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Da (im)possibilidade de prorrogação de contratos de serviços de natureza continuada celebrados sob a égide da lei Federal, após a vigência da nova lei de licitações

A discussão desse tema é salutar tanto no meio acadêmico quanto para os aplicadores do direito, servidores públicos, que, não rara as vezes, enfrentaram grandes dúvidas envolvendo essa seara.

31/5/2022

Sabe-se que, em termos gerais, de acordo com o art. 6º da LINDB, a lei nova tem efeito imediato, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, revogando tácita ou expressamente os dispositivos da lei anterior, de maneira que passa a viger e regular os fatos que sucedem a sua existência.

A lei Federal 14.133/21, por sua vez, traz, em seu texto, o fenômeno da ultratividade da lei Federal 8666/93, em que a lei suplantada continua vigente em concomitância com a novel legis, pelo período de dois anos após a sua publicação. Ou seja, a nova lei de licitações estabeleceu um regime transitório de coexistência com a lei Federal 8666/93.

Nesse sentido, até 31/3/23, cada órgão ou entidade pode optar por utilizar o regramento lei Federal 14.133/21 ou da lei Federal 8666/93, não sendo possível a combinação entre os regimes, nos termos da parte final do caput do art. 191 da nova lei.

A controvérsia, por sua vez, exsurge das interpretações advindas da leitura do art. 190 e parágrafo único do art. 191 do novel diploma legal, no contexto dos contratos de natureza continuados, quando prevê que, durante o prazo de dois anos decorridos após a publicação da lei Federal 14.133/21, os contratos celebrados com base nas leis citadas no inciso II do caput do art. 193, seriam regidos pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.

Diferentes posicionamentos doutrinários surgem a respeito da possibilidade de prorrogação da vigência dos contratos, após o decurso dos dois anos da publicação da nova lei: alguns entendem pela admissibilidade de estender a vigência para além de 31/3/23, através de iguais e sucessivas prorrogações, até o limite de 60 meses, sob o agasalho de que a parte final do parágrafo único do art. 191 da nova lei, quando prevê que “o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência”, estaria autorizando a ultratividade da legislação anterior para guiar toda a execução do  contrato; outros defendem que os contratos estariam fadados a extinção em razão da previsão expressa do prazo limite de vigência da lei Federal 8666/93 e  impossibilidade de conciliação normativa dos dois sistemas.

A discussão desse tema é salutar tanto no meio acadêmico quanto para os aplicadores do direito, servidores públicos, que, não rara as vezes, enfrentaram grandes dúvidas envolvendo essa seara.

No terreno tão inóspito que ainda se apresenta a nova lei de licitações, o presente debate visa enriquecer a problemática, resgatando conceitos essenciais e levando o leitor a ponderar e sopesar os institutos jurídicos visando obter conclusões que mais se aproxime ao interesse público. 

Da (im) possibilidade de prorrogar contrato celebrado sob a égide da lei Federal 8666/93: 

Com o advento da lei Federal 14.133/21, muito tem se discutido sobre o destino dos contratos de serviços continuados, celebrados na vigência da lei Federal 8666/93, se estariam fadados ao encerramento ou se poderiam ser submetidos a prorrogações sucessivas até o prazo máximo de 60 anos.

O art. 191, caput e parágrafo único do novel diploma legal prevê que, durante o prazo de dois anos decorridos após a publicação da lei Federal 14.133/21, os contratos celebrados com base nas leis citadas no inciso II do caput do art. 193, seriam regidos pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.

O parágrafo único do citado artigo permite que o gestor público, dentro do prazo de dois anos que suceder a publicação da lei Federal 14.133/21, escolha contratar com base na nova lei ou nas lei Federal 8.666, de 21/6/93, a lei Federal 10.520, de 17/7/02, e os arts. 1º a 47-A da lei Federal 12.462, de 4/8/11, e, optando por esta segunda opção, a avença será regida durante toda a sua vigência.

