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Compliance trabalhista no combate ao trabalho em condições análogas à escravidão

O uso de instrumentos de compliance trabalhista no combate ao trabalho em condições análogas à escravidão no Brasil.

1/6/2022

Mesmo após passados mais de 134 anos da abolição da escravatura no Brasil, todas as semanas os noticiários divulgam relatos de trabalhadores encontrados em condições análogas à escravidão nos mais diversos setores produtivos.

Dados de meados de maio de 2022 indicam que, desde o início do ano, cerca de 500 pessoas foram resgatadas do trabalho análogo à escravidão em nosso país. O número é assustador, pois representa uma média de quatro trabalhadores em condições de escravidão libertos por dia do ano.

Atualmente, a Constituição reconhece como fundamento da federação o valor social do trabalho e consagra o trabalho livre como direito individual em seus arts. 1º, inciso IV, e 5º, inciso XIII.

Além disso, desde a promulgação da emenda constitucional 84/14, passou a ser possível a expropriação, sem qualquer indenização, de propriedades urbanas e rurais em que seja localizada exploração de trabalho escravo na forma da lei (art. 243 da CF/88).

O art. 149 do CP brasileiro define o crime de redução a condição análoga à de escravo nos seguintes termos:

“Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

§ 1o Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

I – contra criança ou adolescente; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)” 

Ainda, o Brasil é signatário das convenções 29 e 105 da OIT, através das quais se comprometeu a suprimir o emprego de trabalho forçado ou obrigatório em todas as suas formas.

Diversos mecanismos e instrumentos têm sido utilizados pelo Poder Público no combate ao trabalho escravo, destacando-se a atuação conjunta dos auditores do Ministério do Trabalho com o Ministério Público do Trabalho.

Além das atuações preventivas, fiscalizatórias e judiciais, em tais situações, foi criada uma lista suja com um cadastro de empregadores que exploram trabalhadores em condições de escravidão moderna. Recentemente, inclusive, o STF reconheceu a constitucionalidade da lista suja na ação de descumprimento de preceito fundamental 509, cuja ementa transcrevo:

“ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – CABIMENTO – SUBSIDIARIEDADE. A adequação da arguição de descumprimento de preceito fundamental pressupõe inexistência de meio jurídico para sanar lesividade – artigo 4º da Lei nº 9.882/1999. PORTARIA – CADASTRO DE EMPREGADORES – RESERVA LEGAL – OBSERVÂNCIA. Encerrando portaria, fundamentada na legislação de regência, divulgação de cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a condição análoga à de escravo, sem extravasamento das atribuições previstas na Lei Maior, tem-se a higidez constitucional. CADASTRO DE EMPREGADORES – PROCESSO ADMINISTRATIVO – CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA – OBSERVÂNCIA. Identificada, por auditor-fiscal, exploração de trabalho em condição análoga à de escravo e lavrado auto de infração, a inclusão do empregador em cadastro ocorre após decisão administrativa irrecorrível, assegurados o contraditório e a ampla defesa. CADASTRO DE EMPREGADORES – NATUREZA DECLARATÓRIA – PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE. Descabe enquadrar, como sancionador, cadastro de empregadores, cuja finalidade é o acesso à informação, mediante publicização de política de combate ao trabalho escravo, considerado resultado de procedimento administrativo de interesse público”. (ADPF 509, Relator: MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 16/09/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-242 DIVULG 02-10-2020 PUBLIC 05-10-2020)

Evidentemente, a divulgação do cadastro de empresas que mantêm ou mantiveram em um passado recente trabalhadores em tais condições degradantes acarreta inúmeras consequências negativas para os empregadores, representando uma mácula em sua reputação perante o mercado e a sociedade.

Ainda assim, verifica-se na Justiça do Trabalho diversas condenações de grandes empresas pelo uso de mão-de-obra análoga escrava, especialmente como co-responsáveis pela contratação de empresas de menor porte que utilizam o trabalho forçado como forma de barateamento dos custos.

Paralelamente a este cenário, a compliance tem se fortalecido no Brasil, despontando como um complexo de instrumentos e políticas que visam a conformidade da empresa com as normas e regulamentos nacionais e internacionais anticorrupção e em campos específicos, como o tributário e trabalhista.

O termo compliance tem origem no verbo inglês to comply, que, em tradução livre, significa cumprir ou obedecer. A disciplina de compliance teve origem no sistema jurídico norte-americano na década de 1950 e nos últimos anos tem se espalhado pelo mundo todo e ganhado novos contornos, adentrando nas mais diversas disciplinas jurídicas.

No cenário nacional, o assunto ganhou visibilidade com a edição da lei  12.846/13, que disciplina a responsabilização das pessoas jurídicas por atos contra a administração pública nacional e internacional.

A evolução do tratamento do tema em solo nacional, contudo, tem elastecido sua disciplina para diversos âmbitos normativos, preceituando a conformidade das pessoas jurídicas aos regulamentos existentes no Brasil em matérias como o direito do trabalho.

De outra banda, o estudo da compliance permitiu apontar, de forma didática, a existência de nove pilares fundamentais para a implementação e gestão da integridade e conformidade nas organizações, quais sejam: suporte da alta administração; avaliação dos riscos; formalização de um programa de compliance; controles internos; treinamento e comunicação; canais de denúncia; investigações internas; due diligence; auditoria e monitoramento.

