A globalização financeira acirrou a competição econômica e tecnológica, acarretando a intensificação das assimetrias existentes entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, porém, por outro lado, reforçou a tendência à integração dos espaços financeiros. Esta integração diz respeito à busca de uma maior interrelação econômica e comercial entre regiões, Estados ou países vizinhos, que passou a constituir elemento central das políticas macroeconômicas.
Diante destas alterações no cenário econômico mundial, não havia como a CF/88 se manter inerte a tais mudanças globais. Assim, o texto constitucional dispôs sobre vários mecanismos aptos a transferir atribuições aos entes federados, com escopo de promover maior autonomia dos estados e municípios, de forma a diminuir as funções de coordenação do governo Federal. Estas tentativas de descentralização transferiram maior responsabilidade para planejar e financiar projetos de investimento aos governos municipais e estaduais.
É cediço que no Brasil, em se tratando de competência tributária, as normas estão insculpidas no texto constitucional. Além disso, a CF/88 descreve ainda como a receita advinda dos tributos será compartilhada entre as diferenças esferas de governo. Pretendia-se, com tal descentralização, que os entes ganhassem projeção estratégica e se transformassem em atores dinâmicos do processo social, a fim de levar soluções mais próximas do cidadão.
O que se verifica é que a descentralização é cada vez mais estimulada, vez que surge como mecanismo de redução de déficits do governo Federal e instrumento para redução de gastos do setor público. Não há dúvidas de que as dimensões continentais do território brasileiro demandam o máximo de descentralização de atribuições, encargos, recursos financeiros e diluição do poder do âmbito central para o interior do país.
Entretanto, o que se tem observado é um aumento de concentração dos recursos financeiros na esfera Federal, tendo a União passado a focar seus esforços na cobrança de contribuições sociais (as quais não tem previsão de rateio entre os entes federados), tirando, portanto, o foco da arrecadação advinda dos impostos.
Ante tal cenário, o que se verifica é que o federalismo brasileiro percorre atualmente um caminho de mudanças que envolvem uma provável onda de recentralização política, certa perda de espaço dos governos estaduais e uma crescente ligação direta entre governo Federal e governos municipais.
Os municípios passaram a ter um peso relevante na distribuição e na aplicação dos recursos tributários e públicos em geral. Tais entes dispõem de um volume expressivo de recursos e os aplicam com razoável autonomia. Pouco são os países que os governos locais podem elaborar, executar e até controlar o seu próprio orçamento sem se submeter ao crivo de uma instancia superior.
No Brasil, ao contrário, os municípios legislam e cobram seus impostos, contratam quantos servidores desejarem e sozinhos fixam os seus salários, assumem compromissos e dívidas bancárias, observadas apenas as condições e limites fixados em leis nacionais.
No que tange à receita advinda dos tributos, não há dúvidas de que a arrecadação é bastante elevada, tendo o Brasil angariado cada vez mais recursos financeiros após a segunda guerra mundial, tornando-se uma das economias emergentes com a maior carga tributária no mundo. Em que pese a quantidade elevada, a qualidade do tributo arrecadado no Brasil favorece a desigualdade social.
Isso porque, na medida em que são cobrados muitos impostos indiretos, a carga tributária brasileira se torna extremamente injusta, pois, os mais pobres destinam maior parcela de sua renda ao consumo, pagando proporcionalmente mais impostos.
Observa-se que, na arrecadação direta, a União concentra aproximadamente dois terços, enquanto os municípios arrecadam apenas 7%. Contudo, após as transferências condicionais obrigatórias, a arrecadação dos municípios sobe de 7% para 19%. Os Estados, por sua vez, que arrecadam 27%, após a transferência, ficam apenas com 25%. Ou seja, tanto a União quanto os estados perdem participação, diminuindo sua arrecadação.1
Na evolução da distribuição da receita tributária nacional2, verifica-se que os Estados passam a perder sua participação relativa, enquanto a União recupera percentuais na participação da receita tributária, sobretudo, ante o aumento das contribuições sociais cobradas. Os municípios, por sua vez, ganharam espaço na participação relativa da receita tributária.
