Um sistema de insolvência é construído sob à ótica de instituir mecanismos judiciais eficientes para assegurar a preservação das empresas e da atividade econômica, ao passo que, na inviabilidade da recuperação do cenário de crise financeira da empresa, promove a maximização dos ativos e realocação eficiente de recursos na economia.
Ou seja, utilizando-se dos institutos da recuperação judicial1 e da falência2, tece uma rede de proteção à economia de um país, definindo medidas legais de enfrentamento de uma crise econômico-financeira, assim como o equilíbrio dos interesses dos agentes e segurança dos investimentos nacionais.
Dentro desse microssistema, nasce a figura do administrador judicial, responsável por auxiliar o poder Judiciário na implantação prática das normas e diretrizes do sistema de insolvência empresarial. O profissional é caracterizado como a longa manus do juiz nos processos de insolvência empresarial3, assumindo a fiscalização do devedor durante o soerguimento de suas atividades e a representação da massa falida no processo falimentar.
Em que pese as alterações legislativas semeiem debates quanto seus direitos e deveres, permanece incólume a importância de sua atuação, sendo conceituado como um instrumento pelo qual um procedimento de insolvência empresarial opera e se desenvolve4. Nesse passo, se o juízo universal é o maestro, o seu auxiliar nomeado é o compasso, delimitando as notas e o ritmo do procedimento.
A atuação do administrador judicial
Do ponto de vista histórico, Trajano de Miranda Valverde5 aponta a origem do instituto processual do administrador judicial ao direito romano, intrinsicamente correlacionado ao “desenvolvimento histórico do processo de execução coletiva” e, consequentemente, à criação das figuras do curator bonorum e do magister.
A partir de uma análise das legislações brasileiras sobre o tema, é notório que a publicação da lei 11.101/05 trouxe inúmeros avanços ao sistema de insolvência empresarial brasileiro, dentre os quais destaca-se a criação da figura do administrador judicial, profissional especializado para auxiliar o poder Judiciário na condução dos procedimentos.
Nessa senda, criada em substituição dos cargos de comissário e síndico vigentes no decreto-lei 7.661/45, a função jurídica é essencial para que as normas e diretrizes constantes da lei sejam aplicadas de forma completa e eficaz, atingindo-se, assim, os fins primordiais da falência e recuperação judicial na prática.
Outrossim, constata-se que a alteração não se resumiu ao nome, uma vez que as atribuições e os requisitos para a sua escolha não são os mesmos adotados pelo decreto revogado. O administrador judicial não é mais escolhido entre os maiores credores6, desassociando-se totalmente a sua figura de um credor da massa falida.
No que tange as suas funções, o art. 22 da lei 11.101/05 traz um rol exemplificativo de obrigações do profissional nos procedimentos de insolvência empresarial, caracterizando-se, assim, as funções lineares. Noutro giro, é consolidado na doutrina moderna a previsão das funções transversais que, embora não estejam estabelecidas expressamente no texto falimentar, também devem ser observadas pelo expert para contribuir para a eficiência e higidez dos procedimentos de insolvência empresarial7.
Há de se considerar ainda que a atuação do administrador judicial é campo fértil para a inovação8, assumindo funções para contribuir para o amplo acesso informacional9; organização de conclaves virtual e apuração automatizada dos votos, assim como imprimir as melhores práticas de tratamento aos dados que lhe são conferidos à análise.
Sem prejuízo para as normas legais, os TJs Estaduais também podem estipular diretrizes próprias para a regulamentação da atividade. Nota-se da leitura do provimento 797/03 do TJ-SP a vedação para atuação do profissional quando possui vínculo de parentesco sanguíneo, por afinidade ou civil por linha descendente, ascendente ou colateral, até quarto grau, com o magistrado e servidores da unidade judiciária.
