Em 1º/1/22, entrou em vigor a CID-111, ou seja, a 11ª versão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde – ou, na tradução literal do inglês, “Classificação Internacional de Doenças para Estatísticas de Mortalidade e Morbidade”2.
Uma grande novidade da 11ª versão é a inclusão da síndrome de burnout, item QD-85, em capítulo reservado a problemas associados ao emprego ou desemprego.3
Segundo o item QD-85, burnout é uma síndrome conceituada como o resultado de um meio ambiente do trabalho dotado de estresse crônico, que não foi gerenciado com sucesso.4
Se não foi gerenciado com sucesso, é de se concluir, ipso facto, que o empregador descumpriu duas normas-princípios labor-ambientais, extraíveis do art. 7º, inciso XXII, da Constituição da República: 1. a norma-princípio do risco mínimo regressivo, de modo que o meio ambiente do trabalho deve ser 100% seguro ou minimamente agressivo; e 2. a norma-princípio da retenção do risco na fonte, pelo que o empregador deve adotar todas as medidas possíveis, com base no atual estado da técnica, para não expor o trabalhador a riscos que degradem a sua vida ou saúde.
A síndrome de burnout é caracterizada por três dimensões: 1. sensação de esgotamento ou de exaustão; 2. falta de pertencimento ou humor deprimido, relacionados ao trabalho; e 3. sensação de ineficácia e de falta de realização.5
Veja-se que as dimensões se relacionam, com perfeição ao conceito de saúde, que, segundo o preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde e o art. 3º, alínea “e”, da convenção 155 da OIT, não é mera ausência de doença ou enfermidade (conceito negativo), mas um completo estado de bem-estar físico, mental e social (conceito positivo).
A sensação de esgotamento ou de exaustão se relaciona ao bem-estar físico; a falta de pertencimento ou humor deprimido, relacionados ao trabalho, relaciona-se ao bem-estar mental; e a sensação de ineficácia e de falta de realização se relaciona ao bem-estar social e existencial.
Ressalte-se que a convenção 155 da OIT é um tratado internacional de direitos humanos, e, embora não se equipare a emendas constitucionais, por não ter sido aprovada pelo quórum qualificado do art. 5º, § 3º, da Constituição da República (é anterior à inclusão desse quórum pela emenda constitucional 45/04, inclusive), ostenta posição hierárquico-normativa de supralegalidade e imprime eficácia paralisante a qualquer norma infraconstitucional que lhe contradiga. 6
Assim, o conceito de saúde, na legislação infraconstitucional, deve adequar-se ao conceitual alargado previsto no art. 3º, alínea “e”, da convenção 155 da OIT.
A síndrome de burnout se refere, especificamente, a fenômenos do meio ambiente do trabalho, e não se aplica a experiências ocorridas em outras áreas da vida.7
O item QD-85 da CID-11 exclui do âmbito de reconhecimento da síndrome de burnout, expressamente: 1. transtornos de ajuste (6B43); 2. transtornos especificamente associados ao estresse (6B40-6B4Z); 3. ansiedade ou transtornos relacionados ao medo (6B00-6B0Z); e 4. transtornos do humor (6A60-6A8Z).8
É cediço que a lei 8.213/91 equipara a acidentes do trabalho as doenças ocupacionais, subdivididas em doenças profissionais, produzidas ou desencadeadas pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade, e em doenças do trabalho, adquiridas ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente.
Aqui, dois pontos hão de ser bem ressaltados.
Em primeiro lugar, embora a doença do trabalho deva relacionar-se diretamente ao trabalho, não há necessidade de se relacionar exclusivamente com ele, ou seja, pode ter outra origem, mas também se relacionar com o trabalho, como fator de agravamento.
