1 A decisão do STF e o avanço da regulamentação do tema
Para fins de direito, jogos em sentido estrito se definem como situações artificiais de conflito com fins de diversão, dividindo-se em jogos de azar e jogos de habilidade. Enquanto nos jogos de habilidade a perícia do jogador interfere significativamente no resultado, nos jogos de azar, em uma inversão lógica possível para este contexto, a sorte deve ser o elemento preponderante. Todavia, por vezes, será preciso conviver com zonas de penumbra no momento do emprego formal de algumas classificações baseadas em tipos ideais.
A habilidade que se resolve no último momento pela sorte (alguma condição climática inesperada); ou mesmo a sorte, que antecedida de uma decisão anterior que envolveu alguma peculiar qualidade individual (a memória), no final das contas não foi o único elemento que conspirou para a vantagem final. Nessas ocasiões, obviamente, discrimina-se os eventos pelo matiz que se mostra predominante.
A Lei de Contravenções Penais brasileira (lei 3.688/41) define os jogos de azar no seu art. 50:
§3º Consideram-se, jogos de azar:
a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte;
b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas;
c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva.
Acordando com a doutrina internacional, o direito brasileiro reconhece três requisitos essenciais para o reconhecimento de uma prática como jogo de azar:
I) Prêmio, que deve necessariamente poder ser convertido em dinheiro.
II) Sorte lúdica (alea ludica), sendo o elemento preponderante, não necessariamente exclusivo, para o resultado.
III) Aposta de um bem.
As loterias, por sua vez, são um tipo específico e muito popular de jogo de azar, em que se aposta em um conjunto de símbolos sorteados aleatoriamente. Tais símbolos podem ser números, animais, times de futebol etc. Em geral, considera-se como requisito necessário para as loterias que o resultado dependa inteiramente da sorte – tese que pode ser contestada por alguns no caso da loteria esportiva, por envolver um conjunto de saberes, em alguma medida, bastante relevantes para aumentar a possibilidade de sucesso no que para alguns representa manifestação de vontade, e de escolhas, aleatórias. Ainda assim, mesmo a loteria esportiva, é também um jogo de azar, em que de maneira predominante é a sorte que conspira para o resultado, o sucesso ou o fracasso, sendo o último, sempre o desdobramento mais provável.
Cada espécie de jogo de azar tem, no Brasil, sua própria história mais ou menos conturbada. No caso das loterias, a primeira tentativa de sistematizar a legislação esparsa ocorreu em 1932 com o decreto 21.143. Com o objetivo de combater as organizações criminosas que se formam a partir da exploração do jogo ilegal, o decreto determinou, em seu art. 20, que as loterias fossem classificadas como serviço público concedido pela União e pelos Estados. O cenário alterou-se quando o decreto 204/1967, ainda vigente, determinou que a exploração das loterias fosse exclusiva da União, mantendo no controle dos estados apenas as loterias por eles já criadas até então.1
A respeito do tema, um conjunto de decisões recentes do STF (ADPF 492; ADPF 493; ADIn 4986), caminhando em outra direção, modificou consideravelmente a moldura normativa da exploração de loterias e promete reconfigurar tal prática no país – com implicações práticas que já podem ser observadas na realidade.
Julgou-se que, embora as loterias sejam serviços públicos cuja competência legislativa é privativa da União (art. 22, XX, CF), isto não exclui os estados da competência material de execução da atividade, nem mesmo se desconsidera que lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas a respeito do mesmo tema (art. 22, parágrafo único, CF/88). Em uma lógica, a decisão proíbe qualquer iniciativa legislativa de excluir os estados da exploração das loterias, a menos que se modifique sua competência material na Constituição.
Ao mesmo tempo, nada se disse a respeito dos Municípios. Todavia, por conhecidas razões, os municípios também teriam interesse em discutir essa agenda estratégica para acelerar o desenvolvimento local, por exemplo, fortalecendo o financiamento de políticas ligadas ao conceito de mínimo existencial com os resultados positivos das operações dessa modalidade de serviço público, mesmo que exista muito preconceito em relação a exploração direta ou indireta desta atividade.
Nessa linha, alguns Municípios também se movimentam na direção de regulamentar, dentro de um campo restrito, a prática do jogo no seu âmbito de competência legislativa, administrativa e territorial, como o PLL 217/21, em trâmite na Câmara de Vereadores de Porto Alegre/RS.
Como era de se esperar, a decisão do STF deu início à volta das loterias estaduais, além de um movimento de modelação jurídica da descentralização de tais serviços, incluindo-se a delegação à iniciativa privada.
