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A LGPD e o tempo de guarda dos prontuários médicos

Todas as unidades de saúde que prestam assistência médica e são detentoras de arquivos de prontuários médicos são obrigadas a constituir uma Comissão de Revisão de Prontuários e uma Comissão Permanente de Avaliação de Documentos, tomando como base as atribuições estabelecidas na legislação arquivística brasileira.

30/5/2022

I – A definição legal de “prontuário médico”

1.  No início deste século, a resolução n. 1.638/02 do CFM - Conselho Federal de Medicina definiu prontuário médico como “o documento único constituído de um conjunto de informações, sinais e imagens registradas, geradas a partir de fatos, acontecimentos e situações sobre a saúde do paciente e a assistência a ele prestada, de caráter legal, sigiloso e científico, que possibilita a comunicação entre membros da equipe multiprofissional e a continuidade da assistência prestada ao indivíduo”  (Art. 1º – Grifou-se).

2. Trata-se de documento deontológico obrigatório e vinculante para os médicos e paramédicos, ex vi do art. 18 do Código de Ética Médica aprovado pelo CFM1.

II – As finalidades secundárias do prontuário médico

3. Além da finalidade primária, de servir de instrumento de assistência à saúde do paciente, cuja legitimidade (base legal) radica no “cumprimento de obrigação legal ou regulatória” prevista no art. 7º, inc. II, em combinação com o art. 11, inc. II, al. “a”, ambos da lei n. 13.709/18, que se autointitulou “LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais”, o segundo “Considerando” da resolução CFM n. 1.638/02 destacou as finalidades secundárias do prontuário médico, ao dizer que “é documento valioso para o paciente, para o médico que o assiste e para as instituições de saúde, bem como para o ensino, a pesquisa e os serviços públicos de saúde, além de instrumento de defesa legal”, finalidades essas que se legitimam, em princípio, com o “fornecimento de consentimento pelo titular” (LGPD, art. 7º, inc. I), ou, em se tratando de dados pessoais sensíveis, como o são os dados de saúde do paciente, quando este ou seu responsável legal “consentir, de forma específica e destacada, para finalidades específicas” (LGPD, art. 11, inc. I), afigurando-se, a gestão dos termos de consentimento prestados pelos pacientes, um grande desafio lançado pela LGPD aos médicos e gestores da saúde2.

III – A informatização dos prontuários médicos

4. Pois bem. No mesmo ano de 2002, preocupado com o volume exponencial de documentos médicos armazenados em papel nos estabelecimentos de saúde, em decorrência da obrigação legal de abrir prontuários médicos para todos os pacientes3, e servindo-se dos avanços da tecnologia da informação e das telecomunicações, que passaram a oferecer novos métodos de armazenamento e de transmissão de dados4, o CFM editou a resolução n. 1.639/02, que aprovou as "normas técnicas para o uso de sistemas informatizados para a guarda e manuseio do prontuário médico [...] possibilitando a elaboração e o arquivamento do prontuário em meio eletrônico” (Art. 1º).

5. Não deixa de ser interessante observar que, no âmbito da administração pública federal, essa preocupação com o volume crescente de documentos oficiais arquivados em papel remonta à década de 60, quando, no governo do Presidente Costa e Silva, foi promulgada e por ele sancionada a lei n. 5.433/68, que “regula a microfilmagem de documentos oficiais e dá outras providências” (Grifou-se), posteriormente regulamentada, em segunda edição, pelo decreto n. 1.799/96.

6. Tecnologia hoje obsoleta, a microfilmagem, tanto quanto o é, por exemplo, a transmissão  de documentos em papel via telefac-símile, mais conhecido como “fax” – exemplos emblemáticos de como a tecnologia da informação em comunicação caminha a passos largos, em constante e vertiginosa evolução.

IV – O tempo de guarda dos prontuários médicos

7. Mas voltando à resolução CFM n. 1.639/02, após “recomendar a implantação da Comissão Permanente de avaliação de documentos em todas as unidades que prestam assistência médica e são detentoras de arquivos de prontuários médicos, tomando como base as atribuições estabelecidas na legislação arquivística brasileira” (Art. 3º), para apoiar a atuação da comissão de revisão de prontuários, que fora criada pelo art. 3º da resolução anterior (Res.  CFM n. 1.638/02), o Conselho Federal de Medicina aprovou as seguintes determinações:

(i) a guarda permanente dos prontuários médicos arquivados eletronicamente em meio óptico ou magnético e microfilmados (Cf. art. 2º);

(ii) o prazo mínimo de 20 anos, a partir do último registro, para a preservação dos prontuários médicos em suporte de papel, findo o qual, e considerando o valor secundário dos prontuários, a Comissão de Avaliação de Documentos, após consulta à Comissão de Revisão de Prontuários5, deverá elaborar e aplicar critérios de amostragem para a preservação definitiva dos documentos em papel que apresentem informações relevantes do ponto de vista médico-científico, histórico e social (Cf. art. 4º e par. ún.);

(iii) a eliminação do suporte de papel dos prontuários microfilmados, no caso de emprego da microfilmagem, de acordo com os procedimentos previstos na legislação arquivística em vigor, após análise obrigatória da Comissão de Avaliação de Documentos da unidade médico-hospitalar geradora do arquivo (Cf. art. 5º);

(iv) a eliminação do suporte de papel dos mesmos, no caso de digitalização dos prontuários, desde que a forma de armazenamento dos documentos digitalizados obedeça à norma específica de digitalização contida no anexo desta resolução e após análise obrigatória da comissão de avaliação de documentos da unidade médico-hospitalar geradora do arquivo (Cf. art. 6º).

