Migalhas de Peso

Cobrança de mensalidade em universidade pública: distopia ou redutor de desigualdades?

A Constituição da República nada mais é que o maior dos compromissos firmados por uma nação.

30/5/2022

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, sendo que, após a África do Sul, é o segundo com maior índice de desigualdade daqueles Estados que compõem o G-201 Tal fato, inclusive, já faz parte do nosso senso comum. A pergunta é: podemos fazer algo para diminuir a desigualdade?

Aparentemente para o deputado Federal General Peternelli (PSL-SP) a resposta é afirmativa. Com efeito, o congressista advindo da caserna acredita que é possível reduzir as desigualdades com a cobrança de mensalidade nas universidades públicas. Para tal intento, o general apresentou uma proposta de emenda à constituição, instituto carinhosamente apelidado e conhecido dos brasileiros como “PEC”.

Permita-me leitor, antes, uma pequena digressão. Tenho esta digressão justamente porque, ao analisar o número da PEC, nesse caso o 206, acho que é importante ressaltar que o Brasil é um dos países com o mais alto número de emendas constitucionais, atualmente são 122 (já contabilizando EC 122 de 17 de maio deste ano). Só a fim de comparação, os EUA possuem 27 emendas, devendo ser lembrando também que a constituição de lá é quase 200 anos mais velha que a nossa.

A Constituição da República nada mais é que o maior dos compromissos firmados por uma nação. Nesse sentido, essa explosão de emendas diz muito sobre um país, indicando, talvez, uma certa incapacidade de mantermos a nossa palavra tal como a colocamos anteriormente, sempre tentando “mudar o combinado” com o bonde andando.

Enfim, voltando da digressão, é bom analisarmos o teor do texto e da justificativa da emenda referida em sua íntegra. Nesse sentido, e antes de entrar propriamente na análise e na interpretação do quanto colocado pela referida PEC, vamos ao que apresentado à Casa do Povo:

Art. 1º O art. 206, inciso IV, da Constituição Federal passa a (sic) com a seguinte redação:

“Art. 206. ...............................................................

..............................................................................

IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais, ressalvada a hipótese do art. 207, § 3º;" (NR)

Art. 2º O art. 207 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte § 3º:

“§ 3º As instituições públicas de ensino superior devem cobrar mensalidades, cujos recursos devem ser geridos para o próprio custeio, garantindo-se a gratuidade àqueles que não tiverem recursos suficientes, mediante comissão de avaliação da própria instituição e respeitados os valores mínimo e máximo definidos pelo órgão ministerial do Poder Executivo.”

Art. 3º Esta Emenda à Constituição entra em vigor na data de sua publicação

JUSTIFICAÇÃO

Em 2017, o Banco Mundial divulgou um estudo demonstrando que a cobrança de mensalidade nas universidades públicas brasileiras seria uma forma de diminuir as desigualdades sociais em nosso País. De fato, a maioria dos estudantes dessas universidades acaba sendo oriunda de escolas particulares e poderiam pagar a mensalidade. O gasto público nessas universidades é desigual e favorece os mais ricos. Não seria correto que toda a sociedade financie o estudo de jovens de classes mais altas.

A cobrança de taxa para estudantes que possam pagar redunda em benefício para a própria universidade pública e em nada desprestigia a educação superior, uma vez que os docentes (sic) que não puderem pagar continuarão usufruindo da gratuidade como – aliás – já deveria ter sido desde o princípio e já estaríamos colhendo melhores benefícios dessas instituições.

A gratuidade generalizada, que não considera a renda, gera distorções gravíssimas, fazendo com que os estudantes ricos – que obviamente tiveram uma formação mais sólida na educação básica – ocupem as vagas disponíveis no vestibular em detrimento da população mais carente, justamente a que mais precisa da formação superior, para mudar sua história de vida.

Em 2018, a OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – divulgou estudo apontando que, de 29 países analisados, 20 cobravam mensalidades.

É claro que temos nossas particularidades nacionais, ainda mais dada a extensão continental do Brasil e suas desigualdades regionais, mas por isso mesmo a previsão constitucional, se aprovarmos nossa emenda, das comissões de avaliação, que poderão criar os cadastros de pessoas que terão direito à gratuidade, cabendo ao Ministério da Educação o estabelecimento de faixas de valores, com mínimo e máximo. Nada impede também que o MEC estabeleça faixas regionalizadas.

Idealmente o valor máximo das mensalidades poderia ser a média dos valores cobrados pelas universidades particulares da região e o valor mínimo seria 50% dessa média. Mas isso será objeto de ulteriores estudos, quando a presente mutação constitucional já estiver vigente, trazendo novos ares para o financiamento de nossas universidades.

Enfim, todos os argumentos que apontam para a precariedade do ensino superior na verdade se somam à necessidade de cobrança daqueles que podem pagar seus estudos superiores. A medida é, de fato, necessária em nosso País.

