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Graça constitucional e a sua legalidade

A graça constitucional concedida pelo Presidente Jair Bolsonaro não só tem amparo jurídico, como também se mostrou fundamental para o restabelecimento da ordem democrática.

9/5/2022

(Imagem: Artes Migalhas)

Em 21/4/22, o Presidente da República, no uso de suas atribuições, concedeu graça constitucional ao deputado Federal Daniel Silveira, extinguindo a punibilidade de crimes a ele imputados na ação penal 1.044, julgada pelo STF.

Apesar de ter divido a opinião pública, a medida adotada pelo Palácio do Planalto não só possui respaldo jurídico-constitucional, como também se mostrou imprescindível para o restabelecimento do equilíbrio entre dois Poderes da República: o Judiciário e o Legislativo.

Com efeito, a Constituição Federal, em seu art. 84, inciso XII, prevê, dentre as competências privativas do presidente da república, a prerrogativa de “conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei”.

Embora a constituição não utilize o termo graça, este instituto nada mais é do que uma modalidade de “indulto individual”, ou seja, um perdão individual concedido pelo presidente da república, o qual constitui uma causa de extinção da punibilidade (art. 107, inciso II, do Código Penal).

Já no campo infraconstitucional, o termo graça é mencionado no art. 734 do Código de Processo Penal, segundo o qual: “a graça poderá ser provocada por petição do condenado, de qualquer pessoa do povo, do Conselho Penitenciário, ou do Ministério Público, ressalvada, entretanto, ao Presidente da República, a faculdade de concedê-la espontaneamente”.

Deste dispositivo, verifica-se, portanto, que a graça pode ser concedida ex officio, ou seja, não depende da iniciativa de qualquer órgão, mas apenas do próprio Presidente da República.

Já no que tange à discricionariedade, merece destaque o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade 5.874, de relatoria do ministro Roberto Barroso, cuja ementa é clara ao dispor que “compete ao Presidente da República definir a concessão ou não do indulto, bem como seus requisitos e a extensão desse verdadeiro ato de clemência constitucional, a partir de critério de conveniência e oportunidade”.1

Deste excerto se extrai, por consequência, a impossibilidade de o STF revisar os fundamentos do decreto que concedeu a graça, eis que tal prerrogativa é exclusiva do chefe do Poder Executivo.

Assim, em virtude de tais considerações, conclui-se que o decreto emitido pelo Presidente Jair Bolsonaro não apresenta qualquer vício quanto à sua iniciativa, bem como quanto à sua motivação.

A propósito, observe-se que a graça constitucional concedida ao deputado Daniel Silveira, exatamente por se tratar de um perdão individual, ou seja, destinada a uma pessoa específica, não constitui qualquer violação ao princípio da impessoalidade (art. 37 da CF). Isso porque, como é da natureza do instituto conceder um benefício a um indivíduo, não há que se falar em aplicabilidade do critério da impessoalidade.

No mais, também não se vislumbra desvio de finalidade no decreto, uma vez que a concessão da graça constitucional tinha como fundamento a manutenção do Estado Democrático de Direito, considerando-se os seguintes valores como premissas norteadoras:

a) a liberdade de expressão é pilar essencial da sociedade em todas as suas manifestações;

b) a concessão de indulto individual é medida constitucional discricionária excepcional destinada à manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição de poderes;

c) a concessão de indulto individual decorre de juízo íntegro baseado necessariamente nas hipóteses legais, políticas e moralmente cabíveis;

d) ao Presidente da República foi confiada democraticamente a missão de zelar pelo interesse público;

e) a sociedade encontra-se em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade de expressão.

Por outro lado, o decreto concedido pelo Presidente também não afronta o art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, eis que o deputado não foi condenado por nenhum dos crimes previstos naquele dispositivo, quais sejam: tortura, tráfico de drogas, terrorismo ou crimes hediondos.

Portanto, a partir de uma análise estritamente objetiva, observe-se que o decreto não possui qualquer vício material que comprometa a sua validade.

Além do mais, do ponto de vista formal, também não restou evidenciada a existência de vícios na sua origem.

Em que pesem entendimentos em sentido contrário, condicionar a concessão da graça ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória é uma criação de alguns interpretes do direito, ou seja, não consta expressamente na Constituição ou em qualquer norma infraconstitucional.

