Migalhas de Peso

O momento da modulação – (quase) mais relevante que a própria modulação

A modulação, em qualquer das suas duas versões, é um instrumento de defesa do particular (lato sensu) contra o estado, quando este trai a sua confiança.

10/5/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

A nosso ver, e este é um pressuposto básico para que se compreenda o instituto, a modulação, do art. 927, § 3.º do CPC, deve acontecer para prestigiar a conduta do particular que agiu de acordo com a jurisprudência dominante ou com precedente vinculante. Por isso é que é fundamental perceber-se a relevância da modulação nos casos em que a alteração de posição da Corte prejudica o particular, quando o Estado estiver envolvido, o que ocorre, por exemplo, nas lides tributárias. O contribuinte deve, indubitavelmente, ser poupado.

Entretanto a situação de a nova orientação ser favorável ao particular também inspira preocupação. Principalmente no caso de modulação em ADIn, cujo resultado seja favorável (ao contrário da hipótese de que antes se tratou) ao particular: aqui, o efeito é quase moral. O Estado edita normas inconstitucionais, o Fisco lucra com isso (enquanto esta inconstitucionalidade não é declarada) e a decisão não tem efeitos retroativos – por que há modulação? Então o particular não poderia mover contra o Fisco ação de repetição de indébito apesar de ter pago um tributo inconstitucional?

Neste caso, não há que se falar em prestigiar a confiança “do Estado” na lei. O Estado faz a lei, o Estado é o Fisco, o Estado é o Judiciário.

A modulação, em qualquer das suas duas versões, é um instrumento de defesa do particular (lato sensu) contra o estado, quando este trai a sua confiança.

Trata-se de direito do particular, em face do Estado que edita Leis inconstitucionais e que altera, de forma repentina e integral, orientação jurisprudencial firme consubstanciada em súmula, em precedente vinculante ou em jurisprudência pacificada.

Portanto, a modulação já que é uma exceção, não deve, jamais, favorecer o Estado: não é este o sentido jurídico do instituto. Esta regra é crucial e inafastável.

Então, ainda que neste exemplo, a nova realidade – alteração de orientação jurisprudencial firme ou julgamento de ação de controle concentrado, e até difuso – beneficia o contribuinte, a modulação a favor do Estado pode significar um estímulo ao seu mau comportamento.

Já comentamos a exata medida em que, a nosso ver, podem-se usar, nas decisões judiciais, argumentos consequencialistas, em artigo publicado em Migalhas.1 Certamente, não podem ser os únicos a embasar as decisões judiciais! Portanto, razões “políticas” não são suficientes para legitimar decisões sobre modulação. De rigor, decisão alguma.

Mas, qualquer que seja o modo como se modularam os efeitos de uma alteração de orientação firme de um Tribunal ou de uma ação de controle concentrado, o certo é que o pior que pode ocorrer – pior até do que a modulação feita de modo equivocado – é haver intervalo longo de tempo entre a decisão sobre o caso e a decisão sobre a modulação.

Quando se tratar de decisões na esfera tributária, na esfera previdenciária etc... é desnecessário apontar para os prejuízos que uma decisão tardia sobre a modulação pode gerar, financeiros e jurídicos, já que é evidente ficarem os Tribunais imensamente assoberbados e tumultuados nesta fase de indefinição.

A modulação deve ser feita pelo órgão jurisdicional que alterou a orientação antes existente, que constava de precedente vinculante, de jurisprudência pacificada... enfim, que estava cristalizada de tal modo, que fosse capaz de gerar confiança no jurisdicionado a respeito de ser aquela pauta de conduta que devesse ser respeitada.

Admitir que a nova orientação seja afastada por modulação feita por órgãos diferentes daquele de que emanou a decisão, seria fragilizar sobremaneira o sistema de precedentes. De fato, a segurança jurídica, que certamente foi um dos objetivos do legislador quando criou o sistema de precedentes do Código de 2015, ficaria profundamente comprometida, se não integralmente esvaziada, já que cada juiz do país teria a possibilidade de modular de acordo com os seus critérios pessoais.

