Migalhas de Peso

A necessária transformação da cultura do litígio em cultura de paz

Não é somente o benefício da celeridade, da redução quantidade de processos e da economia financeira. É também o exercício e o incentivo a uma cultura de paz.

12/5/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Nos últimos anos, temos acompanhado iniciativas significativas no Judiciário brasileiro voltadas à priorização da resolução de conflitos por meio de acordos entre as partes – movimento conhecido como a “cultura da paz”. A (ainda sutil) mudança de foco nos mostra que, com uma mediação adequada, é possível que cada envolvido em um processo ceda um pouco para que impasses que congestionam escaninhos, travam investimentos e prejudicam o atendimento adequado à população sejam resolvidos de forma mais célere.

Os meios consensuais de conflito - conciliação, mediação e arbitragem estão cada vez mais conhecidos. Em 2020, o país registrou 2,42 milhões de sentenças homologatórias de acordos por meio da conciliação, ou 9,9% do total. Considerando apenas a fase de conhecimento, a taxa sobe para 15,8%. A Justiça Estadual encerrou 2020 com 1.382 centros judiciários de solução de conflitos e cidadania instalados. Os números estão no relatório justiça em números 2021, publicado pelo CNJ.

Entretanto, precisamos avançar. Uma justiça que chega tardia acaba se tornando uma injustiça. E, para isso, é necessário introduzir no cotidiano da comunidade jurídica o conceito da justiça multiportas, em que a disputa judicial, é sim, um meio adequado, mas não o único. A constatação foi consenso durante o debate virtual resolução de conflitos: O caminho para que a justiça seja para todos, realizado no início deste mês pelo portal Migalhas, em parceria com a Anape - associação nacional dos procuradores dos Estados e do DF.

Uma Justiça mais célere e com menos entraves é um ganho inestimável. Para se ter uma ideia, o Judiciário finalizou 2020 com 75,4 milhões de processos pendentes, com taxa de congestionamento total de 73%. E os meios extrajudiciais de solução de conflitos têm sido um caminho importante para mudar esse cenário, trazendo resultados não apenas em recursos financeiros, mas evidenciando o genuíno interesse em resolver disputas que, muitas vezes, duram décadas.

A Justiça tradicional é um meio fundamental e o proposto aqui não é que ela seja deixada de lado, mas a bandeira da paz, da consensualidade, também precisa ser hasteada no ambiente jurídico. Vivemos na era da velocidade, em que o tempo tem valor inestimável e a tecnologia tem permitido cada vez mais possibilidades. No ano passado, por exemplo, motivado pelo uso intenso das plataformas digitais devido à pandemia da covid-19, o CNJ regulamentou a resolução digital de conflitos por meio de conciliação e mediação.

Precisamos caminhar de acordo com os novos tempos. No ano passado, o Brasil assinou a convenção das nações unidas sobre acordos comerciais internacionais resultantes de mediação, conhecida como a convenção de Singapura. A adesão demonstra internacionalmente a importância da mediação para o país. A assinatura e o cumprimento desses pactos internacionais trazem mais segurança jurídica para a economia brasileira. A condução de disputas comerciais internacionais fora do Judiciário é critério relevante para atração de capital estrangeiro em investimentos.

E toda essa mudança de cultura passa, necessariamente, pela advocacia. Seja na advocacia privada, seja na pública, o advogado é o ator principal. O advogado é o primeiro juiz da causa e é lá, na formação dele, que precisamos investir em uma cultura menos litigante, em uma advocacia menos “ganhar e perder”, com o foco em resolver. Atrás de cada causa, há pessoas que, muitas vezes, passam anos à espera de uma solução. E, por isso, a comunidade jurídica precisa ampliar o olhar, investir em capacitação e incentivar posturas mais conciliatórias.

No âmbito da advocacia pública, os meios extrajudiciais de solução de conflitos têm sido um caminho muito utilizado para solucionar causas e garantir que acordos sejam devidamente cumpridos – desonerando a máquina pública e garantindo que serviços públicos funcionem adequadamente. O número de arbitragens com envolvimento da administração pública, por exemplo, saltou de 25 em 2018 para 75 em 2019 — ano em que o poder público participou de 17% de todos os processos de arbitragem iniciados no país.

A advocacia-geral da União tem investido na cultura de consensualidade. No ano passado, a AGU conseguiu, por meio da mediação, resolver conflitos centenários como a disputa pelo aeroporto campo de marte, na zona norte de São Paulo, ou questões fundiárias no Distrito Federal que se arrastavam desde a criação da capital. Só no âmbito da arbitragem, a AGU atuou como facilitadora em processos que giram em torno de R$ 205 bilhões.

As procuradorias gerais estaduais também têm exercido um papel conciliatório bastante significativo. Um exemplo é o centro judiciário de solução de conflitos e de didadania das execuções fiscais no Distrito Federal que, além da mediação em acordos, atua com educação financeira. A iniciativa consiste em uma unidade judicial para que contribuintes com débitos fiscais negociem suas dívidas. Aproximar o Estado do cidadão para resolução pacífica e consensual de conflitos ficais é uma grande missão.

Em três anos de existência, o trabalho rendeu bons frutos: foram mais de 21 mil audiências resultando em negociações de mais de R$ 16,8 milhões. É interessante observar que o projeto nasceu com um caráter de conscientização fiscal, ou seja, extrapolando o processo mecânico o levando a um nível mais humanizado.

Outro exemplo marcante de acordo bem-sucedido é o caso de desapropriação urbana humanizada realizada pela Procuradoria-Geral do Estado do Ceará durante as obras do VLT - veículo leve sobre trilho de Fortaleza – iniciativa vencedora do prêmio Innovare. Em 2014, houve a negociação com os moradores que precisavam desocupar as moradias em área declarada de utilidade pública, cerca de 13km, atingindo mais de 2 mil imóveis e, aproximadamente, 2.700 famílias. A PGE-CE conseguiu acordo com 97% das pessoas.

A conciliação, a mediação, o ato de nos sentarmos, conversarmos e entendermos faz parte do que nos faz melhores como seres humanos – a nossa capacidade de negociação, de diálogo, de respeito e de empatia. Não é somente o benefício da celeridade, da redução quantidade de processos e da economia financeira. É também o exercício e o incentivo a uma cultura de paz – ativo tão necessário nos tempos atuais.

Vicente Martins Prata Braga
Presidente da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do DF (Anape), advogado especialista em Direito Eleitoral, procurador do Estado do Ceará e doutor em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP)

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