Nesta vertente, no julgamento da ADI, em que se discutia a constitucionalidade do decreto 9.246/17 (indulto natalino concedido pelo então Presidente Michel Temer), prevaleceu o entendimento de que o indulto poderia ser concedido antes mesmo do trânsito em julgado.

De acordo com o voto do ministro Gilmar Mendes, “na doutrina, afirma-se: ‘verificamos a possibilidade de se receber o indulto antes do trânsito em julgado’ (RIBEIRO, Rodrigo. O indulto presidencial: origens, evolução e perspectivas. RBCCrim, v. 23, n. 117, nov./dez. 2015. p. 428). Ou seja, não há óbice para que o indulto seja aplicado antes do trânsito em julgado do processo. Ou seja, não há óbice para que o indulto seja aplicado antes do trânsito em julgado do processo. Conforme já afirmado, a concessão do indulto é prerrogativa do Presidente da República que possui impactos no exercício da pretensão punitiva pelo Estado, podendo ter consequências em qualquer fase da persecução penal. Trata-se de mecanismo de gestão do sistema penal, com impactos em questões penitenciárias e de política criminal em sentido amplo (...)”.2

O ministro Alexandre de Moraes também adotou o mesmo posicionamento, ao sustentar que “a Constituição Federal não limita o momento em que o presidente da República pode conceder o indulto, sendo possível isentar o autor de punibilidade mesmo antes de qualquer condenação criminal”.  

Ora, uma vez que a finalidade precípua da graça é assegurar a extinção da punibilidade, não há razão para impedir a sua concessão, ainda que preventiva. A título de exemplo, destaque-se o instituto do habeas corpus, remédio constitucional utilizado para assegurar a liberdade de um indivíduo, e que também admite a modalidade preventiva.

Logo, não é possível exigir o cumprimento de uma formalidade que sequer é prevista em lei, até porque não cabe interpretação extensiva de norma restritiva de direito.

Aplica-se, ao caso, o brocardo latino: “ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”, ou seja, onde a lei não distingue, também nós não devemos distinguir. 

Diante de tais circunstâncias, conclui-se que o decreto de 21/4/22, editado pelo Presidente da República, para perdoar os crimes pelos quais o deputado Federal Daniel Silveira foi condenado, não possui qualquer ilegalidade ou vício, do ponto de vista formal e material, capaz de comprometer a sua validade e eficácia.

No mais, independente da posição político-partidária, e mesmo diante da possível reprovabilidade da conduta atribuída ao deputado, é inegável que a graça concedida pelo Presidente da República representou um recado claro ao Supremo, de que as instituições devem agir de forma harmônica e independente, ao passo que eventual quebra de decoro por parlamentar deve ser passível de punição pelo próprio Poder Legislativo, instituição que já possui os mecanismos próprios para apurar e punir eventuais excessos cometidos por seus membros.

Na situação em voga, o que se está em jogo não é a simples liberdade do Deputado, mas sim a defesa de princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, dentre os quais: a liberdade de expressão, e, sobretudo, a imunidade parlamentar, ambos essenciais para conferir proteção aos membros do parlamento, representantes do povo, para que possam sustentar as suas opiniões políticas e ideológicas de forma livre, independente e sem qualquer tipo de censura.

Ao mesmo tempo, é evidente que eventuais excessos cometidos no exercício da liberdade de expressão devem ser punidos, eis que nenhum direito é absoluto. De todo modo, a punição deve ser de maneira proporcional à conduta, deve ser pautada pela imparcialidade do julgador, e, mormente, de acordo com o devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, da Carta Magna).

Ora, a Suprema Corte, como guardiã da Constituição Federal, deve sempre pautar as suas decisões de modo a assegurar o respeito às garantias fundamentais dos indivíduos, evitando-se, ainda, extrapolar a sua esfera de atribuições de modo a causar instabilidade entre as instituições e à própria democracia.

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1 https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754291421.

2 https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754291421. 

Ivan Sartori
Desembargador, formado em Direto pela Universidade Mackenzie. Ingressou na Magistratura Paulista em janeiro de 1981 com 23 anos. Foi eleito e reeleito para compor o Órgão Especial daquela Corte, instância máxima do Judiciário Paulista. Foi o relator do atual Regimento Interno do Tribunal. Tornou-se o mais jovem Presidente da história do maior tribunal do mundo (TJ/SP), biênio 2012/13.

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