8. Posteriormente, revogando expressamente a resolução CFM n. 1.639/2002, e reproduzindo sem alterações a maioria das disposições desta, a resolução CFM n. 1.821/2007 aprovou o “manual de certificação para sistemas de registro eletrônico em saúde, versão 3.0” (Art. 1º – Grifou-se) e reiterou a autorização para a digitalização dos prontuários dos pacientes em suporte de papel, desde que atendidos os parâmetros expressos na resolução, dentre os quais, destacam-se:

Art. 2º [...].

§ 2º Os arquivos digitais oriundos da digitalização dos documentos do prontuário dos pacientes deverão ser controlados por sistema especializado (GED - gerenciamento eletrônico de documentos), que possua, minimamente, as seguintes características:

a) Capacidade de utilizar base de dados adequada para o armazenamento dos arquivos digitalizados;

b) Método de indexação que permita criar um arquivamento organizado, possibilitando a pesquisa de maneira simples e eficiente;

c) Obediência aos requisitos do "nível de garantia de segurança 2 (NGS2)", estabelecidos no Manual de Certificação para Sistemas de Registro Eletrônico em Saúde”.

9. No tocante ao tempo de guarda dos prontuários médicos, a resolução CFM n. 1.821/07 manteve o disposto na resolução anterior, ao prescrever “a guarda permanente, considerando a evolução tecnológica, para prontuários dos pacientes arquivados eletronicamente em meio óptico, microfilmado ou digitalizado” (art. 7º – Grifou-se), e quanto aos prontuários em suporte de papel, ainda não digitalizados, a resolução também reiterou o disposto na resolução anterior, estabelecendo o prazo de guarda mínimo de 20 anos, contados da data do último registro (Art. 8º).

10. Causa espécie essa diferença entre o tempo de guarda dos prontuários em suporte de papel (manutenção por  20 anos) e o dos arquivados eletronicamente (manutenção permanente): Seria o caso de empreender uma incursão nos anais do Conselho Federal de Medicina que registraram os debates em torno dessas resoluções para tentar atinar com a ratio desse tratamento diferenciado em função do formato do prontuário – em papel ou digital.

11. De toda forma, essa questão perdeu relevância prática na medida em que, posteriormente, a lei Federal n. 13.787/18, que “Dispõe sobre a digitalização e a utilização de sistemas informatizados para a guarda, o armazenamento e o manuseio de prontuário de paciente”, estabeleceu que “Decorrido o prazo mínimo de 20 anos a partir do último registro, os prontuários em suporte de papel e os digitalizados poderão ser eliminados” (Art. 6º), e “os documentos originais poderão ser destruídos após a sua digitalização, observados os requisitos constantes do art. 2º desta lei, e após análise obrigatória de comissão permanente de revisão de prontuários e avaliação de documentos, especificamente criada para essa finalidade” (Art. 3º – Grifou-se), valendo observar, por oportuno, que esta lei, promulgada no governo do Presidente Michel Temer, ainda não foi regulamentada pelo Poder Executivo.

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1 Resolução CFM n. 2.217/208: Código de Ética Médica, Capítulo X, art. 18: “É vedado ao médico deixar de elaborar prontuário legível para cada paciente”.

2 As seguintes finalidades de tratamento dos dados de saúde, elencadas nas alíneas do art. 11, inc. II da LGPD não exigem o consentimento prévio do paciente: 1 – cumprimento de obrigação legal ou regulatória por médicos, paramédicos e estabelecimentos de saúde (Alínea “a”); 2 – tratamento compartilhado de dados necessários à execução, pela administração pública, de políticas públicas previstas em leis ou regulamentos (Alínea “b”); 3 – realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais sensíveis (Alínea “c”); 4 – exercício regular de direitos, inclusive em contrato e em processo judicial, administrativo e arbitral (Alínea “d”); 5 – tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária (Alínea “e”); 6 – proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro (Alínea “f”); 7 – garantia da prevenção à fraude e à segurança do titular, nos processos de identificação e autenticação de cadastro em sistemas eletrônicos (Alínea “g”).

3 Resolução CFM n. 1.639/2002: “CONSIDERANDO o volume de documentos armazenados pelos estabelecimentos de saúde e consultórios médicos em decorrência da necessidade de manutenção dos prontuários”.

4 Resolução CFM n. 1.639/2002: “CONSIDERANDO os avanços da tecnologia da informação e de telecomunicações, que oferecem novos métodos de armazenamento e de transmissão de dados”.

5 O art. 9º da Resolução CFM n. 1.821/2007 estabeleceu que “As atribuições da Comissão Permanente de Avaliação de Documentos em todas as unidades que prestam assistência médica e são detentoras de arquivos de prontuários de pacientes, tomando como base as atribuições estabelecidas na legislação arquivística brasileira, podem ser exercidas pela Comissão de Revisão de Prontuários” (Grifou-se).

Roberto Braga
Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo - USP, EXIN® Certified DPO, Encarregado pelo Tratamento de Dados Pessoais externo (DPO as a service) da empresa Hispamar Satélites S/A.

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