Um dos requisitos para ocupar uma cadeira na Corte constitucional é o “notável saber jurídico” (art. 101 da CF/88). Essa informação provavelmente é sabida por todos os graduandos de direito. No entanto, ironicamente, nenhum jurista, dos novatos aos mais experientes, é capaz de plenamente conceituá-la. O motivo disso é simples: não há definição. O texto constitucional é vago, totalmente aberto a interpretações – e isso provoca problemas. Neste breve estudo, pretendo apresentar informações que podem ajudar a estruturar um conceito razoavelmente racional e previsível ao termo.
Há, assim, três pontos que merecem atenção: 1. O caráter “notável”; 2. O caráter “jurídico”; e 3. O contexto de aplicação. Começarei pelo “notável”.
Notável (originado do latim notabilis, i.e., considerável) diz respeito àquilo que chama atenção, se destacando, por algum motivo, dentre os demais itens de uma mesma categoria. Esse termo é o único que pressupõe alguma hierarquia entre aqueles com um “saber jurídico ordinário” dos merecedores do cargo de juiz constitucional. Contudo, a ideia de “ser notável” pressupõe um sujeito ativo que realize essa avaliação. Esse sujeito, no caso em análise, são as autoridades indicantes – o presidente da República e o Senado Federal. Em suma, são eles a perceber a qualidade do saber do candidato dentre os demais estudiosos do direito. Entretanto, como a lei não determina nenhum padrão para essa verificação1, tal percepção se torna totalmente discricionária, dependendo da subjetividade dos agentes políticos2.
O saber “notável”, portanto, não necessariamente precisa o ser para todos: apenas 1 membro do Executivo e 41 do Legislativo, para ser mais exato, bastam. Isso não significa, porém, que qualquer leigo poderá ter seu saber jurídico considerado “notável” sem oposição da comunidade jurídica e até dos próprios parlamentares. Um indicado recente que teve a envergadura de seu saber questionada foi o min. Dias Toffoli. Seu currículo foi criticado pelo fato de o candidato ter sido reprovado duas vezes em concurso público para juiz e não contar com nenhum título acadêmico senão o de bacharel.
A presença de títulos, vale anotar, não é reivindicação incomum dos parlamentares. Desde 1988, algumas PEC pretenderam reformar a norma de seleção para exigir mais da formação do indicado. A PEC 12/2012 do SF pretendeu definir o notável saber jurídico como qualidade do indivíduo com mais de dez anos de atividade jurídica e com dois dentre os seguintes: I. título não inferior ao de mestre em direito; II. teses e trabalhos publicados; e/ou III. atuação jurídica destacada. Na mesma linha, a PEC 46/2015 do SF visou estabelecer que, na verificação do notável saber jurídico, “serão consideradas a formação acadêmica, a produção científica e a vida social do escolhido”. Por fim, a PEC 225/19 da CD pretende que os indicados que não sejam magistrados em 2ª instância ou superior comprovem ao menos uma pós-graduação stricto sensu. Decerto que se qualquer dessas reformas tivesse sido aprovada o conceito continuaria vago. Ainda assim, o espaço interpretativo seria reduzido em favor do reconhecimento do histórico acadêmico.
Em oposição, o ministro Dias Toffoli, depois de nomeado, se defendeu das críticas por falta de títulos da seguinte forma:
No meu caso, por exemplo, tinha a crítica de que eu não tinha mestrado ou doutorado. E eu fiz um levantamento, que eu levei na minha sabatina. Naquela época, os nove integrantes da Suprema Corte Americana não tinham mestrado nem doutorado. Os que têm agora foram recentemente indicados pelo Obama, mas, na época da minha indicação, nenhum dos nove tinha sequer o correspondente ao mestrado brasileiro nos Estados Unidos. Mesmo na Corte Constitucional Inglesa (...) Eu estive visitando em 2013 o presidente daquela Corte, ele viu o meu perfil e disse: “O seu perfil é mais próximo dos juízes daqui do que muitos dos seus colegas, porque aqui nós não aceitamos um perfil muito acadêmico. É melhor alguém que conviveu no Parlamento, que já tenha tido uma convivência”. E lá é um país parlamentarista, então, o Parlamento envolve as funções também, muitas vezes, nos gabinetes do Executivo. “Então nós temos aqui essa tradição de ter pessoas mais da vida prática, da advocacia e do Parlamento” (FONTAINHA et al, 2017, p. 111 e 112).
