Migalhas de Peso

Da internação psiquiátrica involuntária e a lei dos direitos da pessoa com transtorno mental

Como o controle e participação do MP no que toca à internação psiquiátrica proporciona a proteção e a garantia dos direitos da pessoa com transtorno mental.

30/5/2022

A questão da internação era utilizada como recurso para estabelecimento da ordem social, antes mesmo da psiquiatria ser considerada uma especialidade médica. Na França, o instituto do internamento era utilizado como meio coercitivo, isto é, instrumento de ordem social utilizado pela autoridade real para afastar da sociedade os loucos, doentes, pobres, prostitutas, dentre outros considerados como sujeitos que perturbavam a sociedade. Assim, estes eram recolhidos em hospitais gerais. Cabe, portanto salientar que tais instituições ou hospitais gerais não eram considerados como uma instituição médica. Ao final do século XVIII é que tais instituições e hospitais gerais começaram a ter outra conotação, ou seja, conotação médica.

Com o advento da Revolução Francesa em 1789-1799, o absolutismo fora substituído pela burguesia, que pregava valores como a liberdade, igualdade e fraternidade para a estruturação de uma nova sociedade. Assim, nasceram ideais como a cidadania e a democracia.

A transição do poder concentrado na soberania real para uma organização social burguesa que pregava o liberalismo, trouxe importantes entraves para a emergente sociedade burguesa no que concerne à questão da loucura. Desta feita, os hospitais não tinham a alcunha de instituições médicas. Pessoas tais como prostitutas, libertinos, loucos, dentre outros eram abrigados por estes hospitais, como instrumento de ordem social absolutista.

As transformações derivadas da Revolução Francesa trouxeram um novo conceito sobre os hospitais, que se transformaram em lugares de estudo da doença mental. Desta feita, técnicas como o isolamento para propiciar a observação do paciente, bem como o afastamento com objetivo de classificar as características encontradas, começaram a ser empregadas e a presença dos médicos nos hospitais foi de tamanha importância para que moléstias pudessem ser estudadas, separadas, catalogadas e agrupadas, formando classificações.

Destarte, os hospitais passaram a ter conotação médica e tornou-se um local para análise e busca da cura. Assim, buscamos explanar de forma simplificada o que significou a lei francesa de1839 no campo da psiquiatria e das internações.

No que tange a história da psiquiatria e das internações no Brasil, buscamos destacar que a vinda da família real em 1808 está estritamente relacionada com o surgimento e desenvolvimento da psiquiatria no Brasil. Juntamente com a vinda da família real, veio número considerável de pessoas e a população aumentou consideravelmente e houve a necessidade de se criar mecanismos ou estruturas para o funcionamento da capital. Com isso, a economia começou a funcionar a todo vapor e o comércio e a indústria cresceram. Desta feita, o Rio de Janeiro, à época capital do Brasil, acolheu número elevado de pessoas, haja vista o crescimento de alguns setores da economia.

Assim, com crescimento acelerado da população da capital Rio de Janeiro, alguns problemas sociais começaram a surgir, tais como a presença constante de “loucos” nas ruas da cidade. Tais pessoas, segundo Renata Corrêa Britto, “tinham como destino a prisão ou a Santa Casa de Misericórdia, que era um local de assistência, de caridade, não um local de cura”.1

Naquela época, o objetivo era preservar e manter a ordem pública, isto é, a ordem social. Tanto que os alienados mentais eram recolhidos e colocados em porões, sofriam agressões físicas, ficavam alojados em locais sem qualquer higiene e não contavam com assistência médica.

Essa situação perdurou por muito tempo em nosso país. Buscamos explicar detalhadamente, outrossim, o processo de reforma psiquiátrica ocorrida em nosso país. Desta feita, a reforma psiquiátrica brasileira tinha como objetivo alcançar campos da sociedade, isto é, através de uma revolução constante no campo assistencial, cultural e jurídico. Assim, é de se notar qual o verdadeiro objetivo da reforma, qual seja: incutir reflexões e transformações além do prisma técnico-assistencial, visando algo que viesse a repercutir na sociedade. Em suma, a ideia foi realizar transformações no modo como a sociedade encarava a loucura, as instituições manicomiais e seus aparatos.

