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A recuperação judicial de clubes de futebol e as sociedades anônimas de futebol como ferramenta de cura do complexo de vira-lata

A lei da SAF pode ser vista como uma importante ferramenta no avanço dos clubes e do próprio ordenamento jurídico, observando tendência já ocorrida em outros países, na profissionalização do futebol.

3/6/2022

É famoso, no contexto futebolístico, o complexo percebido e cunhado pelo dramaturgo e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, originalmente se referindo ao trauma sofrido em 1950, quando a seleção brasileira foi derrotada pela seleção uruguaia de futebol na final da copa do mundo em pleno Maracanã. O complexo de vira-lata permeou nossa história futebolística, dentro de campo, até os grandes feitos da seleção de Pelé. Porém, se dentro do campo nossas seleções (e clubes) parecem tê-lo superado, a verdade é que nossos clubes, fora das quatro linhas, ainda precisam fazer muito para o superarem completamente. 

Seja pela percepção do esporte como algo não profissional, seja por um passado que ainda carrega mazelas, os maiores clubes do Brasil apresentam déficits preocupantes, com endividamentos que ultrapassam significativamente suas receitas.

Estruturalmente a maioria dos clubes de futebol possui modelagem associativa porque, de início, vislumbrava-se a prática do futebol como eminentemente recreativa e não como econômica. Entretanto, nos últimos anos, o mercado desportivo nacional parece principiar um processo de compreensão do futebol como uma atividade com alto potencial lucrativo, com a percepção dos clubes como verdadeiros negócios empresariais, o que segue tendência do rico mercado futebolístico europeu. Mesmo no Brasil já começam a aparecer players estrangeiros dispostos a investir vultosos montantes num mercado que já movimenta bilhões de reais por ano.

Percebe-se, então, que não se mostra mais viável a manutenção de uma organização com base na mesma estrutura amadora desenvolvida no início do século passado. E, muito embora a base legal para tratamento dos times de futebol como clube-empresa tenha sido constituída nos anos 90’ com a Lei Zico e Lei Pelé, somente em agosto de 2021, com a publicação da lei 14.193, foi permitida a constituição da sociedade anônima de futebol (“SAF”), consagrada estrutura empresarial, cuja atividade principal é a prática de futebol profissional.

Diferentemente dos regramentos anteriores, a Lei da SAF traz disposições próprias que harmonizam a atividade esportiva do futebol com a mercantil. Os clubes poderão explorar o seu potencial econômico e de desenvolvimento social com regras estritas de governança, financiamento e tributação por meio de um modelo empresarial que permita o alcance do lucro e ainda ofereça uma gestão transparente e profissional.

Independentemente das dúvidas que pairam a respeito da regulamentação de questões tributárias, tais como a base de cálculo do regime de tributação e a forma de recolhimento, a possibilidade de recuperação judicial ou extrajudicial passa a ser um importante instrumento de reestruturação e continuidade de determinados clubes que possuem solvabilidade preocupante.

Em 2021, o Figueirense, por exemplo, enquanto associação, teve reconhecida a sua legitimidade ativa para pleitear a recuperação extrajudicial. A questão principal levantada naquela ação não era inédita e tampouco atual (outras associações, não esportivas, trilharam semelhante caminho), porém foi suficiente para trazer à tona novamente um tema ainda controvertido pela doutrina e jurisprudência, qual seja, a possibilidade de entidades não empresariais se beneficiarem dos institutos insolvenciais. Afinal, o artigo 1º, da lei 11.101/05, restringe a recuperação judicial ou extrajudicial e a falência a empresários e a sociedades empresárias stricto sensu.

A Lei da SAF, contudo, torna expressa a possibilidade de requerimento de recuperação, nos termos de seu artigo 25. A facilitação na obtenção da recuperação judicial é um dos principais incentivos que a SAF proporciona aos clubes, sobretudo àqueles com gravosa insolvência, na medida em que o regime possibilita flexibilização de cobrança e pagamento de dívidas, conforme os consagrados mecanismos previstos na lei 11.101/05, ou mesmo por meio de instituto próprio denominado regime centralizado de execuções.

Por fim, embora a lei da SAF apresente regras específicas sobre a sucessão das dívidas, no sentido de que a SAF somente responderá por dívidas em situações bem específicas e ainda de forma limitada, há dúvidas no âmbito trabalhista sobre como essa norma sucessória será observada nos tribunais, já que a própria CLT, em seu artigo 448-A, estabelece como regra a responsabilidade da empresa sucessora pelas dívidas trabalhistas da empresa sucedida. Nesse ponto, a 12ª Vara de Trabalho de Belo Horizonte já proferiu decisão reconhecendo a responsabilidade solidária entre a SAF constituída pelo Cruzeiro e a associação por dívidas trabalhistas anteriores à constituição da primeira, o que pode colocar em risco a segurança jurídica do instituto, e prejudicar a atratividade do instituto na obtenção de investidores estratégicos.

Em conclusão, a Lei da SAF pode ser vista como uma importante ferramenta no avanço dos clubes e do próprio ordenamento jurídico, observando tendência já ocorrida em outros países, na profissionalização do futebol, e superação do nosso antigo complexo de vira-lata. Neste sentido, embora haja necessidade de consolidação pela jurisprudência acerca das limitações e alcances da lei e sua compatibilidade com as demais normas do ordenamento pátrio, a possibilidade de adoção de métodos mais benéficos para a quitação das dívidas pretéritas do clube, para a sua adequada reestruturação econômica, representa um possível caminho próspero para um futuro com clubes soerguidos e mais fortes, dentro e fora de campo.

Daniel Báril
Advogado. Especialista na área de insolvência e reestruturação de empresas, autor e organizador de livros, como "Recuperação Judicial de Empresas: Temas Atuais".

Yan Viegas Silva
Advogado da área de Resolução de Conflitos, é sócio de Silveiro Advogados.

Fernanda Magni Berthier
Acadêmica de direito da UFRGS e colaboradora do escritório Silveiro Advogados.

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