Trata-se do fenômeno da concausalidade, previsto expressamente no art. 21, inciso I, da lei 8.213/91, segundo o qual permanece reconhecidamente ocupacional doença que, embora não se relacione exclusivamente ao trabalho (o trabalho não seja sua única causa), tenha tido contribuição das condições do trabalho para desencadear a morte do trabalhador, redução ou perda da sua capacidade de trabalho ou que tenha produzido lesão que exija atenção médica para a sua recuperação.
Em segundo lugar, embora o art. 20, incisos I e II, da lei 8.213/91 exija que a doença ocupacional seja a constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social (atual Ministério do Trabalho e Previdência), o § 2º dessa norma-regra prevê que não se trata de um rol numerus clausus (taxativo), mas numerus apertus (meramente exemplificativo), sendo ocupacional a doença não incluída na relação, mas que tenha resultado das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relacione diretamente.
Dito isso, e na esteira da relação firmada pela própria CID-11, abstratamente, de que a síndrome de burnout é resultado de um meio ambiente do trabalho tóxico, conclui-se que toda síndrome de burnout atestada por médico (CID-11, item QD-85) tem, necessariamente, raiz ocupacional e é considerada doença do trabalho.
E, na esteira da causa da síndrome de burnout (meio ambiente de trabalho dotado de estresse crônico e não gerenciado com sucesso), conclui-se que toda síndrome de burnout atestada por médico (CID-11, item QD-85) faz presumir, de forma absoluta (iuris et de iure), pelo menos a culpa do empregador, sujeitando-o à responsabilidade civil, na forma dos arts. 8º, § 1º, 223-B e 223-E da Consolidação das Leis do Trabalho e dos arts. 186, 927, caput, 932, inciso III, e 933 do CC/02.
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1 WORLD HEALTH ORGANIZATION. ICD-11: international classification of diseases. 11. ed. Publicado em: [S.d.]. Disponível em: . Acesso em: 16 dez. 2021.
2 “International Classification of Diseases for Mortality and Morbidity Statistics” (WORLD HEALTH ORGANIZATION..., S.d.).
3 “Problems associated with employment or unemployment” (WORLD HEALTH ORGANIZATION..., S.d.).
4 “Description: Burnout is a syndrome conceptualized as resulting from chronic workplace stress that has not been successfully managed. (...)” (WORLD HEALTH ORGANIZATION..., S.d.).
5 “Description: (...) It is characterised by three dimensions: 1) feelings of energy depletion or exhaustion; 2) increased mental distance from one’s job, or feelings of negativism or cynicism related to one's job; and 3) a sense of ineffectiveness and lack of accomplishment. (...)” (WORLD HEALTH ORGANIZATION..., S.d.).
6 Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário n. 349.703 (RS). Relator: Ministro Ayres Britto. Relator para o Acórdão: Ministro Gilmar Mendes. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgamento: 3/12/2008. Publicação: Diário da Justiça Eletrônico divulgado em 4/6/2009 e publicado em 5/6/2009. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário n. 466.343 (SP). Relator: Ministro Cezar Peluso. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgamento: 3/12/2008. Publicação: Diário da Justiça Eletrônico divulgado em 4/6/2009 e publicado em 5/6/2009. Repercussão geral no mérito. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus n. 87.585 (TO). Relator: Ministro Marco Aurélio. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgamento: 3/12/2008. Publicação: Diário de Justiça Eletrônico divulgado em 25/6/2009 e publicado em 26/6/2009. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus n. 92.566 (SP). Relator: Ministro Marco Aurélio. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgamento: 3/12/2008. Publicação: Diário de Justiça Eletrônico divulgado em 4/6/2009 e publicado em 5/6/2009.
7 “Description: (...) Burn-out refers specifically to phenomena in the occupational context and should not be applied to describe experiences in other areas of life.” (WORLD HEALTH ORGANIZATION..., S.d.).
8 “Exclusions: Adjustment disorder (6B43), Disorders specifically associated with stress (6B40-6B4Z), Anxiety or fear-related disorders (6B00-6B0Z), Mood disorders (6A60-6A8Z)”. (WORLD HEALTH ORGANIZATION..., S.d.).