E, a partir deste movimento, uma série de iniciativas legais ganharam força, com objetivo de modificar o atual cenário de proibição dessa atividade.
É o caso dos projetos de lei 442/91, 186/14, 595/15, 2648/19 e 4495/20, bem como das ações em trâmite no STF que buscam o reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 50 do Lei das Contravenções Penais.
2 PL 442/91: Atividade econômica privada sujeita a regulação
O PL 442/91 está em tramitação no Congresso Nacional e, após aprovado na Câmara dos Deputados em fevereiro de 2022, foi enviado ao Senado Federal. O projeto visa a liberação e regulamentação de uma ampla gama de jogos de azar, tomando sua forma definitiva quando, em 2020, vinte e três projetos de lei lhe foram apensados. Os jogos expressamente contemplados no diploma legal são: jogos de cassino, jogos de bingo, jogos de videobingo, jogos online, jogo do bicho e apostas turfísticas (art. 8º). O texto traz uma definição atualizada dos jogos de azar e seus componentes, alinhada com a doutrina internacional:
Art. 2º Para fins do disposto nesta Lei, considera-se:
I – jogo: atividade ou procedimento baseado em sistema de regras previamente definidas, no qual um ou mais jogadores, mediante o pagamento ou promessa de pagamento de quantia estipulada e o uso de estratégias ou alternativas, buscam obter vantagem ou prêmio específicos;
[...] III – jogo de chance: classe ou tipo de jogo no qual o resultado é determinado exclusiva ou predominantemente pelo desfecho de evento futuro aleatório definido no sistema de regras;2
O PL estabelece a exploração de jogos e apostas como atividade econômica privada (art. 3º), sujeita à regulação por parte do poder público. Tal regulação terá como finalidade, entre outras, o bom funcionamento do mercado, o fomento ao turismo, a geração de emprego e renda e o desenvolvimento regional, a garantia de idoneidade do jogo, o combate à sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e financiamento do crime organizado e promoção do jogo responsável (art. 4º).
Quanto à competência, fica a União responsável privativamente, por meio do Ministério da Economia, por “formular a política de organização do mercado de jogos e apostas e normatizar, supervisionar e fiscalizar a exploração da atividade no país, bem como aplicar as penalidades cabíveis” (art. 6º). Os estados ficam responsáveis por licenciar e explorar a loteria estadual e o jogo do bicho, quando já licenciados pela União.
Para cada modalidade de jogo de azar permitida, há uma lista de exigências específicas para a licença, variando das mais elaboradas (direcionadas aos cassinos) às mais simples (exploração de bingos) conforme a complexidade da atividade.
2 PL 186/14: Exploração mediante autorização
O PL 186/14 está em tramitação no Senado Federal e autoriza e regulamenta a prática dos jogos de azar no Brasil, por reconhecer “seu valor histórico-cultural e a sua finalidade social para o país.” (art. 2º). Prevê regras gerais para a regulamentação dos jogos de azar. A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal rejeitou o PL alegando que a falta de órgãos de fiscalização tornaria temerária a liberação dos jogos de azar. Não obstante, ele aguarda inclusão em pauta para discussão no plenário do Senado, por pedido dos próprios senadores da república.
O projeto prevê que a exploração dos jogos de azar se dê mediante autorização outorgada pelos Estados e pela União, observando as disposições da mesma lei e seus regulamentos (art. 5º), que são detalhados para cada espécie de jogo.
3 PL 595/15: Fomento à proteção ambiental e ao ecoturismo
O PL 595/15, por sua vez, traz um escopo normativo mais restrito. Seu objeto é a promoção da proteção ambiental aliada ao fomento do ecoturismo e da cultura em áreas de preservação. Neste caso, prevê-se a liberação dos jogos de aposta com os seguintes fins:
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção ambiental e a promoção do ecoturismo em Unidades de Conservação através da gestão compartilhada com hotéis-cassino autorizados à exploração de jogos de apostas no território nacional.
§ 1º A autorização para a exploração de jogos de apostas tem como diretriz o desenvolvimento sustentável e como objetivos:
I – a proteção ambiental e a conservação da biodiversidade in situ nas unidades de conservação; e
II – o incentivo ao ecoturismo em unidades de conservação.
A fim de garantir o desenvolvimento regional, bem como ativamente assegurar a proteção ambiental, o PL 595 impõe uma série de deveres à pessoa jurídicas autorizadas a explorar os jogos de azar em hotéis-cassino, como, por exemplo, colaborar com iniciativas oficiais que objetivem o fomento ao turismo na área ou região onde estiverem localizados e promover, em áreas para este fim, eventos culturais, privilegiando artistas locais e nacionais.
