão já resolvida em outros países, como nos Estados Unidos da América, em que a legislação federal expressamente excepciona a incidência do crime de lavagem de dinheiro sobre o percebimento de honorários profissionais.9 Infelizmente, no Brasil, a criminalização da advocacia ainda é realidade premente, que poderá ser superada com a correta aplicação desta importante alteração legal, mais ainda se acolhida a proposta legislativa ora apresentada.

A inserção do art. 24-A no Estatuto da Advocacia constitui efetivo avanço, pois impede que um indivíduo venha a ser privado da universalidade de seu patrimônio com o objetivo de restringir o seu acesso à defesa.10 O aprimoramento da redação, contudo, permitiria efetivamente separar o joio do trigo, evitando-se questionamentos quanto à legalidade da origem dos recursos utilizados para o pagamento de honorários, evitando-se que profissionais íntegros venham a ser acusados de lavagem de dinheiro ou confundidos com coautores de seus clientes.

______________

1 LUCCHESI, Guilherme Brenner; ZONTA, Ivan Navarro. SISBAJUD e "teimosinha" no processo penal: incompatibilidade com o regime das medidas assecuratórias. Migalhas, 22/10/2021, disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/353556/sisbajud-e-teimosinha-no-processo-penal.

2 Venho defendendo a importância de estabelecer uma efetiva teoria das medidas cautelares no processo penal. Ver LUCCHESI, Guilherme Brenner. Por uma teoria das medidas cautelares patrimoniais no processo penal. In: BUSATO, Paulo César; SCANDELARI, Gustavo Britta (Orgs.). Direito, Universidade e Advocacia: homenagem à obra do Prof. Dr. René Ariel Dotti. Curitiba: GEDAI/UFPR, 2021. p. 519-537. LUCCHESI, Guilherme Brenner. Por uma teoria das medidas cautelares patrimoniais. Cadernos Jurídicos OAB Paraná, mar. 2021, p. 46-47.

3 O CPP estabelece duas espécies de arresto: (i) o arresto prévio à especialização da hipoteca legal (art. 136, CPP) e (ii) o arresto subsidiário de bens móveis (art. 137, CPP). O arresto prévio visa resguardar o imóvel objeto de hipoteca legal, dado que o procedimento destinado à sua especialização e ao seu registro possui certa complexidade, de sorte que a demora para a sua ultimação pode prejudicar a efetividade da medida. Por sua vez, o arresto subsidiário de bens móveis somente incide quando o acusado não possui bens imóveis ou os possuir em valor insuficiente para a integral reparação do dano causado pela infração penal. Ver LUCCHESI, Guilherme Brenner; NOGARI, Maria Victoria Costa. Medidas assecuratórias no processo penal e a impossibilidade de seu uso para assegurar o pagamento de pena de multa. Migalhas (Coluna “Informação Privilegiada”), 19/10/2021, disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/informacao-privilegiada/353310/medidas-assecuratorias-no-processo-penal-e-impossibilidade-de-seu-uso.

4 Além, é claro, de assegurar reserva legal no tratamento do tema, em vez de deixá-lo à sorte da hermenêutica e limitações jurisprudenciais.

5 Sobre o tema, ver LUCCHESI, Guilherme Brenner. Medidas assecurato'rias patrimoniais: a decretac¸a~o do “bloqueio” de bens e outras disformidades. In: SANTORO, Anto^nio Eduardo Ramires; MALAN, Diogo Rudge; MADURO, Fla'vio Mirza (orgs.). Desafiando 80 anos de processo penal autorita'rio. Belo Horizonte, Sa~o Paulo: D’Pla'cido, 2021. p. 335-358.

6 Com importantes consequências, como a impossibilidade de incidência de solidariedade entre os acusados. Ver LUCCHESI, Guilherme Brenner; ZONTA, Ivan Navarro. Sequestro dos proventos do crime: limites à solidariedade na decretação de medidas assecuratórias. Revista Brasileira De Direito Processual Penal, v. 6, n. 2, p. 735–764.

7 LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lavagem de dinheiro como mascaramento: limites à amplitude do tipo penal. Revista Brasileira de Direito Penal Econômico, v. 1, jan./mar. 2020, p. 143-162.

8 Ver, por exemplo, TRF-1, 4.ª T., ED no HC n.º 1038535-15.2020.4.01.0000, Rel. Des. Fed. Néviton Gudes, j. 09/02/2022, DJe 17/02/2022; TRF-2, 2.ª T. Esp., AC n.º 0529368-18.2006.4.02.5101, Rel. Des. Fed. Liliane Roriz, j. 18/12/2012; TRF-4, 4.ª Seção, Emb. Nul. N.º 2007.70.00.026565-0, Rel. Des. Fed. Paulo Afonso Brum Vaz, DJe 24/06/2011.

9 United States Code, Título 18, § 1957(f)(1): “the term ‘monetary transaction’ […] does not include any transaction necessary to preserve a person's right to representation as guaranteed by the sixth amendment to the Constitution” (Disponível em: https://www.law.cornell.edu/uscode/text/18/1957)

10 Esta questão foi explorada pelo autor em perspectiva comparada: LUCCHESI, Guilherme Brenner. O confisco penal de honorários advocatícios nos Estados Unidos da América e seu impacto no sistema jurídico-penal acusatório. Revista Brasileira de Ciências Criminai, n. 108, mai.-jun. 2014, p. 349-384.

Guilherme Brenner Lucchesi
Advogado sócio da banca Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Diretor do Instituto dos Advogados do Paraná.

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