Nesse passo, o provimento 43/20 expedido pela E. Corregedoria-Geral do TJ do Estado de Goiás fixa deveres ao administrador judicial, tais como: fomentar a conciliação entre os litigantes e interessados no feito e relatar imediatamente ao juiz que preside o processo indício da prática de crime ou irregularidades perpetradas pela recuperanda, credores ou interessados no feito.
A natureza jurídica do administrador judicial e remuneração
A definição da natureza jurídica do administrador judicial ainda é amplamente debatida pela doutrina empresarial, porém, encontra maior respaldo pela doutrina majoritária e tribunais pátrios a aplicação da Teoria do Ofício na interpretação da função do auxiliar do juízo10.
Por meio dessa teoria, o administrador judicial “é órgão criado pela lei para auxiliar a Justiça na realização de seu objetivo. Ele não representa quem quer que seja, mas cumpre os deveres inerentes ao cargo e é por essa razão que pode agir contra ou a favor do falido, contra ou a favor das pretensões dos credores concorrentes, sempre nos termos da lei”11.
Os tribunais pátrios, desde a vigência do decreto-lei 7.661/45, adotam a Teoria do Ofício para a análise das questões inerentes à atuação do seu auxiliar:
RECURSO ESPECIAL - COMERCIAL - ART. 212 DO DECRETO-LEI N. 7.661/45 - HONORÁRIOS DO PERITO CONTADOR - COMPATIBILIDADE COM O SERVIÇO A SER REALIZADO - FUNDAMENTO AUTÔNOMO - AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA - APLICAÇÃO DA SÚMULA N. 283/STF - FALÊNCIA - SÍNDICO - AUXILIAR DO JUÍZO - REMUNERAÇÃO MENSAL - POSSIBILIDADE - ENCARGO DA MASSA FALIDA - DESCONTO, AO FINAL DO PROCESSO FALIMENTAR, DOS VALORES RECEBIDOS - NECESSIDADE - ATIVIDADE DE SINDICATURA - PRESERVAÇÃO - INTERESSE DOS CREDORES - RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA PARTE, IMPROVIDO. [...] II - O síndico, assim como seu sucedâneo - administrador judicial - não exerce profissão. Suas atividades possuem natureza jurídica de órgão auxiliar do Juízo, cumprindo verdadeiro múnus público, não se limitando a representar o falido ou mesmo seus credores. Cabe-lhe, desse modo, efetivamente, colaborar com a administração da Justiça. III - Os honorários do síndico constituem encargo da massa falida e, por isso, podem ser pagos ao síndico mensalmente, para suas despesas e manutenção, descontando-se, ao final do processo falimentar, os valores recebidos observando-se os índices previstos no art. 67 da antiga Lei de Falências. IV - Os interesses dos credores, em razão da atividade diligente do síndico, estarão preservados na medida em que se evitará a dilapidação do patrimônio da massa falida e se identificará eventual irregularidade que possa ocorrer no curso do processo falimentar, o que justifica sua remuneração mensal. VII - Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, improvido.
(STJ - REsp: 1032960 PR 2008/0036352-7, Relator: Ministro MASSAMI UYEDA, Data de Julgamento: 01/06/2010, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 21/06/2010)
(Grifou-se)
Adentrando no tópico relativo à remuneração do expert, Trajano Valverde alerta brilhantemente que se trata de “um cargo espinhoso, com responsabilidades que avultam, seria dificilmente preenchível se não houvesse recompensa para o seu ocupante. Nada mais justo que se pague o trabalho de quem exerce função em benefício de todos os interessados no processo de falência”12.
Por isso, a legislação prevê que o montante será fixado pelo juiz, que considerará a complexidade dos trabalhos a serem executados e os valores praticados no mercado para o desempenho de atividades semelhantes (art. 23, §1º da LRF), não excedendo 5% do valor devido aos credores submetidos à recuperação judicial ou do valor de venda dos bens na falência (art. 24, §1º da LRF).