Além da descentralização dos tributos (com o aumento da participação dos municípios na repartição tributária), houve um forte processo de municipalização. A CF/88 já beneficiou os Municípios ao elevar as suas cotas-partes, tanto no fundo de participação dos impostos Federais, quanto do imposto Estadual sobre circulação de mercadorias. Além disso, a criação e expansão do FUNDEF/FUNDEB reforçaram esse processo de transferência de recursos da esfera estadual para a municipal.
A União é também responsável pelas transferências regulares da saúde e as chamadas transferências voluntárias discricionárias (aquelas que passam pela inclusão em dotações no orçamento da União e realização de convênios). No que tange às transferências voluntárias, verifica-se que, atualmente, a União faz mais transferências voluntárias aos municípios do que para os estados.
As transferências voluntárias demonstram, em verdade, uma mudança nas relações intergovernamentais. O governo Federal repassa, proporcionalmente, cada vez menos para os estados e transfere diretamente para os Municípios. Há uma ligação mais direta entre o governo Federal e as prefeituras, de forma que a esfera intermediária do governo deixou de comandar ou de participar política, fiscal e financeiramente da relação entre União Federal e Municípios.
Esta ligação mais direta se deve também a natureza do processo eleitoral brasileiro, em que os congressistas estão mais vinculados aos interesses locais do que regionais ou estaduais (a fim de angariar mais votos).
Nada obstante, verifica-se que o desempenho do ISS, de competência municipal, tem tido uma atuação comparativamente melhor do que o ICMS, de competência estadual, contribuindo para a receita dos estados cair em comparação com a receita municipal. Isto é, enquanto a arrecadação do ICMS se manteve basicamente no mesmo patamar, a arrendação do ISS, por sua vez, foi elevada.3
As argumentações acima delineadas são relevantes ao se avaliar o fato de que, em 2009, apenas 11, dos 26 estados mais o DF, eram pagadores de impostos Federais. Ou seja, pagam muito mais impostos do que recebem de volta na repartição de receitas.
Conforme se verifica da tabela abaixo, os outros quinze são recebedores, isto é, recebem mais recursos federais do que enviaram à União, a exemplo do Pará, Paraíba e Maranhão. Os estados pagadores estão majoritariamente localizados no Centro-Oeste, Sul e Sudeste do país, com exceção de Pernambuco e Amazonas.
Tabela 1 – Arrecadação de impostos federais pelos Estados e a respectiva receita recebida em 2009
Estados |
Quanto paga ao governo federal |
Quanto recebe do governo federal |
Resultado final |
Acre |
R$244.750.128,94 |
R$2.656.845.240,92 |
R$2.412.095.111,98 |
Amazonas |
R$6.283.046.181,11 |
R$3.918.321.477,20 |
— R$2.364.724.703,91 |
Amapá |
R$225.847.873,82 |
R$2.061.977.040,18 |
R$1.836.129.166,36 |
Pará |
R$2.544.116.965,09 |
R$9.101.282.246,80 |
R$6.557.165.281,71 |
Rondônia |
R$686.396.463,36 |
R$2.488.438.619,93 |
R$1.802.042.156,57 |
Roraima |
R$200.919.261,72 |
R$1.822.752.349,69 |
R$1.621.833.087,97 |
Tocantins |
R$482.297.969,89 |
R$3.687.285.166,85 |
R$3.204.987.196,96 |
Distrito Federal |
R$50.454.719.368,50 |
R$7.356.318.744,45 |
— R$43.098.400.624,05 |
Alagoas |
R$937.683.021,32 |
R$5.034.000.986,56 |
R$4.096.317.965,24 |
Bahia |
R$9.830.083.697,06 |
R$17.275.802.516,78 |
R$7.445.718.819,72 |
Ceará |
R$4.845.815.126,84 |
R$10.819.258.581,80 |
R$5.973.443.454,96 |
Maranhão |
R$1.886.861.994,84 |
R$9.831.790.540,24 |
R$7.944.928.545,4 |
Paraíba |
R$1.353.784.216,43 |
R$5.993.161.190,25 |
R$4.639.376.973,82 |
Pernambuco |
R$7.228.568.170,86 |
R$11.035.453.757,64 |
R$3.806.885.586,78 |
Piauí |
R$843.698.017,31 |
R$5.346.494.154,99 |
R$4.502.796.137,68 |
Rio Grande do Norte |
R$1.423.354.052,68 |