O argumento do ministro, no entanto, não é aplicável à Corte constitucional brasileira. Observe-se a tabela seguinte, na qual reuni a titulação acadêmica de todos os indicados ao STF desde 1988:
TITULAÇÃO ACADÊMICA DOS INDICADOS AO STF (1988 – 2021) |
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MINISTRO |
TÍTULO |
MINISTRO |
TÍTULO |
Paulo Brossard |
Bacharel |
Eros Grau |
Doutor |
Sepúlveda Pertence |
Bacharel |
Ricardo Lewandowski |
Doutor |
Celso de Mello |
Bacharel |
Cármen Lúcia |
Mestre |
Carlos Velloso |
Doutor (HC) |
Menezes Direito |
Doutor |
Marco Aurélio |
Mestre |
Dias Toffoli |
Bacharel |
Ilmar Galvão |
Bacharel |
Luiz Fux |
Doutor |
Francisco Rezek |
Doutor |
Rosa Weber |
Bacharel |
Maurício Corrêa |
Bacharel |
Teori Zavascki |
Doutor |
Nelson Jobim |
Bacharel |
Roberto Barroso |
Doutor |
Ellen Gracie |
Bacharel |
Edson Fachin |
Doutor |
Gilmar Mendes |
Doutor |
Alexandre de Moraes |
Doutor |
Cezar Peluso |
Doutor |
Nunes Marques |
Doutor |
Ayres Britto |
Doutor |
André Mendonça |
Doutor |
Joaquim Barbosa |
Doutor |
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Tabela: relação de títulos acadêmicos stricto sensu dos Ministros indicados ao STF desde a promulgação da CF/1988. Fonte: CHILELLI (2022, p. 66). “HC” indica que o título foi obtido Honoris Causa.
A preponderância de mestres e doutores (66%) indica certo apreço dos agentes oficiais pelos títulos acadêmicos. A tendência, parece, é que tal valorização cresça, já que, levando-se em conta as oito indicações seguintes a do ministra Dias Toffoli, apenas uma foi de alguém sem doutorado (a da ministra Rosa Weber).
Mas a boa formação acadêmica, por si, não é prova cabal nem exclusiva de notabilidade. Outras qualidades dignas de nota são o tempo e cargos da carreira e a aprovação em concursos públicos. Essas, por sinal, são ideias bem mais citadas do que os títulos acadêmicos nas propostas que visam ampliar os requisitos à indicação. Exigindo algum tempo de carreira, constam as PEC 430/96; 546/02; 569/02; 128/07; 408/09. 434/09; 50/13; 238/13; 367/13; 3/14; 259/16; 309/17; 413/18; e 225/19. Propondo um concurso público para o STF, por sua vez, as PEC 569/02; 238/13; 243/13; 52/15; e 413/18. Anote-se também que a aglutinação de mais de um requisito não é impossível. As ideias de ampliação dos requisitos ao Supremo, afinal, não só são criativas como numerosas3.
Portanto, vários são os vetores que remetem à notabilidade do saber. Consequentemente, há certa dificuldade em se definir qual aspecto do aspirante ao STF tem maior ou menor peso. Mas, seja qual argumento se levante, não vejo viável a afirmação de que um jurista teria um “saber notável” sem contar com ao menos algum dos quesitos citados. Isso seria dizer que basta ao candidato a formação em direito – algo que é verdadeiro para mais de um milhão de advogados e um número ainda maior de bacharéis.
Mas qual é, afinal, o tipo de saber a ser notado? Essa discussão, hoje, é pouco necessária, já que o termo “jurídico” na lei qualifica o conhecimento esperado como aquele relacionado ao direito. Contudo, isso nem sempre foi assim. A primeira Constituição Republicana do Brasil (CF/91) exigia apenas “notável saber” (art. 56), o que deu causa a um imbróglio relacionado a algumas indicações do então presidente Floriano Peixoto. Foram apontados entre 1893 e 1894 um médico (Cândido Barata Ribeiro), dois militares (Galvão de Queiroz e Ewerton Quadros) e o diretor-geral dos correios (Demosthenes da Silveira Lobo) para o cargo de magistrado constitucional. Esses quatro, aliás, junto a um jurista (Antônio Sève Navarro), foram os únicos cinco nomes até hoje recusados pelo Legislativo (v. para detalhes, OLIVEIRA, 2009). O primeiro deles até chegou a exercer o cargo por algum tempo4, mas foi obrigado a deixá-lo após a rejeição pelo Senado.
