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Propriedade intelectual e direitos reais de garantia

A interpretação fixada no enunciado não se limita, porém, ao penhor, podendo ser estendida para a cessão fiduciária em garantia, que traduz, atualmente, a principal modalidade de garantia real utilizada nas operações de crédito.

1/6/2022

O campo da propriedade intelectual comporta direitos com feixes1 híbridos, já que compreende – simultaneamente – as esferas existencial e patrimonial sobre o iter imaterial2. Ou seja, entre aquelas titularidades que são suscetíveis de exclusividade3, uma criação intelectual munida de qualidades aptas a lhe atribuir singularidade4 terá na esfera patrimonial a faceta de um direito real5, enquanto, na sua esfera extrapatrimonial, constituirá uma situação jurídica subjetiva existencial. Quanto a essa última, cuida-se de situação existencial que não é inata (como observado usualmente em relação aos direitos da personalidade), mas concebida por ocasião da aquisição originária da exclusividade.

A doutrina estrangeira, por sinal, tem sido enfática sobre a importância de a propriedade intelectual ser estudada no âmbito maior da teoria geral dos direitos reais, centrada tradicionalmente nas coisas corpóreas, bem como, em sentido inverso, sobre a necessidade de essa teoria geral levar em conta a propriedade intelectual6. Entretanto, em grande parte dos currículos universitários, o estudo da matéria é ainda feito de forma tópica, como uma especialização do Direito Comercial, sem as devidas conexões interdisciplinares com a dogmática do Direito Civil.

A compreensão da propriedade intelectual à luz do sistema jurídico permite não apenas posicionar as suas facetas existencial e patrimonial no âmbito dos direitos absolutos, que geram efeitos erga omnes, como também identificar a autonomia dos fundamentos de cada uma dessas facetas na ordem constitucional. Enquanto a proteção aos valores da personalidade ínsitos ao bem imaterial se escora na tutela do ser (art. 1º, III, da CRFB), o resguardo aos direitos reais sobre bens incorpóreos se relaciona com o mercado e a concorrência (art. 170, IV da CRFB).

No entanto, os direitos reais sobre bens de produção imaterial se singularizam, no âmbito da teoria geral dos direitos reais, por serem tipicamente resolúveis7. Com exceção do ambiente dos signos distintivos que são passíveis de renovação (art. 133 da LPI8), ou tendem à perpetuidade pela sua inalienabilidade (art. 1.164 do CC9), todas as demais formas de propriedade sobre bens imateriais são finitas.

Durante a sua existência, que pode superar meio século (por exemplo, art. 2º, parágrafo 2º, da lei 9.609/98 – Lei do Software10), não é incomum que o aviamento11 proporcionado pela propriedade intelectual gere uma lucratividade expressiva, sendo, por isso mesmo, surpreendente que ainda se observe, nos dias de hoje, alguma resistência à utilização dos direitos reais imateriais como instrumento de garantia do crédito. Já na década de 1960, um dos maiores comercialistas do país vaticinava sobre a utilidade das obras audiovisuais como objeto de penhor12.

Tal resistência advém, provavelmente, do receio quanto aos riscos incorridos na mensuração do valor econômico da propriedade intelectual, o que pode dificultar a sua aceitação como meio de garantia do crédito. Com efeito, diversas circunstâncias podem impactar, ao longo da sua existência, a sua capacidade de geração de riqueza, como, por exemplo, (a) uma marca famosa cujo titular é envolvido em um escândalo pode sofrer com crises reputacionais13, que reduzem a demanda consumerista; (b) uma patente de invenção que recaia sobre uma inovadora e lucrativa tecnologia pode se tornar obsoleta, pelo advento de technè melhor, mais barata e mais eficiente14; ou (c) uma criação estética popular pode ser alvo de “cancelamentos” em virtude de algum posicionamento político controverso de sua autora.

No entanto, essas dificuldades não são conclusivas. A uma, porque há metodologias disponíveis para a avaliação de intangíveis, que auxiliam na definição da extensão da garantia frente ao quantum da dívida a ser garantida.15 A duas, porque a depreciação da garantia não é um fenômeno exclusivo dos bens intangíveis, sendo igualmente observada no âmbito das coisas corpóreas. Afinal, uma hipoteca pode ser esvaziada com a depreciação econômica do imóvel (como observado em razão da degradação do planejamento urbano ou do aumento da insegurança pública); e a alienação fiduciária pode ser prejudicada caso o veículo automóvel transmitido em garantia venha a sofrer um acidente nas mãos do devedor. A verdade é que não há instrumento de garantia insuscetível de riscos, cabendo às próprias partes negociar, no exercício da sua autonomia privada, as condições nas quais determinado bem deve ser admitido como garantia real16.