Após decorrido o prazo de dois anos da publicação da nova lei, o art. 193 anuncia a revogação automática das leis Federais 8.666, de 21/6/93, 10.520, de 17/7/02, e dos arts. 1º a 47-A da lei 12.462, de 4/8/11.

Nesse sentido, surge o questionamento sobre a possibilidade de se prorrogar os contratos celebrados com base na lei Federal 8.666/93 ou a lei Federal 10.520/02, durante o interstício de coexistência dos dois sistemas jurídicos (lei Federal 8666/93 e lei Federal 14.133/21), após a revogação daqueles diplomas.

No sentido de que não haveria qualquer óbice a prorrogação dos contratos de serviços contínuos firmados à luz da lei 8.666/93, mesmo após sua revogação, durante toda sua vigência, está grande parte da doutrina, que se destaca a opinião do Advogado da União Ronny Charles (2021). Segundo essa corrente, o parágrafo único do art. 191 da lei Federal 14.133/21 enuncia que os contratos celebrados com fundamento na legislação anterior manteriam sua regência pelas regras vigentes ao tempo da sua constituição.

Com objetivo de fomentar o diálogo, importante trazer à tona o limite material do conceito de vigência do contrato, tendo em vista que, ao dispor que os contratos são regidos pela legislação que lhe originou, durante toda sua vigência, a lei silencia se estaria englobando as prorrogações sucessivas ou limitar-se-ia a vigência inaugural.   

A vigência do contrato é o tempo de duração previsto, no instrumento, compreendido entre a data de sua assinatura ou outra determinada e a sua extinção. 

GASPARINI (2007, p. 649) define que “A vigência de um contrato tem início na data de sua assinatura, ou em outra posterior devidamente determinada, até o dia de sua rescisão, na hipótese de recair em data divergente daquela aprazada no termo contratual.”

Nos contratos de serviços contínuos, muito embora a peculiar característica de essencialidade, e de não interrupção, a vigência encerra prazo certo.

A prorrogação do prazo de vigência é uma alteração contratual, que se faz mediante termo aditivo, que tem como objetivo prolongar o prazo original de sua vigência, como já se manifestou o STJ:

Prorrogar contrato é prolongar o prazo original de sua vigência com o mesmo contratado e nas mesmas condições. Recurso ordinário a que se nega provimento”. (STJ, RMS nº 24.118/PR, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe de 15.12.2008)” (MENDES, 2018, grifamos).

A prorrogação, como já visto, é uma faculdade da administração, de natureza convencional, ficando dependente de um ato solene e formal, em que as partes acordam dilatar o prazo da avença.

Desta maneira, ao entender que o contrato vai ser regido pelo sistema jurídico que lhe deu origem até mesmo depois do período de dois anos do início da vigência da nova lei, a doutrina concede uma interpretação mais elástica sobre o conceito de vigência contratual, considerando que as prorrogações estariam subentendidas no espectro do parágrafo único do art. 191, e admite uma ultratividade das leis anteriores não expressa.

Em sentido contrário, por sua vez, pode-se extrair uma interpretação mais literal da norma, que considera vigência do contrato tão-somente o prazo estipulado originalmente no instrumento, tendo em vista que toda extensão prazal que extrapola o prazo original será uma alteração contratual, realizada por meio de termo aditivo.

Considera-se, nesta perspectiva, que a voluntas legis é atribuir limite temporal adstrito a vigência prevista originalmente na avença, observando o prazo de ultratividade da legis anterior, que fora estipulado expressamente.

Assim, os contratos celebrados com base na legislação anterior teriam vigência até o final do prazo de ultratividade das normas revogadas pela lei Federal  14.133/21, ou seja, dois anos após a sua publicação, que encerra em 31/3/23.

A previsão de que o contrato será regido pela legislação que lhe deu origem durante sua vigência é apenas um desdobramento lógico da impossibilidade de coexistência de dois regimes regulando um mesmo instrumento, bem como uma maneira de conferir segurança jurídica durante a execução contratual, dentro do prazo original.

