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A pílula de veneno “anti-Lula” ou uma complexa trava mercadológica a todos os acionistas?

O presente artigo busca acrescentar ao debate o alerta sobre o possível desvirtuamento da cláusula estatutária que trata da poison pill.

12/5/2022

(Imagem: Artes Migalhas)

A temática sobre poison pill se tornou bastante frequente nas últimas semanas. Depois de ocupar os debates sobre a aquisição do Twitter pelo Elon Musk, desta vez a cláusula está sendo discutida na desestatização da Eletrobras, em que o BNDES - Banco Nacional do Desenvolvimento é o responsável pela execução e acompanhamento do processo. Por óbvio, a discussão sobre a desestatização de uma companhia como a Eletrobras não comporta somente preocupações técnicas, mas especialmente políticas.

Neste contexto, qualquer pronunciamento de um dos presidenciáveis gera reação dos atores econômicos e políticos, que naturalmente buscam mecanismos para perpetuar suas conquistas institucionais. Assim, Ciro Gomes já havia anunciado que “Se privatizarem a Eletrobrás, também tomaremos de volta. Pode conceder estradas, mas o que faz o gênio brasileiro nos aeroportos? Privatiza os que dão lucro e deixa o resto onerando o tesouro”1. Contudo, a manifestação sobre reestatização não foi feita apenas por Ciro Gomes, mas também por Lula, principal concorrente do atual presidente Jair Messias Bolsonaro, e atual líder nas pesquisas para eleição em 2022. Lula se pronunciou apontando que buscará renacionalizar a Petrobras e barrar a privatização da Eletrobras: “precisamos retomar a Petrobras, precisamos não deixar privatizar a Eletrobras, os Correios, o Banco do Brasil”2. Ciro Gomes tem chances reduzidas de se eleger, mas o posicionamento de Lula causa, por si, um cenário de incerteza aos futuros controladores da companhia.

As falas de Ciro Gomes e Lula, no sentido de travar a privatização da Eletrobras ou reestatizá-la, encontram embasamento constitucional, conferido pelo art. 173 da Constituição Federal, segundo o qual Estado poderá explorar a atividade econômica seja sob o argumento da segurança nacional, seja do interesse coletivo. A vagueza do termo “interesse social” desloca o debate para o parlamento, que participará ativamente da decisão. Para tanto, o executivo precisará conseguir maioria no Congresso, que também será parcialmente renovado nas próximas eleições.

Nada obstante o embate que deverá ser travado no Congresso, tais falas não foram bem recebidos por aqueles atualmente envolvidos no processo de privatização, que procuraram criar barreiras jurídicas contra a reestatização. Para tanto, ou usando-as como pretexto, lançaram mão de mecanismos típicos do direito contratual, supostamente como forma de tornar a reestatização mais onerosa, quiçá economicamente inviável. Ocorre que as tais cláusulas, que deverão ser inseridas no estatuto da companhia, não terão efeito apenas contra a reestatização, mas também poderão garantir que o controle da companhia não troque de mãos. Assim, caso mantidas, tais cláusulas impedirão não somente que a União retome a ações a maioria do capital da empresa, mas poderá servir para que o controle não mude de mãos.

Como resposta às ameaças de reestatização, foi apresentada alteração no estatuto social da Eletrobras em que criará uma poison pill para com dois gatilhos: (i) em caso de concentração superior a 50% do capital votante por mais de 120 dias o adquirente deverá estar disposto a comprar, via deverá realizar oferta pública de ações, a totalidade das ações remanescentes com 200% de ágio, isto é, por 300% do preço, tendo como referência o preço mais alto nos 504 pregões
(2 anos); (ii) Outro gatilho, a concentração de 30% das ações por mais 120 dias, dispara a obrigação de compra do resto do capital com ágio de 100%, consideradas as referências do primeiro gatilho. 

Em razão dos comentários do principal nome da esquerda para as eleições de 2022, a cláusula acabou sendo nomeada como “cláusula anti-Lula”, isso é, uma pílula de veneno – poison pill   para o caso de o governo querer reestatizar a companhia.3 O TCU, chamado a analisar os termos do processo de privatização da Eletrobras, enfrentou a discussão da poison pill para o tribunal, de modo que o relator do processo, inicialmente, se posicionou pela retirada da cláusula e depois mudou de ideia e manteve a poison pill.