Neste contexto, foi aprovado na IX Jornada de Direito Civil, ocorrida no mês de maio de 2022, o seguinte enunciado: “Os direitos de propriedade industrial caracterizados pela exclusividade são suscetíveis de penhor, observadas as necessidades de averbação junto ao instituto nacional da propriedade industrial para a plena eficácia perante terceiros”. Tal enunciado se coaduna plenamente com o disposto na parte final do art. 1.420 do Código, que restringe o objeto dos direitos reais de garantia aos “bens que se podem alienar”, dentre os quais figuram os direitos de propriedade industrial. Além disso, a menção no enunciado à averbação junto ao INPI se justifica por ser esse o modo próprio de constituição de ônus e gravames sobre esse tipo de bens.    

A interpretação fixada no enunciado não se limita, porém, ao penhor, podendo ser estendida para a cessão fiduciária em garantia, que traduz, atualmente, a principal modalidade de garantia real utilizada nas operações de crédito. O enunciado reflete, portanto, o processo histórico de paulatina ampliação das potencialidades econômicas dos bens intelectuais, que vem sendo objeto de variados atos de constrição e disposição, notadamente de constituição de garantias reais, como meio de assegurar o acesso ao crédito em termos mais seguros e econômicos.

________

1 ROUBIER, Paul. Droits Intellectuels ou Droits de Clientèle. Paris: Editora Siney, 1935, p. 20.

2 Enfocando nos direitos de Autor vide MORATO, Antonio Carlos. Direito de Autor em Obra Coletiva. São Paulo: Saraiva 2007, p. 49.

3 O que não é o caso do teor protegido por obrigações de não fazer, a exemplo do ambiente da concorrência desleal. Nesta matéria permita-se remissão ao nosso BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de Concorrência Desleal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.

4 Tal requisito legal se espraia para as quatro subespécies de bens intelectuais do ambiente (a) estético; (b) ornamental, (c) distintivo e (d) utilitário. No caso de (a) e (b) a designação de tal filtro é originalidade, enquanto em (c) se chama distintividade, e em (d) ato ou atividade inventiva. Mesmo que a criação seja nova, ela não receberá tutela jurídica se não perpassar o filtro qualitativo mínimo erigido por Lei.

5 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XVI. 4ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 65.

6 LANDES, William M & POSNER, Richard Allen. The Economic Structure of Intellectual Property Law. EUA: Harvard University Press, 2003, p. 421.

7 PIERANGELI, José Henrique. Crimes Contra a Propriedade Industrial. Crimes de Concorrência Desleal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 83.

8 Lei 9.279/96: Art. 133. O registro da marca vigorará pelo prazo de 10 (dez) anos, contados da data da concessão do registro, prorrogável por períodos iguais e sucessivos.

9 Lei 10.406/2022: Art. 1.164. O nome empresarial não pode ser objeto de alienação.

10 Lei 9.609/98: Art. 2º O regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigentes no País, observado o disposto nesta Lei. (...) § 2º Fica assegurada a tutela dos direitos relativos a programa de computador pelo prazo de cinqüenta anos, contados a partir de 1º de janeiro do ano subseqüente ao da sua publicação ou, na ausência desta, da sua criação.

11 ASCARELLI, Tullio. Teoria della concorrenza e dei Beni immateriali. 3a Edição, Milão: Editore Dott A. Giuffré, 1960, p.24.

12 FERREIRA, Waldemar Martins. Tratado de Direito Comercial. V.7º, São Paulo: Saraiva, 1962, p. 121.

13 “Reputação não é clientela; esta pode emanar daquela', com ela não se confunde. Reputação é o crédito ou renome que gozam os produtos no mercado” BARBOSA DE OLIVEIRA, Rui Caetano. As cessões de clientela. Obras Completas de Rui Barbosa – Vol. XL. Tomo I, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1913, p. XIX.

14 SCHUMPETER, Joseph Alois. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961, p. 106.

15 Cf. a principal referência sobre o assunto: BARBOSA, Denis Borges & BARBOSA, Ana Beatriz Nunes. Ativos Intangíveis como Garantia. Rio de Janeiro: 2005, disponível em https://www.dbba.com.br/wp-content/uploads/ativos_intangiveis.pdf

16 Sobre a função desempenhada pelas garantias reais e o risco de o bem dado em garantia não ser suficiente para cobrir a dívida, permita-se remeter a RENTERIA, Pablo Waldemar. Penhor e Autonomia Privada. São Paulo: Atlas, 2016, em especial p. 140 e seguintes.

Pedro Marcos Nunes Barbosa
Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados. Cursou seu Estágio Pós-Doutoral junto ao Departamento de Direito Civil da USP. Doutor em Direito Comercial pela USP, Mestre em Direito Civil pela UERJ e Especialista em Propriedade Intelectual pela PUC-Rio.

Pablo Waldemar Renteria
Sócio de Renteria Advogados & Professor do Departamento de Direito da PUC-Rio.

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