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Cota de contratação de pessoas com deficiência e negociação coletiva

O tema ainda não foi enfrentado sob a ótica da lei 13.467/17, a qual reforçou os princípios da liberdade sindical, da autonomia coletiva e da intervenção mínima do judiciário trabalhista nas negociações coletivas.

2/6/2022

Apesar de representar um avanço para a inclusão de profissionais com deficiência (PCDs) no mercado de trabalho, a cota legal de contratação desses trabalhadores pode representar um desafio para algumas empresas, em razão do grau de risco e especificidades de sua indústria.

Dentre os diversos fatores que contribuem para tal dificuldade, deve-se destacar a forma lacônica com a qual o tema é regulamentado. Isso porque a obrigação em tela é imposta por um único artigo da lei 8.213/91 (art. 93), sem qualquer ressalva ou exceção a cargos ou a atividades para o cômputo do cálculo da cota, diferentemente do que ocorre com a cota mínima de contratação de aprendizes.

Não se está defendendo que pessoas com deficiência possuem restrição intrínseca para determinadas atividades, e sim apontando dificuldades que alguns determinados ramos de atividades econômicas encontram no cumprimento da legislação. Tais obstáculos decorrem da falta de condições que enfrentam para garantir a segurança desses trabalhadores, sua acessibilidade e devida acomodação, tal como ocorre, em especial, no setor de atividades offshore.

Como exemplo, podem ser mencionadas as empresas que possuem como atividade comercial o trabalho em plataformas de petróleo. Tais atividades envolvem, inerentemente, diversos riscos no ambiente de trabalho, o que por si só exige considerável esforço físico e elevados níveis de  percepção sensorial dos trabalhadores, podendo comprometer a segurança de pessoas com determinadas deficiências.

Aplicar a lei indiscriminadamente a essas empresas, considerando para fins de contabilização de cotas aqueles trabalhadores que se ativam em plataformas, representa colocar em risco sua integridade física. Assim, a revisão dos parâmetros para contabilização da cota de contratação de  empregados com deficiência é medida que se impõe para empresas com elevado grau de risco.

Nesse aspecto, cabe aqui relembrar importante precedente do TRT/RJ, que entendeu que, na avaliação de cumprimento da cota de contratação de empregados com deficiência, alguns cargos devem ser excluídos para fins dessa contabilização.

Segundo tal precedente, deve-se levar em conta o critério da ponderação de valores, quais sejam, inserção do trabalhador com deficiência  no mercado de trabalho em cotejo com o direito à vida. Assim, a decisão muito acertadamente refere que, para empresas de perfuração marítima e offshore, a cota deve ser contabilizada com a exclusão dos trabalhadores que se ativam em plataformas (Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, 8ª Turma, Proc. 0002426-54.2014.5.01.0482, Relatora: Des. Dalva Amélia de Oliveira, Data de Julgamento: 02/02/16).

Logo, e apesar de não existir exceção expressa no texto da legislação pertinente, reconheceu-se que o cumprimento abstrato de tal cota em determinados casos se demonstra inviável, em nada auxiliando os movimentos para inclusão de trabalhadores com deficiência no mercado de trabalho.

Infelizmente, não há ainda uma solução específica, segura e eficaz endereçando o tema. No entanto, já se veem algumas empresas utilizando a negociação coletiva como via para regulamentar tal questão.

Há de se destacar que da legislação vigente não consta impeditivo expresso à negociação em tela. O artigo 611-B da CLT, que traz rol taxativo das hipóteses em que o objeto do instrumento coletivo será considerado ilícito, não veda a negociação sobre cotas mínimas de contratação.

A matéria em questão, contudo, não é pacífica e o TST, em geral, produz jurisprudência contrária à validade de tal tipo de negociação. Contudo, há valioso precedente analisando a atividade específica dos vigilantes, em que foi permitida sua exclusão da base de cálculo da cota em discussão, respeitando-se a realidade do setor e a negociação mantida com o sindicato (Tribunal Superior do Trabalho, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Proc. TST-RO-76-64.2016.5.10.0000, Relatora: Ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Data de Julgamento: 13/03/17).

Note-se que não se está discriminando tais trabalhadores, na medida em que a discussão aqui trazida propõe apenas reflexão sobre a quantificação da cota, adequando-se o percentual necessário à realidade da atividade econômica. Não se trata, portanto, de reduzir o percentual ou de impedir a contratação de trabalhadores PCDs de forma indiscriminada ou injustificada.

Ademais, caso as empresas pretendam buscar a via da negociação coletiva, em contrapartida à exclusão de determinados cargos da base de cálculo poderia ser pactuada a realização de doações para instituições que atuem na profissionalização e na inclusão da população PCD no mercado de trabalho, restando plenamente atendidos a mens legis e o princípio da adequação setorial negociada.

A medida acima proposta reduziria a sujeição das empresas a decisões desproporcionais em processos judiciais nos quais se persegue a declaração de nulidade das autuações emitidas pela fiscalização do trabalho, uma vez que inexistem critérios claros para se apurar se a violação ao preceito legal estabelecido pela lei 8.213/91 restou ou não caracterizada.

O entendimento da jurisprudência é no sentido de que, havendo comprovação dos esforços feitos pela empresa para a contratação de trabalhadores PCD, o empregador não poderia ser penalizado, já que a inexistência de mão de obra suficiente para atender a cota imposta pela lei 8.213/91 seria fato alheio à sua vontade.

Contudo, a determinação do que seriam "esforços suficientes" é casuística e, portanto, sujeita as partes a decisões incompatíveis e, não raro, conflitantes. É comum identificar casos em que, apesar de comprovada a adoção de medidas idênticas de esforço de cumprimento da cota legal, em um a multa é anulada, enquanto no outro esta é mantida.

De toda forma, o tema ainda não foi enfrentado sob a ótica da lei 13.467/17, a qual reforçou os princípios da liberdade sindical, da autonomia coletiva e da intervenção mínima do judiciário trabalhista nas negociações coletivas (vide art. 8º, § 3º da CLT), elementos que só reforçam a possibilidade e a validade jurídica de tal tipo de pactuação.

Assim, diante de improvável reparo legislativo a curto prazo, de grande utilidade social seria a revisão, pela Justiça do Trabalho, de seu posicionamento sobre o tema. Tal reflexão deve incluir os efeitos causados por decisões muitas vezes dissociadas da realidade, e nas quais se exige cumprimento de uma cota abstrata (e, na prática, impossível de ser atingida), bem como o reconhecimento da via da negociação coletiva como direito constitucionalmente garantido (art. 8º e incisos da Constituição Federal).

Clarissa Lehmen
Sócia da área trabalhista do escritório Trench Rossi Watanabe.

Igor Tavares
Associado da área trabalhista do escritório Trench Rossi Watanabe.

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