No âmbito do direito de família brasileiro, ganhou destaque, nos últimos anos, tema especialmente delicado, complexo e, acima de tudo, polêmico. Trata-se da responsabilidade civil por abandono afetivo, sobre a qual a doutrina e a jurisprudência não apresentam entendimento uniforme. Muito pelo contrário, visivelmente rachada, a comunidade jurídica enfrenta a problemática da reparação civil por abandono afetivo com extrema cautela, como deve ser manejada qualquer questão de responsabilidade no seio da célula mater da sociedade, locus máximo de desenvolvimento da personalidade humana: a família.
Como é cediço, dentre as relações de direito privado, as familiares ocupam posição de destaque e recebem especial tutela da ordem jurídica (art. 226 da Constituição Federal1), uma vez que veiculam experiências de maior humanidade e socialização que a pessoa pode alcançar. Envolvem os aspectos mais basilares do desenvolvimento do ser como humano, mas também como filho, pai, mãe, avó, irmão, marido, companheira etc. É no ambiente familiar que a pessoa física nasce, cresce e morre, desenvolvendo, nesse trajeto, os mais diversos atributos de sua capacidade, sempre em correlação com o próximo sem o qual sua personalidade jamais atinge projeção máxima. Em breves palavras, configura uma troca constante entre pessoas ligadas pelo convívio, pela solidariedade, e, principalmente, pelo afeto.
Assim, com nobre esforço, vêm os civilistas buscando harmonizar a orientação doutrinária; o mesmo fazem os magistrados de uniformização de jurisprudência e de interpretação do direito objetivo, sobretudo aqueles que compõem o STJ. Não é à toa que, examinando a matéria em comento, qualquer pesquisador se depare com uma série de decisões judiciais e opiniões catedráticas em sentidos diametralmente opostos; mas, também, de forma intermediária - rectius temperada. Exatamente por isso que a análise da questão proposta contribui imensamente para não apenas pacificar a orientação jurídica, mas, principalmente, para solucionar com maior eficácia os conflitos familiares.
Infelizmente, no bojo de relacionamentos conturbados de família, surge, por vezes, a figura do abandono afetivo. Por mais impactante que possa soar, a expressão denota bem o conceito que carrega. Trata-se de omissão e descuido por parte de um membro familiar em relação a outro pelo qual deveria, em tese, ter zelo e prestar assistência moral, educação, atenção, carinho, afeto e orientação. Nas palavras esclarecedoras de Rodrigo da Cunha Pereira, corresponde ao “abandono de quem tem a responsabilidade e o dever de cuidado para com um outro parente (...) especialmente dos pais em relação aos filhos menores, e também dos filhos maiores em relação aos pais.”2 A relação entre os dois sujeitos é visivelmente desequilibrada. A criança, e o idoso também; vale apontar, precisa de assistência constante, enquanto os genitores se encontram em posição privilegiada de fornecer-lhes mencionada ajuda e cuidado.
Em seu processo sadio de formação individual e social, o menor “necessita de alimentos para o corpo e para a alma”3; ou seja, não basta que disponha de meios materiais para evoluir, pois a assistência moral, psicológica e afetiva é essencial para que a pessoa humana se desenvolva de modo completo e saudável. A criança tem direito à convivência familiar, conforme dicção do art. 227 da CF/884, o qual funcionaliza o exercício de sua personalidade
Entretanto, não basta que a convivência se dê por modo mínimo. Os vulneráveis precisam de especial atenção, expressa, no que aqui importa, no afeto, no cuidado, no zelo, no carinho, na educação. Inclusive, o art. 7º do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente5 sublinha como direito fundamental dos menores o seu desenvolvimento sadio e harmonioso, em claro desdobramento do princípio constitucional da proteção integral da criança e do adolescente (art. 227 da Constituição Federal), os quais devem sempre ser colocados a salvo de toda a forma de negligência para que seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, seja facultado e facilitado (art. 3º do ECA6). No caso, esta última se expressa pelo desleixo, a ausência de cuidados, a falta de convivência, o afeto renegado, entre tantas outras facetas que apresenta esse tipo de abandono.