A somatória desses elementos permite que uma empresa atinja um alto nível de conformidade com a legislação de regência de suas atividades, resultando na redução ou até mesmo neutralização de riscos que podem acarretar sérias consequências para a atividade empresarial.

Dentro de tais riscos, na seara da compliance trabalhista, é evidente que se encontra o trabalho em condições análogas à escravidão, tanto por suas consequências sociais como econômicas.

E tal risco não atinge apenas organizações que utilizam diretamente a mão-de-obra em condições análogas à escravidão, como também empresas que adquirem bens ou terceirizam mão-de-obra de entidades envolvidas com formas de escravidão.

A mitigação dos riscos inerentes ao trabalho escravo se inicia com a análise dos pontos vulneráveis da empresa, verificando-se, por exemplo, as condições a que são submetidos seus empregados e prestadores de serviços, para aferir a adequação à legislação trabalhista.

Além disso, é importante verificar se a atividade explorada tem relação com setores econômicos historicamente relacionados com episódios de escravidão, como na produção agrícola e pecuária ou na indústria têxtil.  

A realização da due diligence de empresas com as quais a organização mantém contratos ou parcerias serve justamente para verificar questões atinentes à sua reputação e condenações judiciais, inclusive no âmbito trabalhista. Isso evita que a empresa seja apontada como fomentadora do trabalho escravo, manchando seu nome no mercado, e gerando, em alguns casos, condenações judiciais como co-responsável pelo trabalho escravo.

É essencial avaliar nesses casos se as empresas prestadoras de serviços ou fornecedoras já foram autuadas pelo Ministério do Trabalho ou investigadas pelo MP do Trabalho quanto a denúncias de trabalho degradante ou, até mesmo, se já houve alguma condenação judicial neste sentido. Ainda, é preciso saber se a contratante terceiriza atividades que podem representar risco de violação dos direitos humanos dos trabalhadores. Até mesmo uma visita técnica aos locais de produção pode ser indispensável para aferir os critérios de utilização de mão-de-obra.

A documentação desse processo pode ser usada como defesa em eventuais procedimentos futuros, para demonstrar que a organização se cercou de todas as garantias possíveis de ausência de violação a direitos trabalhistas por parte das contratantes, não agindo com culpa na contratação.

Registre-se que empresas que terceirizam serviços a outras organizações que exploram trabalho análogo ao de escravo podem ser condenadas solidariamente por tal violação, como se verifica no seguinte julgado:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. TERCEIRIZAÇÃO ILÍCITA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. CONDIÇÕES ANÁLOGAS ÀS DE ESCRAVO 1. Ao contratar empresa inidônea, que mantém empregados em condições de trabalho análogas às de escravo mediante pacto no qual a redução de custos figura como objetivo a ser atingido, a tomadora de serviços torna-se coautora do ilícito cometido por aquela. 2. Tais circunstâncias atraem sua responsabilidade solidária pelos prejuízos causados, à luz do art. 942 do Código Civil. 3. Agravo de instrumento da Reclamada de que se conhece e a que se nega provimento" (AIRR-1345-20.2010.5.02.0050, 4ª Turma, Relator Ministro Joao Oreste Dalazen, DEJT 09/06/2017).

Além disso, é importante que a empresa, especialmente de grande porte, possua códigos de conduta que vedem a exploração do trabalho alheio na organização e possuam previsão quanto ao tratamento de empregados e gestores investigados ou condenados por manterem trabalhadores em condições análogas à de escravidão. Isso porque é um fato notório que grande parte das denúncias de trabalho escravo urbano acontece com trabalhadores domésticos.

A organização também pode utilizar seus canais de comunicação e informação com seus stakeholders para veicular conteúdos preventivos e esclarecedores acerca do trabalho escravo e da política zero de tolerância da empresa com tais violações de direitos humanos.

E, por fim, podemos citar os canais de denúncia como importantes ferramentas para que a empresa tenha conhecimento de violações decorrentes do uso de trabalho em condições de escravidão em fornecedores, prestadores de serviço e parceiros em geral, podendo apurar e, até mesmo, colaborar com os órgãos públicos fiscalizatórios.

Pode-se concluir, diante do exposto, que o efetivo uso de instrumentos de compliance em uma organização empresarial é capaz de reduzir consideravelmente os riscos de utilização de mão-de-obra escrava ou associação com pessoas jurídicas e físicas que exploram o labor em tais condições. Reduz-se, então, através da compliance, possibilidades de condenações administrativas e judiciais, bem como prejuízos sociais e econômicos da empresa que deseja estar em conformidade com as leis nacionais e internacionais que vedam o trabalho em regime de servidão.

_____

BRASIL. Código Penal. Disponível em: Acesso em: 16/05/2022.

Constituição Federal. Disponível em: Acesso em: 16/05/2022.

Ministério do Trabalho e Previdência. Ações da Inspeção do Trabalho concluídas em 2022 resgataram 500 trabalhadores condições análogas às de escravo. Disponível em: Acesso em: 16/05/2022.

Supremo Tribunal Federal. ADPF 509, Relator: MARCO AURÉLIO. Disponível em: < https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754002533> Acesso em: 16/05/2022

Tribunal Superior do Trabalho. AIRR-1345-20.2010.5.02.0050, 4ª Turma, Relator Ministro Joao Oreste Dalazen.

Quésia Falcão de Dutra
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria. Pós-graduada em Prevenção e Combate à Corrupção pelo CERS / Estácio de Sá. Analista Judiciária no TRT da 2ª Região.

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