4 PL 2648/19: Fomento ao turismo e ao entretenimento
No mesmo sentido, o PL 2648 trata da exploração de cassinos em resorts instalados e que venham a ser instalados no território nacional, atribuindo à União competência para regulamentar tais atividades, bem como credenciar os interessados na sua exploração.
A motivação da lei também tem como base o fomento ao turismo, prevendo, como critério para a autorização dos cassinos em resorts, a existência de patrimônio turístico a ser explorado e potencial para desenvolvimento econômico (art. 9º). Pela mesma razão, interessados devem apresentar, entre outros critérios, opções de entretenimento, contratação de recursos humanos locais, número de empregos a serem criados, realização de investimentos, programas de formação e treinamento de profissionais em hotelaria, turismo, serviços e afins (art. 10).
5 PL 4495/20:
Por fim, há o PL 4495 de 2020, que também dispõe sobre a implementação de resorts integrados, com o fim de ampliar o turismo no país. Tal projeto se encontra no plenário do Senado Federal para deliberações, sem ter passado, ainda, por trâmite legislativo.
O projeto arrola uma série de princípios a governar a atividade proposta (art. 2º), entre outros, o “da livre iniciativa, da descentralização, da regionalização e do desenvolvimento econômico-social justo e sustentável” (inciso I), o “do fortalecimento da competitividade internacional da indústria brasileira de turismo, utilizando as características regionais e estimulando outras áreas da economia, direta ou indiretamente a ela relacionadas” (inciso II), o “da expansão da infraestrutura da indústria de turismo com a criação de novas e atrativas instalações, focadas no aumento do fluxo de turistas internacionais, na permanência e no gasto médio destes no Brasil, bem como da expansão do turismo interno e regional” (inciso III) e o “da diversificação da atividade econômica regional, utilizando a indústria do turismo como vetor de crescimento econômico e geração de oportunidades, bem como promover a inclusão social pelo aumento da oferta de trabalho e melhor distribuição de renda” (inciso IV).
A modalidade de exploração prevista no projeto é a de concessão para a iniciativa privada precedida de licitação em regime de concorrência, pautada pela técnica e preço, combinando melhor oferta (peso 3) e melhor técnica (peso 7) na avaliação dos candidatos (art. 5º, caput e §2º).
O projeto estabelece competência exclusiva da União para conceder, regulamentar e fiscalizar as atividades dos cassinos, ficando os Estados e o Distrito Federal com o poder de indicar representantes para as Comissões Deliberativas dos Resorts Integrados (art. 4º, caput e §1º). A nosso ver, essa normativa fere a ratio decidendi da recente decisão do STF que reuniu as ADPF 4292 e 493 e a ADIn 4986, tratando da competência material dos Estados para regulamentar a exploração das loterias.
Conclusão
Como se nota, não faltam iniciativas legislativas voltadas à legalização dos jogos de azar no Brasil, cada uma delas com um enfoque próprio, com suas vantagens e desvantagens.
Essas mobilizações podem, em parte, ser interpretadas como fruto de uma cultura liberal que procura ser disruptiva com algumas amarras do moralismo que permeiam a regulamentação dessa atividade até os dias de hoje.
Isso porque, como em uma série de outras questões que demandam a proteção da cidadania, as soluções institucionais mais razoáveis não desembocam necessariamente na repressão penal, se a entendemos como ultima ratio no âmbito dos mecanismos de organização social.
Ademais, o STF reconheceu que viola a autonomia dos estados-membros restringir a esfera de competência material residual, sem amparo na Constituição, configurando abuso da competência de legislar quando a União se vale do art. 22, inciso XX, da Constituição Federal para excluir todos os demais entes federados da arrecadação que deles provém, ou para restringi-la de forma irrazoável e anti-isonômica.
Este julgamento constitui um marco para a regulação das loterias no país, pois assenta pela primeira vez o pleno direito dos Estados para instauração de suas loterias estaduais, com ampla margem de modelagem, regulação e administração naquilo que não fira os preceitos da legislação federal. A partir desta decisão, caberá aos estados da Federação investir na formatação de desenhos jurídicos inovadores para a exploração dos serviços lotéricos.
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1 FEIJÓ, Ricardo de Paula. Regulação dos jogos de azar no Brasil: perspectivas para o futuro. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora. p. 6.
2 O PL opta pela expressão “jogo de chance”, porém esta equivale a “jogo de azar”