Qualquer órgão que venha posteriormente a decidir caso a que, em tese, dever-se-ia aplicar orientação nova, cristalizada, por exemplo, num novo repetitivo, está adstrito a julgar de acordo com o novo precedente, não podendo ele mesmo dizer que não se aplica a regra nova,2 porque, naquele caso, estariam presentes os pressupostos para que se respeitasse a confiança que teve o jurisdicionado na orientação anterior.

A modulação como regra, deve ser requerida pela parte embora este requerimento não seja necessário e deve ser objeto de deliberação expressa do Tribunal. Não existe a presunção no sentido de que, não havendo decisão a respeito, não teria havido modulação.

Entretanto, o Tribunal pode modular, ainda que não tenha havido pedido a respeito. A decisão sobre a modulação de efeitos atende a interesses públicos já que, normalmente, se refere, predominantemente, aos efeitos da carga normativa das decisões, i.e., das decisões, enquanto precedentes.

Por isso é que nos parece que qualquer terceiro interessado e mesmo o amicus curiae pode postular haja modulação, embora isto seja desnecessário.

Decidir sobre a modulação é imprescindível toda vez que se altera uma orientação firme anterior. Com isso, queremos significar que se deve decidir acerca da modulação, e não necessariamente modular os efeitos da decisão. Não há sentido em se presumir que não há modulação, quando há silêncio do Tribunal.

A manifestação acerca da modulação pode ser cobrada pelas partes ou pelos amici curiae por meio dos embargos de declaração, justamente porque se considera, óbvia e evidentemente, omissa a decisão que se afasta de orientação confiável anterior, sem dizer expressamente se a nova orientação se aplica às situações do passado.

Não se pode postergar o dever relativo à manifestação acerca da modulação. Não se deve, outrossim, asseverar, na decisão em que se altera uma posição anteriormente assentada, que se decidirá sobre a modulação posteriormente, quando, talvez, as partes vierem a manejar embargos de declaração. Isso equivale à situação de o juiz dizer que proferiu uma decisão com omissão, mas vai supri-la posteriormente, quando for provocado pelos embargos de declaração.

Não é por outra razão que se têm admitido os embargos de declaração com essa finalidade: há uma omissão a ser suprida.

Não é demais dizer o óbvio: todos têm que votar quanto à modulação, mesmo os julgadores que votaram no sentido de que a alteração da orientação anterior não deveria acontecer. Não nos parece, entretanto, que, para haver modulação, no caso de que trata o art. 927, § 3.º, do CPC/2015, haja necessidade de maioria qualificada de votantes.

No entanto, como se percebe, é evidente ser desejável que a decisão da modulação ocorra de preferência junto com a decisão propriamente dita ou, na pior das hipóteses, o quanto antes.3 De rigor, enquanto não se decide sobre a modulação, o acordão não está completo e por isso não deveria produzir efeitos, ainda mais enquanto precedente vinculante, se for o caso.4

Andou mal o legislador quando, por diversas vezes, no novo Código de Processo Civil, assevera que: “Publicado o acordão”, nos repetitivos, nascem os seus efeitos vinculantes em relação aos processos que ficaram suspensos; ou “Julgado o incidente” (IRDR).5

De fato, cometeu-se aqui um erro imperdoável. É evidente, por exemplo, que se o precedente vinculante emana do STJ e se, o acordão ainda está sujeito à interposição de recurso extraordinário, a decisão não pode produzir efeitos desde logo. Isto porque existe a possibilidade de que seu teor seja alterado com o provimento do recurso. Aliás, é isso que a própria lei diz logo depois: os recursos extraordinário ou especial, interpostos contra a decisão que julga o IRDR têm efeito suspensivo.

