Permeados pela era digital, a cada momento acende uma novidade aderida em nosso cotidiano, e que, por sua vez, enseja a necessidade de resposta legal à repercussão gerada. Relações jurídicas modernas, interações digitais, novas formas de busca e oferecimento de produtos e serviços: todas com frequência demandam resposta de nosso sistema jurídico para justamente garantir segurança, zelo, ética e garantias a todos os adeptos da novidade tecnológica, sem coibir a liberdade na qual se fundamenta essa mesma novidade.
É, de fato, em torno da chamada liberdade que os debates costumam girar para permitir novos modelos de negócio. Em relação às criptomoedas, o fundamento constitucional que tem garantido sua adoção no Brasil, de igual forma, diz respeito ao princípio da livre iniciativa, cujo cerne está na garantia de exploração de atividade econômica ao cidadão. Não adentrando seara impedida pela legislação, a pessoa física e jurídica pode, em tese, prosseguir com a inovação de negócio.
A discussão sobre as criptomoedas parte da premissa de que nasceram descentralizadas, isto é, sem estarem atreladas a órgão regulatório que norteie seu uso. São vistas como espécie de moeda digital e sua troca acontece em ambiente virtual com sistema de criptografia, por isso o nome “criptomoeda”. Nessa linha, não costumam ser concebidas como moedas reais, nem mesmo ativos financeiros: ainda que possam comportar expressão monetária, trazem forma peculiar de transacionar produtos e serviços que foge às definições comuns.
Por essa falta de amparo legal, porém crescente popularização de seu uso, a regulamentação da criptomoeda tem feito parte da pauta prioritária do Congresso Nacional neste ano. Em texto aprovado recentemente pelo Senado Federal1, houve adoção da expressão “ativo virtual”, definido, de forma semelhante à utilizada pela Receita Federal para criptoativo2, como “a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento”.
Fica claro, pelo texto almejado, que os dois principais propósitos do ativo virtual seria a realização de pagamentos e investimentos.
A proposição aprovada pelo Senado pretende criar diretrizes e regulamentar a prestação de serviços de ativos virtuais, além de criminalizar algumas condutas fraudulentas mediante uso de tais ativos. Dentre as diretrizes a serem observadas pelas prestadoras, cita-se boas práticas de governança, proteção e defesa do consumidor e de prevenção à lavagem de dinheiro e ocultação de bens, além da exigência de registro para atuação nacional.
Em resumo, a ideia é delimitar como será possível a utilização de criptomoedas no país. Ainda que a utilização das criptomoedas possa ser amparada pela livre iniciativa, referido princípio possui exceções. Como diz a ministra Rosa Weber, “a liberdade de iniciativa (arts. 1º, IV, e 170, caput, da Lei Maior) não impede a imposição, pelo Estado, de condições e limites para a exploração de atividades privadas tendo em vista sua compatibilização com os demais princípios, garantias, direitos fundamentais e proteções constitucionais, individuais ou sociais”.
Outros países também estão em processo de regulamentação ou já regulamentaram a criptomoeda. Cada país promove sua própria discussão envolvendo a natureza jurídica do ativo, concepção como moeda corrente ou não, definição, necessidade de registro da prestadora de serviços do ativo, práticas para coibir fraudes e lavagem de dinheiro, incidência de tributos, proteção ao consumidor, e até mesmo em relação à decisão pela proibição da prestação do ativo naquele território.
O Brasil enfrenta, no atual momento, as mesmas questões sinalizadas acima. Embora não estejamos aqui avaliando o mérito da proposição, é certo que, ao sopesar o princípio da livre iniciativa, outros interesses individuais, coletivos e econômicos devem ser levados em consideração pelo legislador.
A tarefa de fabricar lei concisa, eficaz e harmônica em relação à temática pode ser um desafio. Órgãos de diferentes níveis dos Estados Unidos, lar dos principais investidores, empresas de mineração e plataformas de negociação de criptomoedas, conflitam entre eles quanto à compreensão dos ativos, o que ensejou inclusive expedição de Ordem Executiva pelo Presidente a fim de que as agências do Governo coordenassem seus esforços regulatórios.3
De certo, alterações em entendimentos podem impactar na aplicação de regras do direito civil e do setor financeiro, por exemplo, e por isso os pareceres da Câmara e do Senado modificaram com constância a possível lei e o dispositivo que traz o alcance de ativo virtual.
A discussão quanto à regulamentação das criptomoedas voltou agora à apreciação da Câmara dos Deputados, que pode em breve fechar texto definitivo a ser enviado à sanção presidencial. Acompanhemos os desdobramentos.
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1 O Projeto de Lei nº 4401/2021 é a proposição legislativa mais avançada no Congresso Nacional, neste momento, que trata sobre a regulação das criptomoedas. Hoje, seu texto tramita com complementos de outras matérias legislativas e dos próprios relatores da proposição.
2 Art. 5º, I/ Instrução Normativa nº 1.888/2019: “criptoativo: a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal;
3 HAMMOND, Susanna; EHRET, Todd. Cryptocurrency regulations by country. Thomson Reuters Institute. 2022. p. 5.