R$5.094.159.612,85 |
R$3.670.805.560,17 |
Sergipe |
R$1.025.382.562,89 |
R$3.884.995.979,60 |
R$2.859.613.416,71 |
Goiás |
R$5.397.629.534,72 |
R$5.574.250.551,47 |
R$176.621.016,75 |
Mato Grosso |
R$2.080.530.300,55 |
R$3.864.040.162,26 |
R$1.783.509.861,71 |
Mato Grosso do Sul |
R$1.540.859.248,86 |
R$2.804.306.811,00 |
R$1.263.447.562,14 |
Espírito Santo |
R$8.054.204.123,9 |
R$3.639.995.935,80 |
—R$4.414.208.188,1 |
Minas Gerais |
R$26.555.017.384,87 |
R$17.075.765.819,42 |
— R$9.479.251.565,45 |
Rio de Janeiro |
R$101.964.282.067,55 |
R$16.005.043.354,79 |
— R$85.959.238.712,76 |
São Paulo |
R$204.151.379.293,05 |
R$22.737.265.406,96 |
— R$181.414.113.886,09 |
Paraná |
R$21.686.569.501,93 |
R$9.219.952.959,85 |
— R$12.466.616.542,08 |
Rio Grande do Sul |
R$21.978.881.644,52 |
R$9.199.070.108,62 |
— R$12.779.811.535,9 |
Santa Catarina |
R$13.479.633.690,29 |
R$5.239.089.364,89 |
— R$8.240.544.325,4 |
Sem sombra de dúvidas, a questão atinente à repartição de receitas e a intensificação da ligação direta entre a União Federal e as prefeituras explicam os motivos que colocam os Estados como pagadores de impostos Federais. Ademais, a questão relativa à produção de riquezas influencia nestes dados. Isso porque, os estados que geram mais riquezas são, consequentemente, responsáveis pelo pagamento de mais impostos, em detrimento daqueles que geram menos riquezas.
Além disso, tendo em vista que a União aumenta cada vez mais os repasses financeiros aos municípios e intensifica a cobrança e fiscalização de contribuições sociais (já que não há repartição de receitas), é evidente que haverá estados que irão arcar com valor de imposto Federal superior ao que lhe é repassado, figurando como pagador de impostos à União.
Soma-se a isso o fato de que os Estados que produzem menos riquezas, consequentemente, terão menos recursos financeiros girando em seu território, reduzindo, inclusive, a arrecadação dos impostos Estaduais. Ciente de tal constatação, a União, a fim de fomentar tais estado e promover a igualdade entre as regiões do Brasil, sem dúvidas, deverá realizar um maior repasse financeiro aos Estados com menor produção de riquezas.
Portanto, verifica-se que a questão atinente à repartição de receitas, a intensificação da ligação direta entre a União Federal e os Municípios e a quantidade de riquezas produzidas nos Estados são fatores que influenciam na classificação destes entes como pagadores ou recebedores de impostos Federais. Pode-se, ainda, concluir que esta classificação pode acirrar a competição existente entre os próprios estados, o que, por conseguinte, enfraquece (ainda mais) o federalismo cooperativo que vigora no Brasil.
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1 AFONSO, José Roberto R. Federalismo Fiscal Brasileiro: uma visão atualizada.
2 Idem.
3 AFONSO, José Roberto R. Federalismo Fiscal Brasileiro: uma visão atualizada.
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AFONSO, José Roberto R. Federalismo Fiscal Brasileiro: uma visão atualizada. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/cadernovirtual/article/view/2727. Acesso em: mai. 2022.
ANTONIOLI, Felipe. Federalismo cooperativo brasileiro. Disponível em:https://feant.jusbrasil.com.br/artigos/151560719/federalismo-cooperativo-brasileiro.Acesso em: mai. 2022.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: mai. 2022.
EIDT, Sérgio Luis; LIMA, Jandir Ferrera de. Descentralização tributária no Brasil: um pacto federativo para os Municípios, Estados e a União Federal. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/redes/article/view/270. Acesso: mai. 2022.
ROQUE, Leandro. O seu estado é um pagador ou um recebedor de impostos federais? Disponível em: https://www.mises.org.br/BlogPost.aspx?id=682. Acesso em: mai. 2022.