Não existindo previsão legal expressa quanto a prorrogação do contrato, eis que a lei se refere apenas a vigência, e esta limita-se ao prazo estabelecido originalmente ao contrato, não incluindo as prorrogações, por força do princípio da legalidade, parece ser equivocada a interpretação quanto a possibilidade de se prorrogar os contratos, firmando novos vínculos, com base em norma já revogada.

Considerações finais

O presente trabalho pretendeu analisar a problemática advinda da leitura do art. 190 e parágrafo único do art. 191 do novel diploma legal que prevê que, durante o prazo de dois anos decorridos após a publicação da lei Federal 14.133/21, os contratos de serviços continuados, celebrados com base na legislação anterior, seriam regidos pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.

Verificou-se que existe uma corrente que entende que o texto legal “seriam regidos pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência” denota a possibilidade do contrato sofrer sucessivas prorrogações, mesmo após esgotar o prazo de ultratividade da antiga lei, pelo fato de que o ajuste passaria pautar-se na lei que lhe deu origem em todos os seus termos.

Contrariamente a esse entendimento, pode-se identificar outra via de pensamento que reflete uma exegese mais literal da norma, considerando que o legislador, ao se referir a situação de que o contrato seria regido pela norma que lhe originou, durante toda sua vigência, quis se referir a vigência normal, prevista originalmente no instrumento, desde que dentro do prazo de ultratividade da legis anterior, tal qual permitido na lei Federal 14.133/21.

Importante registrar que longe de pretender respostas certas, este estudo ambiciona a ampliação do debate, do estudo, tanto no meio acadêmico quanto profissional, através de resgates de conceitos, métodos de interpretação para criação de um ambiente propício a formação de conhecimento consciente.

A questão quanto à possibilidade ou não de prorrogação, como pode ser visto, refuga de uma leitura simplista do texto normativo, demandando um retrocesso as origens e essência do instituto para, no contexto legal e político, obter uma melhor interpretação.

Assim, lançam-se, neste artigo, de forma modesta, pincelas do que pode reverberar em intensas e robustas discussões que só enriquecem o tema, e permitem a construção de uma interpretação mais sedimenta e madura.  

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BRASIL. Lei n.º 8.666/93, de 21 de junho de 1993. Lei de Licitações e contratos administrativos.

CARVALHO, Morgana Bellazz de Oliveira. Contrato administrativo: desvinculação da vigência do crédito orçamentário e controvérsias acerca da reserva de dotação orçamentária. 2006. Disponível em: Acessado em 5 de abril de 2022.

CHARLES, Ronny. Lei de Licitações Públicas. 12ª Ed. Juspodivm, 2021.

CHARLES, Ronny. A futura nova lei de licitações. Disponível em:https://ronnycharles.com.br/a-futura-nova-lei-de- icitacoes/#:~:text=Por%20Ronny%20Charles&text=A%20Lei%20n%C2%BA%208.666%2F93%2C%20atual%20Lei%20geral%20de%20licita%C3%A7%C3%B5es,do%20ent%C3%A3o%20Presidente%20Fernando%20Collo

PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Comentários à Lei de Licitações e Contratações da Administração Pública, 6ª Ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

MAZZOCO, Carlos Fernando. Duração do contrato administrativo. 2002. Disponível em:

MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Eficácia nas Licitações e Contratos. 10ª ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2005.

MPOG. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instrução Normativa n.º 2, de 30.4.2008. Dispõe sobre regras e diretrizes para a contratação de serviços, continuados ou não.

MUKAI, Toshio. As prorrogações nos serviços contínuos são facultativas? 2002. Disponível em: Acessado em 02 de abril de 2022. 

Francine M. dos Reis Guedes
Advogada. Especialista em Licitações. Pós-Graduada em Ciências Penas. Mestra em Ciências Criminológicas Forenses.

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