Nessa esteira, o genitor, geralmente o pai, que abandona afetivamente seu filho comete ato extremamente reprovável e isso é batido e indiscutível. No entanto, o ponto controverso reside especificamente na resposta que o ordenamento jurídico deve fornecer à situação em destaque. Configuraria o abandono afetivo espécie de dano moral indenizável ou estariam seus efeitos e sanções retidas ao âmbito do direito de família? Tratar-se-ia de uma questão com alcance jurídico ampliado ou apenas de um comportamento meramente imoral? Sob o silêncio sepulcral do legislador, cabe à doutrina e à jurisprudência preencher essa lacuna.
Desde já, importa sinalizar que, partindo de uma das regras mais comezinhas de direito, qualquer tipo de ato, seja ele comissivo ou omissivo, deve preencher alguns requisitos para que seja civilmente sancionado pelo ordenamento jurídico. Dito isso, há que se falar, de início, que a responsabilidade civil por abandono afetivo apenas pode ser discutida ante presença de dano concreto e comprovado para o menor, no caso, dano moral.
Em que pese alguns doutrinadores e magistrados ainda criticarem a aplicação das regras de Responsabilidade Civil ao âmbito familiar, sob os já ultrapassados argumentos de que as normas referentesà família já seriam suficientes para tutelar eventuais litígios e que a aplicação do regime de reparação traria terrível caráter patrimonialista às relações entre parentes, o entendimento majoritário no Brasil é o de que não existe referido óbice. Na realidade, a mais simplória análise dos arts. 1867 e 9278 do CC/02 aponta para seu caráter abrangente no sistema, funcionando como cláusulas gerais que não excluem a família de sua incidência. Quem vulnera bem jurídico tutelado pelo ordenamento, causando dano a outrem, independente da relação que tenha com a vítima, estará sempre obrigado a reparar; onde o legislador não restringiu, não cabe ao operador do direito fazê -lo. De fato, não resiste ao mais fraco sopro do bom direito.
Pois bem, ultrapassada a ideia de que ao redor da família existe um invólucro impenetrável pelas outras áreas do direito civil, o debate em tela ganha mais interesse. Ao abandono material corresponde o dano material ao afetado. O mais emblemático exemplo é o da relação alimentícia entre genitores e filhos. Os alimentos configuram verbas periódicas devidas pelos pais aos menores para o seu sustento e desenvolvimento, e sua inadimplência gera o dever de indenizar o prejuízo causado ao alimentado, por parte do alimentante. O dano é, assim, inequívoco, visível, comprovado pelo descumprimento, e faz nascer a obrigação de reparar.
Na esfera dos bens extrapatrimoniais – leia-se, o afeto, o carinho, o amor, a educação, a integridade psicofísica, a intimidade, etc – o dano é, muitas vezes, difícil de ser visualizado, geralmente imaterial, embora quase sempre fácil de ser sentido pelo ofendido. O dano dito moral corresponde, nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes, à “lesão a algum desses aspectos ou substratos que compõem, ou formam, a dignidade humana, isto é, a violaçãoà liberdade, à igualdade, à solidariedade ou à integridade psicofísica de uma pessoa humana.”9
Assim, sob a cláusula geral da dignidade da pessoa humana, alçada a fundamento constitucional da República brasileira (art. 1o, III da CF/88), a pessoa física recebe acurada proteção contra prejuízos de ordem extrapatrimonial. Além dos bens mais abstratos mencionados pela autora, qualquer lesão a direitos da personalidade (exemplificados nos art. 11 a 21 do CC/02) geralmente representa dano moral. Isso ocorre porque, na concepção civilista mais atual, o dano à personalidade humana é, muitas das vezes, in re ipsa10, isto é, dispensa comprovação uma vez que a lesão corresponde ao ato per se do ofensor.