Em face do exposto, pela convicção que temos de estar viabilizando a melhoria das nossas universidades, é que peço o apoio dos Nobres Pares para aprovação da presente Proposta de Emenda à Constituição.” (documento pode ser conferido.2

Primeiramente, tratemos do texto que terá a Constituição acaso seja de fato aprovada a PEC.

Como podemos ver do quanto escrito acima, a cobrança das mensalidades não será facultativa, mas sim impositiva, uma vez que o vocábulo utilizado é “devem” e não “podem” cobrar. Só isso já seria uma forma de ferir a autonomia universitária (art. 207, caput, da CR) bem como a gratuidade universal do ensino público (art. 206, IV, da CR).

Mas como assim ferir? Pois se é uma emenda seria caso de mera alteração, certo? Errado. Nos casos de direitos fundamentais, como é possível se vislumbrar na situação em tela, é possível o controle de normas constitucionais alteradoras em face de normas constitucionais já expressas.

A segunda consequência é a vinculação dos recursos ao custeio interno da faculdade, nesse passo vê-se que não seria propriamente um imposto, uma vez que estes não possuem a vinculação imediata da receita advinda diretamente da arrecadação, assemelhando-se muito mais tal figura a ser criada a uma taxa por efetiva prestação de um serviço público, in casu, o de educação. Aqui também teríamos uma questão técnica complicada, pois nem o próprio propositor da emenda parece saber o que propõe, na medida em que chama tal de “imposto” nas entrevistas sobre o tema.

Uma terceira consequência da referida PEC é a avaliação a ser formada por comissão da própria universidade, estando, no entanto, a universidade atrelada aos valores mínimos e máximos estipulados pelo poder Executivo. Bom, nesse ponto vê-se uma possível inconstitucionalidade pelo fato de tolher, novamente, a autonomia universitária. Logo, o que se teria, nesse caso, é a universidade como refém deste ato emanado fora dos muros da instituição.

Passando agora ao que se refere à justificativa em si, além de erros grotescos, como a confusão de discentes e docentes, o que podemos ver é que esta é frágil e que de sua narrativa não decorrem as conclusões alcançadas. Ou seja, não é que propriamente os dados apresentados sejam incorretos, mas a vinculação da solução proposta à redução das desigualdades não é verdadeira.

Inclusive, acreditamos que a medida tem potencial para aumentar as desigualdades, na medida em que, novamente, aqueles que possuírem mais recursos poderão com conforto estudar em tais instituições, sendo que a comissão avaliadora de insuficiência financeira seria mais uma “peneira” para retirar os pobres, uma vez que estes não contariam com assistência para conseguir a aprovação junto às instâncias internas administrativas da instituição de ensino universitário.

No mais, bom tentar distinguir o que seria considerado como hipossuficiente. Com efeito, pois diversas vezes isso é uma medida para retirar a chamada classe média do acesso à educação de qualidade, garantindo-a apenas para os extremos da pirâmide. Explico. Imagine que o patamar de pobreza fosse o mesmo adotado por diversas defensorias do país, qual seja, três salários mínimos. Isso faria com que todos aqueles que ganham mais que esse valor fossem obrigados a arcar com a mensalidade, só que todos sabemos que o peso de uma mensalidade para alguém que ganha pouco mais de três salários mínimos é muito maior do que para os de fato ricos, quais sejam, aqueles que recebem mais de 20 salários mínimos. No fim das contas é uma forma de tirar a concorrência da verdadeira elite brasileira, essa que, com certeza, ganha muito mais que apenas três salários mínimos.

Por esse exato motivo creio que tenha sido de suma importância a contextualização do quanto exposto em tal PEC, e em sua justificativa. Veja-se, não quero aqui me colocar contra a redução das desigualdades. Pelo contrário, acredito que, assim como a Constituição da República em seu art. 3º, III, o ideal é mesmo a redução de todas as desigualdades sociais e regionais, bem como a erradicação da pobreza. Todavia, entendo que a medida proposta serve como mais uma forma de acentuar as desigualdades e não de reduzi-las. Nesse sentido, acredito que, após a leitura do texto, a pergunta do título nem seja mais tão difícil de se responder.

_____

1 Conteúdo disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59557761#:~:text="Entre%20os%20mais%20de%20100,do%20Laboratório%20das%20Desigualdades%20Mundiais.

Acessado em 26/05/2022.

2 Conteúdo disponível em: . Acessado em: 26/05/2022

Paulo Schwartzman
Mestrando em Estudos Brasileiros - IEB-USP. Escritor e estudioso, foca-se na interpretação interdisciplinar dos fatos. Assessor de juiz no TJ/SP. Esp. em Direito Civil. Insta:@opauloschwartzman

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