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Pago quando puder: a desesperança do credor da Fazenda Pública em razão da EC 114/21

A PEC dos precatórios, suas inconstitucionalidades e a frustração da expectativa de recebimento de milhares de credores.

25/5/2022

Nos termos do art. 100 da CF/88, o precatório consiste no procedimento adotado para a realização de pagamentos devidos pela Fazenda Pública decorrentes de sentenças judiciais. O valor inscrito em precatório é uma despesa pública que dispõe de tratamento regulado na própria CF/88, que, até dezembro de 2021, não deixava dúvida no sentido de que o orçamento da entidade de direito público deveria suportar a verba necessária ao pagamento do precatório apresentado até 1º de julho até o final do exercício seguinte:

“Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.    

(...)

§ 5º É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente”. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009).

Ao menos no âmbito da União Federal, pode-se dizer que o pagamento vinha funcionando dessa maneira até que sobreveio a Emenda Constitucional 114, publicada em 17/12/21, que alterou completamente a sistemática de pagamento. Em resumo, a EC 114/21 estipula um limite máximo (teto de gastos) para alocação na proposta orçamentária das despesas relativas aos pagamentos de precatórios até o final do ano de 2026 e antecipa para o dia 2 de abril do ano corrente a data limite para a inscrição dos precatórios que terão seus valores inseridos no orçamento do ano seguinte. 

O teto de gastos é baseado no valor da despesa paga no exercício de 2016, corrigido na forma do art. 107, § 1º, II, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, na redação que lhe foi dada pela EC 113/21, que estabeleceu o IPCA - Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, como sendo o índice de correção monetária.  O objetivo da medida é viabilizar o financiamento do programa “Auxílio Brasil”.

Noticia-se que o impacto, para o ano de 2022, tenha sido de R$ 44 bilhões. Ou seja, a previsão de R$ 89 bilhões existente para a proposta orçamentária do exercício financeiro de 2022 foi reduzida para aproximadamente R$ 45 bilhões, de modo que se estima que R$ 44 bilhões deixem de ser revertidos ao pagamento de precatórios1, frustrando a expectativa de recebimento de milhares de credores, que, após longos e árduos anos de batalha contra a Fazenda Pública, não possuem, atualmente, qualquer previsão de recebimento de seus créditos.

A confirmar a ausência de qualquer previsibilidade de recebimento, os precatórios vêm sendo atualizados pelos tribunais Federais com a seguinte observação: “Tendo em vista a promulgação da Emenda Constitucional 114, não há, no momento, previsão de data de pagamento deste precatório. Tão logo exista previsão, será lançado evento informativo no andamento do precatório”.

A irrazoabilidade e desproporcionalidade da situação é evidenciada considerando-se a situação contrária: imagine-se o contribuinte recebendo uma ordem judicial final determinando o pagamento de um crédito fiscal e dizendo que pagará quando tiver disponibilidade financeira, porque, no momento, está priorizando outros pagamentos.

Várias ações de inconstitucionalidade foram ajuizadas perante o STF, alegando que tal Emenda violou um conjunto expressivo de direitos e garantias fundamentais (v., e.g., ADIn 7.064 e ADIn 7.047).

Há quem defenda que, se o STF observar o precedente relativo ao julgamento das ADIs contra a EC 62/09 (ADIs 4.357 e 4.425), a EC 114/19 será também considerada inconstitucional “por atentar contra o Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF); ferir a independência dos Poderes (art. 2º da CF); afrontar o princípio da isonomia (art. 5º, caput da CF); violentar o princípio da universalização da jurisdição (art. 5º XXXV, da CF);  contrariar os princípios do direito adquirido, do ato jurídico perfeito  e da coisa julgada (art. 5º, XXXVI da CF) e, finalmente, violar o direito de propriedade (art. 5º, LIV da CF)”2

Todavia, até o momento, segue-se sem qualquer esperança de que créditos reconhecidos como devidos em processos judiciais serão pagos.

Por outro lado, a Fazenda Pública continua com suas várias prerrogativas para cobrar os contribuintes, dentre as quais, o protesto de certidões de dívida pública3, inscrição nos cadastros restritivos de crédito4, não emissão de certidão negativa de débitos e a necessidade de garantia do juízo para que o contribuinte possa se defender em sede de execução fiscal5. Algumas prerrogativas se justificam quando a Fazenda Pública está no polo ativo, mas não se pode colocar o seu credor em uma situação tão desfavorável e desproporcional como feito pela EC 114/21.

_________________
 
1 https://sindireceita.org.br/noticias/juridico/151160-pec-dos-precatorios-o-que-mudou

2 Kiyoshi Harada no artigo Comentários à EC 113/21 e a EC 114/21 – Precatórios, publicado em 24 de janeiro de 2022 no site Migalhas: https://www.migalhas.com.br/depeso/358502/comentarios-a-ec-113-21-e-a-ec-114-21--precatorios

3 Vide Tema 777 do STJ: “A Fazenda pública possui interesse e pode efetivar o protesto da CDA, documento de dívida, na forma do art. 1º, parágrafo único, da Lei 9.492/1997, com a redação dada pela Lei 12.767/2012”.

4 Por exemplo, o CADIN – Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal, um banco de dados no qual estão registrados os nomes de pessoas físicas e jurídicas em débito para com órgãos e entidades federais. O CADIN é regulado pela Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002 e Portaria STN nº 685, de 14 de setembro de 2006.

5 Artigo 9º, Lei 6.830/1980.

Alexandra Costa Pires
Sócia fundadora do escritório Costa, Lemos & Faria Advogados, Mestre em Direito Tributário e Responsabilidade Social Empresarial.

Victor Hugo P. Lemos
Sócio fundador do escritório Costa, Lemos & Faria Advogados, Mestre em Direito Constitucional (PPGDC/UFF) e Professor de Direito Processual Civil na FND/UFRJ.

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