A prática de tal ato compromete bastante o desenvolvimentodas crianças e dos adolescentes renegados, causando-lhes baixa autoestima, sintomas de rejeição, rendimento escolar insuficiente e outras consequências que podem perdurar durante o resto da vida, afetando sua trajetória social e profissional. Isso porque “diante do descuido em situações de dependência e carência, o abandono certamente afeta a higidez psíquica do descendente rejeitado.”11 Por isso, não é difícil imaginar o dano extrapatrimonial ocasionado pela situação. “De fato, a importância da figura paterna, especialmente depois das conclusões da psicologia moderna, não precisa de mais comprovações. É notória sua imprescindibilidade, assim como o é a da figura materna, para a adequada estruturação da personalidade da criança.”12
Além da verificação do dano à dignidade humana do menor, necessário verificar sua causa. Se esta for justamente o abandono, não há dúvidas de que entre o prejuízo e o ato há nexo de causalidade, mais um elemento indispensável para que sequer se defenda a ressarcibilidade do dano sofrido. Nesse momento de exploração da causa, digamos, é em que mais importa o trabalho realizado pela psicologia, seja ela privada ou forense, para determinar com segurança a raiz da vulneração moral, por meio de índices como o momento do início dos sintomas, a relação pessoal entre genitor e filho, o regime de guarda, etc.
Entretanto, acerca dos dois primeiros elementos acima discutidos, exigidos pela responsabilidade civil para se falar em qualquer reparação, existe pouca ou nenhuma divergência. Na verdade, o caminho se bifurca exatamente na discussão sobre ilicitude e culpa do genitor que abandona sua prole.
Com efeito, por não se tratar de nenhuma hipótese de responsabilidade objetiva enumerada pelo CC/02 e por não estar amparada pela cláusula geral de risco instrumentalizada pelo art. 927, parágrafo único do mesmo diploma, a culpa é elemento fundamental e indispensável para qualquer responsabilização do genitor. Dita responsabilidade subjetiva implica a necessidade de que o ofensor seja, também, infrator de alguma norma de conduta. Assim, deve existir algum dever jurídico de cuidado lato sensu, ou algum comportamento padrão, standard, objetivamente considerado que sofra, por ato culposo, violação. Nesse ponto específico, se digladiam as correntes doutrinárias e os tribunais do país.
Parte da doutrina autorizada, como Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias, e da jurisprudência se opõem à possibilidade de se responsabilizar civilmente um pai que abandona seu filho, deixando-o à margem de afeto. Para essa parcela da comunidade, o afeto não configura dever jurídico do genitor e, portanto, é inexigível. Segundo defendem, inexiste na legislação pátria qualquer menção ao afeto com referida natureza e, por esse motivo, mesmo que dolorosamente renegado, o filho não pode recorrer ao Judiciário pleiteando danos morais, uma vez que um dos requisitos básicos da Responsabilidade Civil, o ilícito e a culpa, não estaria presente.
Argumentam que o afeto corresponde a sentimento humano genuíno, o qual não pode ser forçado pelo direito sob pena de se desnaturar sua espontaneidade. Para essa parcela doutrinária, “afeto, carinho, amor, atenção ... são valores espirituais, dedicados a outrem por absoluta e exclusiva vontade pessoal, não por imposição jurídica.”13
Nas palavras dos dois juristas, “reconhecer a indenizabilidade decorrente da negativado afeto produziria uma verdadeira patrimonialização de algo que não possui tal característica econômica, subvertendo a evoluçãonaturalda ciência jurídica, retrocedendo a um período em que o ter valia mais do que o ser.”14 A reparação, com caráter punitivo ao genitor que abandona, reafirmaria uma tendência de mercantilização das relações familiares, a ser por tudo evitada na ordem constitucional inaugurada em 1988. Além disso, não solucionaria o problema central que seria obrigar o genitor a dedicar afeto ao seu filho, muito provavelmente agravando a situação.
Portanto, diante da negativa acima exposta, alguns doutrinadores defendem que o remédio jurídico idôneo contra o abandono afetivo seja encontrado no próprio seio do direito de família. Expõem a perda do poder familiar como medida adequada para ser aplicada. De acordo com o art. 1.638, II do CC/02, “perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: II. deixar o filho em abandono”; nesse sentido, o genitor que infringe os deveres que a ele competem por conta do poder familiar – especificamente o de educação e de criação (art. 1.634, I do Código Civil15), deixa seu filho em situação de abandono e deve ser destituído da autoridade parental que exerce. O mesmo resultado advém da inteligência dos arts 2216 c/c 2417 do ECA.