Como todo contrato, essa cláusula não pode ser lida isoladamente, mas analisada como parte do sistema normativo no qual está inserida. Assim, além da poison pill, o cenário para a realização da desestatização é o seguinte: (i) a Eletrobras é uma companhia aberta incluída no segmento nível 1 da B3 - Brasil, Bolsa, Balcão; (ii) a União terá a sua participação acionário diluída até, pelo menos, 45% do capital votante; e (iii) a União terá também o poder de veto – golden share – para evitar a celebração de acordo de acionistas ou a participação de acionista ou grupos de acionistas que detenham volume superior a 10% do capital votante4.

Quais os aspectos relevantes desse cenário para a concorrência?  

A adequada interpretação da cláusula revela uma barreira competitiva e representa quase nenhuma ameaça à posição da União. Pelo cenário retratado a União poderá ter o controle na tomada de decisões da Eletrobras, tendo em vista que se projeta que ela tenha entre 30% a 45% de capital votante e poderá limitar qualquer porcentagem de outros acionistas que excedam o limiar de 10% do capital votante. Assim, há um certo conforto da União nas tomadas de decisão da companhia, apesar de não deter sozinha mais da metade do capital votante. Em que pese a alteração de controle, há três barreiras que se formam: a primeira é a própria possibilidade de a União conseguir limitar o poder de voto de cada acionista a 10% do capital votante; a segunda será a pílula de veneno – poison pill – que, caso um investidor compre mais de 30% das ações, ele deverá realizar uma OPA para aquisição das demais ações ordinárias por valor pelo menos em dobro do maior valor das ações nos últimos 2 anos de bolsa. Caso o investidor adquira 50% do capital votante, a OPA para que compre as ações deverá ser no patamar do triplo do valor mais em alto dos últimos 2 anos, da forma delimitada no estatuto social da Eletrobras; a terceira barreira, por sua vez, se dá nos casos do investidor se disponha a pagar o ágio dessas ações. Caso isso aconteça, ele terá uma nova preocupação, o free float de 25% exigido no segmento nível 1 da B3. Nos termos do regulamento do nível 1, é responsabilidade do controlador garantir esse free float. Assim, ou o novo controlador terá que aumentar o capital social, ou terá que vender parte do seu capital votante, para adequar o free float. De todo o modo, o novo controlador será diluído.

Percebe-se que o cenário estruturado para alteração de controle após a desestatização é extremamente dificultado pela forma como está sendo feita, de modo que a União parece ser a que tem as melhores ferramentas para realizar essa aquisição de controle. Logicamente, um novo investidor, que adquirir o controle, tem a opção de retirar a Eletrobras do nível 1, para não ter que atender esse requisito do free float. Ocorre que, a não ser que esse investidor consiga comprar 100% das ações com direito a voto, essa saída depende de autorização em assembleia geral, o que consequentemente depende da manifestação da União.

Porque desenquadrar a companhia do nível 1 nos parece ser algo que apenas a União seja capaz? Por todo o cenário que vem se desenvolvendo e considerando os poderes que a União garantirá na desestatização da Eletrobras, não é verossímil que ela terá interesse em perder sua posição acionária ou que ela possa vir a concordar com isso, especialmente porque os gestores eventualmente responsáveis por isso deverão justificar a operação com base no interesse público. Desse modo, sair do nível 1, em razão de uma aquisição de controle da Eletrobras por outro investidor, poderia gerar prejuízos para a União e perda de poder acionário que, de certa forma, vai de encontro ao interesse público. Desse modo, o único acionista que teria capital e poder político, para dar prosseguimento à saída do nível 1, seria a própria União.