Portanto, o legislador, ainda por cima, se contradiz. A razão de ser desse dispositivo é obviamente a de evitar uma situação de flagrante desrespeito à isonomia. Como criar igualdade entre as pessoas que foram, desde logo, atingidas pelo precedente vinculante, por meio de decisões que foram proferidas respeitando-o, e a situação de outros que só foram atingidos pelo precedente vinculante, depois que ele foi alterado pelo STF?

Esta mesma situação esdrúxula acontece quando os Tribunais deixam acontecer um intervalo de tempo indesejável entre o momento da alteração da orientação anterior e o momento em que se decide a partir de quando essa nova orientação deve ser aplicada.

Não se trata, propriamente, como entendem alguns, de um julgamento bifásico, até porque essa expressão sugere que a segunda fase possa acontecer tempos depois. Na verdade, paradoxalmente, a decisão sobre a modulação é um pressuposto sobre como se deve aplicar o precedente.

Portanto, ainda que se trate de uma decisão que normalmente é tomada depois de ter havido a tal alteração de orientação, ela é, paradoxalmente, necessária para que se possa saber como o precedente vai ser aplicado, do ponto de vista temporal.

O que se espera, no que diz respeito à modulação, é que as práticas, muitas vezes equivocadas, dos Tribunais Superiores, não sejam alçadas à categoria de “verdades”, só porque são “práticas dos Tribunais Superiores”. Esta, de fato, não é uma razão suficiente, embora seja muito relevante. Compreende-se que certos equívocos estejam sendo cometidos por todos nós: pelos ministros, pela doutrina, pelos advogados, já que se está, aqui, diante de um Mundo Novo, um mundo com o qual não estávamos habituados.

O sistema de precedentes é novo e a questão da modulação, se foi razoavelmente estudada a luz da Lei 9.868/99, ainda está menos do que engatinhando quando se trata da figura prevista pelo novo Código de Processo Civil. O legislador processual civil foi lacônico, e transferiu a responsabilidade de criação das regras de funcionamento da modulação ao Judiciário e aos estudiosos: não há como atingir um sistema que produza efeitos benéficos para toda a sociedade, se não houver o adequado diálogo entre esses dois setores.

_____

1 ARRUDA ALVIM, Teresa. Consequencialismo e decisões judiciais. Migalhas. Disponível aqui.

CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais: teoria e dinâmica. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 157. Ravi Peixoto afirma que o ideal é que a modulação ocorra na decisão que alterou o precedente, não posteriormente. Diz, entretanto, que, excepcionalmente, pode- se admitir que, se na decisão que superou o precedente, passando a adotar posição diferente da anterior, não se tiver feito menção à modulação, pode o juiz do caso a que o precedente se aplicaria fazer, ele mesmo, a modulação (PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. Salvador: JusPodivm, 2015, item 5.3, p. 334).

“Já se indagou se as regras de transição deveriam constar do próprio julgamento que determina a superação da estabilidade, ou se deveriam ser redigidas separadamente.
Em nossa opinião, a junção das regras de transição com as razões do julgamento permite uma compreensão mais completa da controvérsia e da necessidade da edição do regulamento interino, podendo servir ainda quando da reavaliação destas regras no futuro”. (CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre continuidade, mudanças e transições de posições processuais estáveis. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, item. 9.6.3.4.1, p. 640).

4 “Finalmente, pensamos que a questão da modulação da superação precedente deve ser um tópico, um capítulo propriamente, do julgamento em que isso ocorra, seja para negar sua realização, seja para dimensioná-la concretamente”. (JOBIM, Marco Félix; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Súmula, jurisprudência e precedente: da distinção à superação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021, item 6.1, p. 156.)

5 “Art. 985. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada: (...)”; “Art. 1.040. Publicado o acórdão paradigma: (...)”.

Teresa Arruda Alvim
Sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. Livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.

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