Recentemente, sob a fundamentação de que “não há processo falimentar sem que exista a figura do administrador judicial”, o Ilmo. Juízo da 2ª vara de falências e recuperações judiciais da comarca de São Paulo caracterizou como “imprescindível que ele receba a devida remuneração em casos que os ativos liquidados seriam destinados ao pagamento preferencial de outros credores ou titulares de direito à restituição, que, a bem da verdade, só recebem porque houve atuação do administrador judicial”.
Em harmonia de entendimento, posicionam-se os renomados juristas e pesquisadores Luis Felipe Spinelli, João Pedro Scalzilli e Rodrigo Tellechea (2022)13:
“[...] Ordinariamente, a remuneração do administrador judicial figura em quarto lugar entre os créditos extraconcursais, atrás dos créditos mencionados nos arts. 84, I-A a I-C. Assim, em tese, preferem aos honorários do administrador judicial: (I) as despesas cujo paramento antecipado seja indispensável à administração da falência (art. 150) e os créditos trabalhistas de natureza estritamente salarial do art. 151; (II) o crédito decorrente do financiamento DIP (arts. 69-A); e, (III) as restituições em dinheiro do art. 86.
Todavia, observa-se que a remuneração do administrador judicial também pode ser enquadrada como “despesa cujo pagamento seja indispensável à administração da falência”, conforme dispõe expressamente o § 1º do art. 114-A14.
[...] Levando em conta que (I) sem os préstimos do administrador judicial não há como se desenvolver uma liquidação falimentar e (II) não se admitindo um auxiliar da justiça laborar sem remuneração – como, aliás, dispõe a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça -, a solução para conciliar ambos os comandos legais parece ser a seguinte: pagar o administrador judicial em quarto lugar apenas quando a massa dispuser de recursos suficientes para quitar as classes anteriores e sobrar quantia para adimplir sua remuneração; e, não tendo a massa forças para isso, é de se remunerar primeiramente o administrador judicial na qualidade de despesa indispensável à administração da falência (LREF, art. 84, I-A, c/c art. 114-A), porque, de fato, assim o é15”.
(Grifou-se)
O entendimento leva em consideração que, em falências complexas, a atuação do profissional impõe a realização de serviços jurídicos, auditorias, administração de patrimônio de terceiros e consultorias econômica, contábil e financeira. Logo, com esta estrutura multidisciplinar o administrador judicial atende às intercorrências da falência, não sendo necessária a contratação de certos profissionais para auxiliá-lo, reduzindo assim, as despesas da massa falida, incorporando-as em seus próprios custos diretos.
Em fecho, o entendimento dos tribunais reflete o espírito da legislação moderna, que busca atrair profissionais cada vez mais especializados para contribuir com o aprimoramento do sistema de insolvência empresarial brasileiro.
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1 O legislador moderno imputou ao instituto de recuperação judicial o objetivo de viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica (art. 47 da Lei n° 11.101/2005).
2 Noutro giro, a redação atual da Lei n° 11.101/2005, expõe a função social do procedimento falimentar, fixando como diretrizes a serem cuidadosamente observadas: I) a preservação e a otimização da utilização produtiva dos bens, dos ativos e dos recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa; II) a liquidação célere das empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia; e, por fim, II) visa fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica.
3 OLIVEIRA, Thiago Pires. A remuneração do administrador judicial em processos de insolvência empresarial na jurisprudência do TJDFT. Revista de Doutrina e Jurisprudência - TJDFT, Brasília, v. 108, n. 2, p. 241-261, jan./jun. 2017.
4 BERNIER, Joice Ruiz. Idem. apud PROVINCIALI, Renzo. Trattado di Diritto Fallimentare. Vol. I. Milão, Dott. A. Giuffrè Editore, 1974, p. 659.
5 VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei das Falências (Decreto-lei n° 7.661, de 21 de 1945). Vol. I. 4ª Ed. Rev. e Atualizada por J. A. Penalva Santos e Paulo Penalva Santos. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1999.