Primeiramente, o objetivo do Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental no Brasil no cerne do Movimento da Reforma Psiquiátrica era expor, para a sociedade, a realidade psiquiátrica brasileira, demonstrando as condições asilares, o descaso, e o número exacerbado de internações, oriundas, principalmente, da privatização dos hospitais psiquiátricos, bem como da situação da rede pública, que estava condenada ao descaso, sendo certo que nos hospitais públicos o desrespeito aos direitos dos internos era latente. Destarte, era preciso alterar, isto é, modificar a privatização da saúde mental, diminuir o tempo condicionado às internações e estabelecer, compor uma rede de serviços extra-hospitalares.

No final da década de 1980, mais precisamente em 1989, “teve lugar uma das mais importantes condições de possibilidade histórica para a transformação do modelo psiquiátrico em nosso país”.2 Isto se deu devido ao episódio da interdição da Casa de Saúde Anchieta. Ainda segundo Renata Corrêa Britto (apud Amarante), a atuação do Poder Público somente foi possível “a partir da constatação das piores barbaridades, incluindo óbitos, neste hospital psiquiátrico privado”.3 Deste modo, devido ao episódio ocorrido na Casa de Saúde Anchieta na cidade de Santos, novos paradigmas surgiram, nascendo ideais como o fim do modelo manicomial para a instalação de serviços substitutivos, isto é, extra-hospitalares.

Assim, no imbróglio histórico pelo qual passava o país na seara da psiquiatria e sua reforma, isto é, da iminente probabilidade de se constituir um novo modelo na assistência mental é que o projeto de lei 3.6574 foi proposto pelo deputado Federal da época, Paulo Delgado.

O projeto de lei 3.637/89 tinha em seu bojo “a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais e regulamentava a internação psiquiátrica involuntária”.

Já a lei 10.216 de 6/4/01 tem como eixo central, “a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”. Como bem ressalta Renata Corrêa Britto, em sua tese de mestrado, “o título da lei apresenta uma proposta de proteção da pessoa portadora de transtorno mental, estabelece os seus direitos e pretende redirecionar o modelo de assistência em saúde mental”.5

Desta feita, é cristalina a mudança no título da lei Federal em comparação com o título do projeto de lei, demonstrando o peso e o poder dos interesses privados na manutenção da existência das clínicas manicomiais. Portanto, de forma diversa do projeto de lei, a lei 10.216/01 mantém a estrutura hospitalar. Eis aqui a primeira crítica à lei 10.216/01.

Exatamente pelo fato da manutenção das estruturas hospitalares, isto é, hospitais psiquiátricos, é que a lei 10.216/01 classificou as internações, e as mesmas passaram a ser regulamentadas, passo que o MP Estadual tornou-se responsável por receber a comunicação das internações involuntárias. Cabe ao MP Estadual zelar pela defesa e atuar na garantia dos direitos das pessoas com transtornos mentais.

Destarte, a internação involuntária somente será autorizada por médico devidamente registrado no CRM – Conselho Regional de Medicina, do Estado onde se localize o estabelecimento. A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao MP Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta.

A lei atual, no entanto, determina que haja a comunicação das internações psiquiátricas involuntárias, mas não há um dispositivo que possa definir as consequências do descumprimento do que determina a lei, isto é, a não comunicação por parte dos hospitais psiquiátricos quanto às internações psiquiátricas involuntárias ao MP não estabelece punições ou consequências aos mesmos, o que permite que haja internações involuntárias sem a devida comunicação ao MP Estadual, configurando, portanto, um atentado ao direito indisponível da liberdade presente em nossa CF/88, isto é, fere o princípio constitucional indisponível da liberdade caso não haja o rigor no controle das internações por parte do MP de cada Estado. Internar involuntariamente sem o consentimento da pessoa, mesmo que esta esteja insana, para que seja amparada constitucionalmente, deve ser comunicada ao MP Estadual, cujo papel é de guardião dos direitos fundamentais e indisponíveis dos cidadãos. Eis a segunda crítica à lei 10.216/01.

Para os médicos psiquiatras pertencentes aos hospitais psiquiátricos, à comunicação das internações psiquiátricas involuntárias ao MP Estadual não passa de mera “burocracia”. Ademais, os mesmos relataram que a inclusão do MP Estadual nesta questão técnico-assistencial não proporcionou e nem proporciona mudanças significativas na prática do serviço.