A orientação da 4º turma do STJ caminha na mesma direção. No Recurso Especial 1.579.021/RS, julgado emblemático decidido em 19/10/17 cuja relatoria coube à ministra Maria Isabel Galotti, a Corte frisou alguns precedentes da 4a Turma, dentre os quais o REsp 757.411/MG, por exemplo, para afirmar ser incabível a ação indenizatória contra o genitor que abandona afetivamente seu filho.
Em seu voto, a relatora destacou que não se trata a afetividade de dever jurídico, uma vez que “a convivência e o afeto devem corresponder a sentimentos naturais, espontâneos, genuínos, com todas as características positivas e negativas de cada indivíduo e de cada família. Não é - nem deve ser - o cumprimento de dever jurídico, imposto pelo Estado, sob pena de punição (ou indenização punitiva).”18 Continua, sustentando que a tentativa de regulamentar a convivência e o afeto entre genitores e seus filhos, por meio da reparação civil como sanção, tornaria mais conturbada a relação, dificultando bem mais a esperança de as partes se reaproximarem no futuro. Para a ministra, não há previsão legal de um dever de cuidado afetivo, já que o cuidado estabelecido em lei concerne apenas à guarda, ao sustento e à educação dos filhos, representando a convivência familiar, garantia pelo texto constitucional, um ideal dentro das circunstâncias de cada família, em claro apreço ao livre planejamento familiar garantido aos membros da célula mater (art. 226, § 7º da Constituição Federal19).
Completamente diverso do entendimento contrário à indenização do dano moral decorrente de abandono afetivo, reside a parcela majoritária da doutrina contemporânea. Embora a jurisprudência nacional ainda se encontre muito dividida, a orientação doutrinária em favor da ressarcibilidade do dano avança pioneiramente e merece aplausos.
Juristas como Maria Berenice Dias, Rodrigo da Cunha Pereira, Gustavo Tepedino, Rolf Madaleno, Paulo Lôbo, entre outros, defendem veementemente a incidência das normas da Responsabilidade Civil às relações familiares, uma vez que, quando falha em instrumentar a promoção da personalidade dos seus membros, a família necessita de intervenção para se proteger seus componentes. Isso dito, a reparação civil funcionaria, conforme seu intuito compensatório, como garantia de alguns direitos fundamentais, como por exemplo, o desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes que dela fazem parte.
De modo mais técnico, entendem ser possível a responsabilização de um pai que abandona afetivamente seu filho pois estariam presentes todos os requisitos autorizadores da reparação civil, inclusive a ilicitude e culpa do genitor. Para o grupo, o afeto corresponde a muito mais do que simples estado emocional e sentimento humano, inexigível pelo ordenamento exatamente por sua natureza espontânea. Na nova ordem constitucional, a família adquiriu roupagem inédita como locus de realização do indivíduo, em que os laços biológicos e sanguíneos entre seus membros não apresentam o mesmo peso de outrora e não servem mais como maior e única justificativa de sua legitimidade e importância. No cirúrgico ensinamento de Paulo Lôbo, o afeto “fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico”20, funcionando como componente agregador dos membros familiares e apresentando status de verdadeiro valor jurídico.
Do afeto como valor deriva o princípio específico do direito de família, a afetividade. Trata-se de um princípio constitucional não expresso, pois se encontra implícito e contido nas normas constitucionais explícitas, muitas delas específicas do ramo: o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da Constituição Federal), da solidariedade (art. 3º, I), da igualdade entre os filhos, independentemente da origem (art. 227, § 6º), a adoção como escolha afetiva (art. 227,§§ 5º e 6º), a proteção à família monoparental, seja biológica, seja adotiva (art. 226, § 4º), a união estável (art. 226, § 3º), a convivência familiar garantida à criança e ao adolescente, independentemente da origem (art. 227).