Nessa estruturação da pílula de veneno, necessário esclarecer que, sob o pretexto de blindar a companhia contra a reestatização, o estatuto social poderá criar um verdadeiro desestímulo nas negociações pelos acionistas e investidores, inclusive, no que tange a mudança de controle. Vejamos: a cláusula inserida no estatuto social, se não sofrer mudanças, gerará, pelo princípio majoritário, a vinculação de todos os acionistas, de modo que estarão vinculados ao ágio de 200%, em qualquer ameaça de uma alteração de controle. É discutível se a companhia está criando um mecanismo para impedir a reestatização. A cláusula dificulta a reestatização? Lógico que sim, até porque para isso acontecer deverá ser pago um ágio de 200%. Contudo, a reestatização não será impedida por um fato de mercado e sim político, de modo que a poison pill cria, de fato, um mecanismo, que não pode ser desativado, que dificulta qualquer alteração de controle. Pior, acrescentar um ágio de 200% pode gerar inércia dos acionistas em manter posição somente para aguardar uma alteração de controle ou reestatização, que passará a ser desejada por eles, ante a excelente oportunidade que a cláusula representa.

Assim, no artigo sobre poison pill em que tratamos sobre o caso Elon Musk e Twitter5, defendemos que cláusula segue a denominada lógica de paracelso – “a diferença entre o remédio e o veneno está na dose”. No presente caso, por todo o cenário, a poison pill não nos parece estar trabalhando como um remédio, mas sim um veneno que limitará excessivamente a livre circulação de ações e a mudança de controle.

O contexto político não pode macular a técnica que essa cláusula demanda nem pode ser pretexto para criação de mecanismos insuperáveis de troca de controle. Incluir a poison pill no estatuto social, sem mecanismo de controle pelos gestores, acarretará, na verdade, em cláusula que somente poderá ser alterada pela reforma do estatuto e que prejudica a ampla negociação no mercado de capitais, o que foge ao escopo inicial, em razão da sua amplitude. Assim, o envenenamento aparenta ser apenas para os outros investidores e acionistas, de modo que para a União esse tipo de cláusula se apresenta bastante cômoda, considerando que no caso em que esta decidir reestatizar a Eletrobras, o debate será antes político que mercadológico. A peculiaridade dessa cláusula, portanto, nos faz levantar a dúvida de qual será o posicionamento da CVM, que se constatar ônus demasiados para os demais acionistas, pode afastá-la e tornar o veneno inócuo.

É importante frisar que sob a ótica do direito brasileiro há diferença gritante entre a poison pill do caso Twitter e a poison pill da Eletrobras. Enquanto a primeira buscava frear um perigo eminente de tomada de controle hostil (não negociada) a partir da diluição de sua posição, tornando ineficiente a aquisição das ações para tomada do controle, a segunda não impede a tomada de controle ao torna-la insuperavelmente onerosa. Contudo, o efeito colateral e não desejado é que está se criando um verdadeiro desincentivo a livre negociação as ações da Eletrobras, pois a decisão – política – de reestatização levará os acionistas a ganho exorbitante, mas não impedirá a tomada do controle. E o pior, provavelmente, às custas do tesouro.

Percebe-se que a cláusula utilizada pelo conselho de administração do Twitter funciona, de fato, como mecanismo de defesa, para permitir a negociação da compra de controle desde que através da negociação com o C.A, bem como para proteger a pluralidade acionária e o direito de fiscalização dos acionistas. Já cláusula estatutária, no caso da Eletrobras cria, na verdade, mecanismo para evitar qualquer tomada de controle e não só aquela considerada “hostil”, de modo que gera ônus mercadológico e uma consequente inércia para todos os acionistas e investidores.

A redação da cláusula da Eletrobras apresenta uma premissa que toda alteração de controle é prejudicial, o que é evidentemente equivocada. As cláusulas que apresentam mecanismos de defesa, como a poison pill, buscam evitar tomadas não negociadas de controle, que podem ir de encontro aos interesses da companhia assim, a utilização da poison pill tem o exato efeito de frear o investidor hostil para que possam ser alinhadas as expectativas de ambas as partes, o que não está previsto na cláusula proposta para a Eletrobras.

Assim, o presente artigo busca acrescentar ao debate o alerta sobre o possível desvirtuamento da cláusula estatutária que trata da poison pill, sendo que, nos moldes como ela está sendo feita, o remédio pretendido estará se tornando um veneno, de modo que a CVM, conforme posicionamentos prévios, poderá considerar seus efeitos inócuos. A chamada cláusula “anti-Lula” pode impedir o trânsito normal das ações no mercado de capitais, principalmente, a própria alteração de controle.