Sabendo-se que o conhecimento deve ser notável e relacionado ao direito, ainda paira no ar uma terceira dúvida: saber exatamente o quê? Ora, o saber jurídico é muito amplo, possuindo tantas searas que se torna impossível se especializar em todas. Nesse sentido, qual seria o saber mais adequado à atuação no Supremo? A princípio, seria natural intuir que a área mais importante para um ministro da Corte constitucional é, justamente, o direito constitucional. Essa resposta, todavia, não é suficientemente exata.
Até onde, exatamente, se estende o direito constitucional? Em nações nas quais a lei constitucional é concisa, essa pergunta talvez pudesse ser facilmente respondida. No Brasil, porém, a Constituição Cidadã é prolixa a ponto de cuidar tanto de conflitos federativos, regras de direito tributário, tópicos de direito penal e até mesmo questões eleitorais. Desse modo, não basta dizer que o magistrado é “especializado em direito constitucional”, pois o direito constitucional abrange quase tudo.
Mas há outro caminho: definir o saber mais relevante a partir do tipo de processo mais comum na Corte. Isso permite prever em quais tópicos o futuro ministro trabalhará mais e, assim, buscar os candidatos com maior familiaridade na seara. A aplicação desse raciocínio traria tanto ganhos de produtividade como evitaria incongruências técnicas com a jurisprudência e doutrina. O ministro Luiz Fux, nesse sentido, sugeriu que o direito público seria a “área básica do Supremo” (FONTAINHA et al, 2016, p. 69). Uma verificação rápida dos dados do portal da transparência do STF mostra que o mesmo tem razão: 310.318 dos processos recebidos pelo STF no período de 2010 a 2021 são classificados como de “direito administrativo e outras áreas de direito público”, o que corresponde a 31,3% do total e é quase o triplo da segunda categoria (processual penal, com 10,9%).
Parece, portanto, que o “saber supremo” esperado de um ministro do Supremo é o de um especialista em direito público. Isso não quer dizer que uma Corte formada por 11 administrativistas seja a ideal. A interpenetração de conhecimentos enriquece os debates e muitas vezes é necessária para solucionar os casos complexos que o tribunal mormente enfrenta. A despeito disso, os dados apresentados apontam para uma expectativa mínima de conhecimento do magistrado.
Notável. Jurídico. Supremo. O “saber” de que trata a CF/88 em seu art. 101 certamente é vago, mas não é totalmente intraduzível. Penso que as breves considerações apresentadas ajudam a embasar argumentos que procurem mapear os requisitos para um assento no STF. Resta saber se a abertura a interesses subjetivos dos agentes oficiais, permitida por termos tão abertos, não terá mais força nas futuras indicações do que argumentos racionais e dados objetivos.
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CHILELLI, Victor Magarian. A Seleção dos Ministros do Supremo Tribunal Federal: um estudo descritivo sobre suas normas, bastidores, críticas e proposições. Rio de Janeiro, 2022, 203p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Orientação: Prof. Dr. Adrian Sgarbi.
FONTAINHA, Fernando de Castro Fontainha et al (orgs.). História oral do Supremo (1988 – 2013), vol. 12: Luiz Fux. Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, 2016b.
História oral do Supremo (1988 – 2013), vol. 21: Dias Toffoli. Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, 2017.
OLIVEIRA, Maria Ângela Jardim de Santa Cruz. Sobre a Recusa de Nomeações para o Supremo Tribunal Federal pelo Senado. In Revista de Direito Público, n. 25, p. 68 – 78. Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa. Brasília, 2009.
SILVA, Marina Ribeiro da. A primeira recusa de nomeação para o Supremo Tribunal Federal pelo Senado – o Dr. Barata Ribeiro. In Revista do Instituto do Direito Brasileiro da Universidade de Lisboa, vol. 1, n. 6, p. 3667 – 3678. Lisboa, 2012.
1 Embora o Regimento Interno do Senado Federal determine o envio do currículo do candidato pela Presidência da República e “argumentação escrita, apresentada de forma sucinta, em que o indicado demonstre ter experiência profissional, formação técnica adequada e afinidade intelectual e moral para o exercício da atividade” (art. 383, I, “c”), tais documentos não são vinculantes e, portanto, não passam de uma formalidade.
2 Essa dependência permite que o espaço interpretativo da norma seja utilizado para fins diversos do que a seleção ao STF, mas não este texto não tem escopo de discutir isso.
3 Para um detalhamento de cada proposta, v. CHILELLI (2022).
4 A explicação disso é que, à época, a avaliação senatorial ocorria após a nomeação. Assim sendo, o Ministro indicado automaticamente passava à fase de posse no cargo para, só depois, enfrentar o crivo do órgão de controle. Para uma explicação detalhada desse episódio, v. SILVA (2012).