Como magistrado, sempre me incomodou, em meu ainda curto tempo de experiência na área criminal do Tribunal de Justiça que integro, a questão atinente à possibilidade de aplicação, na ação de revisão criminal, do aforismo in dubio pro reo, como atributo do princípio da inocência.
O tema raramente é objeto de discussões, haja vista o fato de reinar, de modo quase absoluto, a posição no sentido de que, na revisão criminal, a dúvida deve atuar contra o condenado; que ela não pode ser transformada em uma segunda apelação, o que impossibilita o reexame de provas e argumentos já refutados; que, por “sentença contrária à evidência dos autos”, deve-se entender aquela que “não se apoia em nenhuma prova produzida no curso do processo”; que a “mera fragilidade ou precariedade do conjunto probatório não autoriza a revisão” etc.
As referidas posições se assentam na hipervalorização que se dá à coisa julgada em matéria penal, decorrência do fato de o condenado não mais ostentar a condição de inocente presumido, perdida com o trânsito em julgado da sentença.
Entretanto, tenho que a revisão criminal está a merecer novos olhares, tanto na situação em que se discute a injustiça da condenação, por ser contrária à evidência dos autos [CPP, art. 621, I], quanto na em que, após a sentença, se descobrem novas provas de inocência do condenado [CPP, art. 621, III].
Sem pretensão acadêmica alguma, reproduzo, neste despretensioso ensaio, apenas as reflexões que expendi no voto-vista de duas ações revisionais de que participei como vogal na Turma de Câmaras Criminais Reunidas do Tribunal de Justiça de Mato Grosso.
A começar, carece ser desmistificada a ideia de que a revisão criminal não se presta à reanálise de provas já consideradas [e descartadas] na sentença ou no acórdão, pois do contrário, segundo se argumenta, seria transformá-la em mais uma instância recursal, ou mais precisamente em uma segunda apelação.
O mencionado posicionamento deve ser adotado cum grano salis, uma vez que, escorando a revisão criminal na premissa de a sentença condenatória ser contrária à evidência dos autos [CPP, art. 621, I], haverá sempre a necessidade de reexaminar e até revalorizar as provas, ressignificando-as na verificação da suficiência delas1.
A revisão criminal proposta sob esse fundamento impõe, inevitavelmente, a análise das provas existentes no processo, todavia com a finalidade específica de examinar o grau de suficiência delas para superar a presunção de inocência.
Sua diferença com a apelação está em que seu objetivo é constatar o grau de apoio que a condenação tem nas provas dos autos, e a suficiência delas para se julgar provada a imputação.
É por esse prisma que a revisão criminal deve ser entendida, para que o Tribunal não a baralhe nem a confunda com a apelação.
Diante da alegação de que a condenação contraria a evidência dos autos, cumpre-lhe então verificar se havia provas corroborativas da imputação ou se a convicção externada foi mais um ato de fé; se elas foram tomadas sob as garantias do devido processo legal; se se consideraram provas que deveriam ter sido tomadas como ilegais ou ilícitas; quando baseada em indícios, se o fato-base permitia – segundo as regras da lógica, critérios científicos e máximas de experiência – conduzir à hipótese inculpatória; se houve inferências errôneas ou inexatas, como também o grau delas para se chegar à conclusão; se, entre os indícios, havia coesão lógica, direta e imediata; se se atribuiu correta interpretação às provas; se a valoração foi atomista, apenas; se se consideraram as da defesa e se estas podiam racionalmente ser desprezadas ou, inversamente, se tinham força suficiente para afastar ou pôr em dúvida a imputação do réu; se erroneamente se emprestou credibilidade a determinadas provas ou se utilizou de métodos irracionais na valoração delas; se as existentes tinham mesmo o potencial explicativo demonstrado na sentença; se esta guardou coerência interna entre as premissas e as conclusões; se não valorou ou valorou erroneamente outras provas conducentes a outro resultado favorável ao réu; se, apesar de provado determinado fato, não era ele verdadeiro etc., tudo para sopesar se, dentro de um juízo racional, alcançou-se o nível de suficiência probatória que a lei considera como necessária para estabelecer a culpabilidade do acusado.
Assim, o tribunal de revisão, antes de passar a reavaliar as provas, deve fazer um juízo crítico da sentença, com todas as nuanças da valoração levada a efeito, para constatar se foi ofendida a presunção de inocência, a regra de julgamento in dubio pro reo e se, ao fim e ao cabo, cumpriu-se o standard de prova capaz de enervá-la.
Feitas essas considerações e havendo espaço para passar do iudicium rescindens para o iudicium rescissorium, o Tribunal – e não há como fugir do exame – reavaliará todo o mosaico probatório, procedendo a um novo julgamento.
Não ignoro o entendimento jurisprudencial no sentido de que “O objetivo da revisão criminal fundada no inciso I do art. 621 do Código de Processo Penal (contrária à prova dos autos) não é permitir ‘uma terceira instância’ de julgamento, uma segunda apelação. Se a sentença condenatória se apresenta verossímil e minimamente consentânea com as evidências produzidas durante a instrução criminal, não cabe ao Tribunal reverter a condenação mediante o afastamento de interpretação de prova aceitável e ponderada, ainda que não a melhor”2.
Embora provinda da mais alta Corte do país, a decisão acima apenas reproduz o mantra da doutrina e da jurisprudência, que, a pugilato, defende a coisa julgada como se esta pudesse purificar os erros judiciários ou, quando não, criar sua própria verdade.
A res judicata, especialmente no âmbito criminal, não pode ter a dureza diamantina que nossos Tribunais vêm emprestando a ela. Na correção de injustiças, permite-se inclusive o uso do habeas corpus, como se vê amiúde em decisões do Supremo Tribunal Federal.
O maior pecado que um juiz pode cometer não é tanto incidir no erro, mas não repará-lo, podendo. A vergonha está em não corrigi-lo. E para corrigir um erro – dizem as línguas dos experientes –, pode-se até violar a lei; mas não se pode, para não violar a lei, manter o erro.
Na prática, porém, quase sempre é muito custoso aos juízes o reconhecimento de erros judiciários, que acabam sendo ocultados atrás do biombo da coisa julgada e tratados como fatalidades necessárias, como efeito colateral da circunstância de o poder de julgar ter sido confiado a homens, e não a seres divinos.
Tem razão João Conde Correia quando anota que “Os juízes mantiveram, ao longo dos tempos, uma notável resistência psicológica à revisão. Como se a injustiça fosse uma nódoa que não se deve mostrar, ou sequer assumir. Confessar o erro é difícil. O ataque a uma sentença transitada em julgado é, ainda hoje, sentido, porventura inconscientemente, como um ataque ao seu poder. O caso julgado continua a ser hipervalorizado. Há muito pouca generosidade no momento de apreciar os pedidos de revisão e, em caso de dúvida, decide-se a favor do caso julgado (...). Em suma, a jurisprudência ainda não compreendeu que a revisão tanto serve o condenado como os seus próprios interesses. Para além da segurança e da justiça, também o seu prestígio é prejudicado por uma sentença injusta. O mal está no erro e na sua manutenção”3.
Acesse a íntegra.
____
1- Assim decidiu o STF no HC 123247, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 2-8-2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-201 DIVULG 20-9-2016 PUBLIC 21-9-2016. Esta também, a posição de Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, in Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal Comentados, 5. ed., Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1747.
2- STF, HC 114164, Relator(a): TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 3-11-2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-232 DIVULG 18-11-2015 PUBLIC 19-11-2015.
3- O Mito do Caso Julgado e a Revisão Propter Nova, Coimbra Editora, 2010, p. 107.