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1 https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,se-privatizar-a-eletrobras-tomaremos-de-volta-diz-ciro-gomes,70002055500

https://einvestidor.estadao.com.br/ultimas/lula-nao-privatizara-eletrobras-correios-se-eleito

3 Art. 11 - O acionista ou grupo de acionistas que, direta ou indiretamente, vier a se tornar titular de ações ordinárias que, em conjunto, ultrapassem 30% (trinta por cento) do capital votante da Eletrobras e que não retorne a patamar inferior a tal percentual em até 120 (cento e vinte) dias deverá realizar uma oferta pública para a aquisição da totalidade das demais ações ordinárias, por valor, no mínimo, 100% (cem por cento) superior à maior cotação das respectivas ações nos últimos 504 (quinhentos e quatro) pregões, atualizada pela taxa do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC.

Parágrafo único. A obrigação de realizar oferta pública de aquisição, nos termos do art. 11, não se aplicará à participação efetiva, direta ou indireta, da União no capital votante da Companhia na data da entrada em vigor do dispositivo, mas será aplicável caso futuramente, após redução, a sua participação venha a aumentar e ultrapassar o percentual de 30% (trinta por cento) do capital votante da Companhia.

Art. 12 - O acionista ou grupo de acionistas que, direta ou indiretamente, vier a se tornar titular de ações ordinárias que, em conjunto, ultrapassem 50% (cinquenta por cento) do capital votante da Eletrobras e que não retorne a patamar inferior a tal percentual em até 120 (cento e vinte) dias deverá realizar uma oferta pública para a aquisição da totalidade das demais ações ordinárias, por valor, no mínimo, 200% (duzentos por cento) superior à maior cotação das respectivas ações nos últimos 504 (quinhentos e quatro) pregões, atualizada pela taxa do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC.

Parágrafo único. A obrigação de realizar oferta pública de aquisição, nos termos do art. 12, não se aplicará à participação efetiva, direta ou indireta, da União no capital votante da Companhia na data da entrada em vigor do dispositivo, mas será aplicável caso futuramente, após a Oferta, a sua participação venha a aumentar e ultrapassar o percentual de 50% (cinquenta por cento) do capital votante da Companhia.

https://eletrobras.com/pt/GestaoeGorvernancaCorporativa/Estatuto%20Social%20Eletrobras.pdf

4 Art. 11. Ficam aprovados os seguintes ajustes e condições para a desestatização, sem prejuízo daqueles já previstos na Lei nº 14.182, de 2021:

a) vedar que qualquer acionista ou grupo de acionistas exerça votos em volume superior a dez por cento da quantidade de ações em que se dividir o capital votante da ELETROBRAS;

b) vedar a realização de acordos de acionistas para o exercício de direito de voto, exceto para a formação de blocos com número de votos inferior ao limite da alínea "a" do inciso I do caput;

c) conversão de 1 (uma) ação preferencial de classe B de emissão da ELETROBRAS e de titularidade da União para a criação de 1 (uma) ação preferencial de classe especial, a qual será subscrita pela União para sua propriedade exclusiva, nos termos do disposto no art. 3º, inciso III, alínea "c" da Lei nº 14.182, de 2021, que dará o poder de veto nas deliberações sociais que visem a modificar o Estatuto Social da ELETROBRAS para alterar a limitação ao exercício do direito de voto e à celebração de acordos de acionistas descrita nas alíneas "a" e "b" do inciso I do caput;

5 PALHARES, Paulo Henrique Franco; ESTEVES, Lucas Lacerda. Twitter, Poison pill, Elon Musk: e se fosse no Brasil?. https://www.migalhas.com.br/depeso/364700/twitter-poison-pill-elon-musk-e-se-fosse-no-brasil

Lucas Lacerda Esteves
Graduado em Direito pela UniCEUB. Advogado no Ouriques Cruz Advocacia Empresarial. Coautor do livro Regulador Inovador: Banco Central e a agenda de incentivo à inovação.

Paulo Henrique Franco Palhares
Sócio do Carvalho Dantas, Lelis e Palhares Advogados. Membro do Instituto Brasiliense de Direito Empresarial - IADE. Mestre em Direito Econômico. Professor de Direito Empresarial da Graduação e da Pós-graduação do Centro Universitário de Brasília - UniCeub, IBMEC Brasília e IDP - Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa.

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