6 Na redação original do art. 60 do Decreto-Lei n° 7.661/1945: “O síndico será escolhido entre os maiores credores do falido, residentes ou domiciliados no fôro da falência, de reconhecida idoneidade moral e financeira”.
7 COSTA, Daniel Carnio. O administrador judicial no projeto de lei 10.220/18 (Nova lei de recuperação judicial e falências). Migalhas, São Paulo, 18 de setembro de 2018. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/insolvencia-em-foco/287610/o-administrador-judicial-no-projeto-de-lei-10-220-18--nova-lei-de-recuperacao-judicial-e-falencias. Acesso em: 23 jul. 2021.
8 JAPUR, José Paulo Dorneles; MARQUES, Rafael Brizola. A Transformação digital do administrador judicial. In: BERNIER, Joice Ruiz; SCALZILLI, João Pedro. O Administrador Judicial e a Reforma da Lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina, 2022.
9 Art. 22. Ao administrador judicial compete, sob a fiscalização do juiz e do Comitê, além de outros deveres que esta Lei lhe impõe:
I – na recuperação judicial e na falência:
[...] b) fornecer, com presteza, todas as informações pedidas pelos credores interessados;
[...] d) exigir dos credores, do devedor ou seus administradores quaisquer informações;
[...] k) manter endereço eletrônico na internet, com informações atualizadas sobre os processos de falência e de recuperação judicial, com a opção de consulta às peças principais do processo, salvo decisão judicial em sentido contrário;
[...] l) manter endereço eletrônico específico para o recebimento de pedidos de habilitação ou a apresentação de divergências, ambos em âmbito administrativo, com modelos que poderão ser utilizados pelos credores, salvo decisão judicial em sentido contrário;
10 Nesse sentido, uma corrente minoritária defende a aplicação da Teoria da Representação, em que o administrador judicial exerce a função de representação nos procedimentos de insolvência empresarial sob sua gestão. Contudo, essa teoria se ramifica em diversas vertentes quanto ao agente processual representado pelo profissional: Massa Falida, credores ou falido.
11 VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei das Falências (Decreto-lei n° 7.661, de 21 de 1945). Vol. I. 4ª Ed. Rev. e Atualizada por J. A. Penalva Santos e Paulo Penalva Santos. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1999.
12 VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei das Falências (Decreto-lei n° 7.661, de 21 de 1945). Vol. I. 4ª Ed. Rev. e Atualizada por J. A. Penalva Santos e Paulo Penalva Santos. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1999.
13 SPINELLI, Luis Felipe; SCALZILLI, João Pedro; TELLECHEA, Rodrigo. A remuneração do administrador judicial. In: SCALZILLI, João Pedro; BERNIER, Joice Ruiz. O administrador judicial e a reforma da Lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina, 2022.
14 Art. 114-A. Se não forem encontrados bens para serem arrecadados, ou se os arrecadados forem insuficientes para as despesas do processo, o administrador judicial informará imediatamente esse fato ao juiz, que, ouvido o representante do Ministério Público, fixará, por meio de edital, o prazo de 10 (dez) dias para os interessados se manifestarem.
[...] § 1º Um ou mais credores poderão requerer o prosseguimento da falência, desde que paguem a quantia necessária às despesas e aos honorários do administrador judicial, que serão considerados despesas essenciais nos termos estabelecidos no inciso I-A do caput do art. 84 desta Lei.
15 De forma semelhante, ver: BERNIER, Joice Ruiz. Administrador judicial: impactos na responsabilidade civil e na remuneração em face das novas funções atribuídas pela Lei 14.112/2020. In: VASCONCELOS, Ronaldo; PIVA; Fernanda Neves; ORLEANS E BRAGANÇA, Gabriel José de; HANESAKA, Thais D’Angelo da Silva; SANT’ANA, Thomaz Luiz. Reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei n. 14.112/20). São Paulo: Editora IASP, 2021, p. 428-429.