Na visão médica, necessária se faz a participação da sociedade em si, isto é, de se mobilizar a sociedade acerca do tema em debate. Portanto, fundamental é uma transformação da assistência em saúde mental, para que haja uma mobilização das pessoas que estão envolvidas no processo. Isso significa envolver técnicos e demais profissionais que trabalham nos serviços de saúde mental, usuários, familiares, poder público, comunidade, dentre outros, em suma, para os profissionais da área da saúde que realizam internações involuntárias, a comunicação das internações ao MP não passa de papéis, uma falsa garantia que simplesmente está apenas no papel e não existe.

Por outro lado, segundo a visão do MP Estadual, há uma necessidade de maior atenção à questão da internação involuntária, mas traz outros prismas também, como a própria questão da desospitalização, como a necessidade do Estado ter um aparato extra-hospitalar para receber esse paciente.

Desta feita, clara é a posição crítica do MP Estadual quanto a não extinção dos hospitais psiquiátricos por serviços extra-hospitalares e serviços substitutivos na seara da lei 10.216/01, que não extinguiu os hospitais psiquiátricos. Quanto a esta opinião, somos favoráveis.

É cristalina e evidente a posição do MP Estadual acerca da fiscalização das internações psiquiátricas involuntárias. No ponto de vista do MP, o ato de internar uma pessoa involuntariamente é um ato grave, e porque não gravíssimo, haja vista ser a internação executada sem o consentimento da pessoa, quando esta esteja insana, para que seja amparada constitucionalmente, deve ser comunicada ao MP Estadual, cujo papel é de guardião dos direitos fundamentais e indisponíveis dos cidadãos. Portanto, a comunicação ao MP Estadual no que concerne às internações psiquiátricas involuntárias pelas clínicas psiquiátricas é fundamental para que haja a proteção dos direitos de garantia das pessoas com transtornos mentais.

Concordamos com esta visão, haja vista não haver, na lei 10.216/01, punições às clínicas psiquiátricas que não efetuam a comunicação ao MP, portanto, ferindo o princípio primordial da liberdade, princípio este constitucionalmente garantido. Há, portanto, por parte das clínicas psiquiátricas, violação aos direitos e garantias de proteção aos direitos das pessoas com transtornos mentais.

Em suma, o MP Estadual fora indagado quanto à possibilidade da existência da lei e o seu cumprimento servirem como garantia para a efetivação dos direitos da pessoa com transtorno mental.

Os profissionais do MP Estadual e os profissionais de hospitais psiquiátricos tiveram opiniões convergentes acerca de que não basta haver uma lei, é necessário que haja uma conscientização da sociedade sobre as questões abarcadas pela legislação. Assim, membros do MP concordaram que, apesar da existência da lei, infelizmente a mesma não é capaz de modificar a realidade da vida. Apesar de exercer um papel extremamente importante, como, por exemplo, estabelecer a ordem e preceitos a serem seguidos, como a comunicação das internações involuntárias ao MP, seria utopia pensar que a existência da lei 10.216/01, em especial, fará com que tudo se modifique, que tudo se transforme.

Em suma, os direitos e garantias das pessoas com transtornos mentais serão plenamente garantidos quando, primeiramente, houver punições às clínicas psiquiátricas que não comunicarem de forma efetiva o MP Estadual acerca das internações involuntárias. Ademais, a conclusão é de que haverá efetivamente a proteção e garantias aos direitos das pessoas com transtornos mentais quando houver uma real reforma psiquiátrica no brasil, com a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos, manicômios, como previa o decreto de Paulo Delgado, que, infelizmente, fora modificado devido a interesses econômicos do setor privado.

_____

1 CORRÊA BRITTO, RENATA (2004) - A Internação Psiquiátrica Involuntária e a Lei 10.216/01. Reflexões acerca da garantia de proteção aos direitos da pessoa com transtorno mental, pág. 32.

2 CORRÊA BRITTO, RENATA (2004) - A Internação Psiquiátrica Involuntária e a Lei 10.216/01. Reflexões acerca da garantia de proteção aos direitos da pessoa com transtorno mental, pág.84.

3 Idem, pág. 84.

4 PROJETO DE LEI 3.657 de 1989. Dispõe sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica compulsória.

5 CORRÊA BRITTO, RENATA (2004) - A Internação Psiquiátrica Involuntária e a Lei 10.216/01. Reflexões acerca da garantia de proteção aos direitos da pessoa com transtorno mental, pág.94.

Thiago Rocha Silva
Consultor tributário. Especialista em Direito Tributário, Planejamento Tributário e Empresarial e LGPD -FALEG. Presidente da Comissão de Crimes Virtuais e Proteção de Dados OAB/SP São Caetano do Sul.

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