Nesse sentido, percebe-se que a afetividade, de conteúdo derivado do afeto como valor jurídico, ainda que não escrita, encontra respaldo em várias normas do texto constitucional, e, exatamente por isso, diz-se que é fonte geradora de direitos e deveres aos seusdestinatários – tal qual opera qualquer princípio. Nítido, pois, que o instituto da família, ou, melhor, no que aqui importa, seu regime jurídico, gravita ao redor do afeto e se estrutura na afetividade.
É precisamente nesse momento que os defensores do cabimento indenizatório expõem que da afetividade nasce, para os pais, o cuidado como dever jurídico, exigível pelo direito, presente ou não o sentimento afetuoso. Tal dever surge da paternidade expressa por meio do poder familiar. Nesse sentido, o(s) indivíduo(s) que decide(m) formar uma família - no caso, ter filhos -, assume(m) os deveres inerentes à relação, tanto materiais, quanto existenciais. O livre planejamento familiar, garantia constitucional de qualquer sujeito21, traz, a reboque, enorme responsabilidade.
O exercício da paternidade/maternidade traduz-se no poder familiar garantido aos pais para com seus filhos, e configura bem indisponível para o Direito de Família. Os genitores não podem optar por cumprir ou não seus deveres, positivados na legislação infraconstitucional no artigo 1.634 do Código Civil22; é obrigação legal. A autoridade parental, a partir de 1988 e com mais ênfase após o novo Código de 2002, “deixou de ser apenas um conjunto de competências atribuídas aos pais, convertendo-se em um conjuntode deveres para atender ao melhor interesse do filho, principalmente, no que tange à convivência familiar”23; trata-se de renovado poder-dever de cuidar, em contato direto com a prole.
Assim, não se discute que o princípio da paternidade responsável ultrapassa a esfera material, impondo aos genitores auxílio, assistência, ajuda, convívio com seus filhos. “Está claro, portanto, que educar é muito mais do que matricular o filho na escola. É participar da formação dos filhos nos diversos aspectos dela, tais como nos campos moral, político, religioso, profissional”24. Por isso, o abandono parental deve ser compreendido como lesão a um interesse jurídico tutelado, seja ele material, seja ele extrapatrimonial, causada por omissão do genitor no cumprimento do exercício do poder familiar, isto é, de suas funções parentais.
Portanto, segundo a orientação dessa parte da doutrina, o pai que deixa de dedicar cuidados ao seu filho, colocando-o à margem de afeto, ainda que adimpla suas obrigações patrimoniais, age com culpa e pratica ato ilícito, porque, além infringe dever jurídico de cuidado. Como justificativa legal para o pedido indenizatório, apontam o dever da família de prover educação e garantir convivência familiar aos menores (art. 227, caput da Constituição Federal), os deveres de criação e educação (art. 1.634, I do Código Civil) e a garantia do menor de convivência familiar (art. 19 do ECA 25). O próprio IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, em seu enunciado 8, aprovado no X Congresso Brasileiro de Direito de Família e Sucessões, em 2015 sintetiza: “O abandono afetivo pode gerar direito à reparação pelo dano causado.”
Acerca da decretação da perda do poder familiar, sustentam não ser o meio adequado para se tutelar o menor ofendido pelo ilícito. Primeiramente, a destituição “pode constituir-se não em uma pena, mas uma bonificação pelo abandono”26, uma vez que o genitor estaria legalmente exonerado de seus deveres e funções parentais, decorrentesjustamente do poder-dever familiar. Sob outro viés, a suspensão e a perda da autoridade parental se afiguram como instrumentos punitivos ao pai desidioso e protetivos ao menor, mas não funcionam como forma de reparação civil; pelo contrário, sua função é a de resguardar a integridade da criança, oferecendo-lhe, por outros meios, a criação e educação negadas pelos pais, e jamais compensar os danos oriundos do malcuidado recebido. Os institutos são completamente diversos e, embora sirvam à tutela do menor abandonado, apresentam fins diferentes.
Em posição contrária à jurisprudência da 4º turma, a 3º turma do STJ apresenta entendimento crescente no sentindo de ser razoável e cabível a indenização por danos morais frutos do ato de abandono. Em 2012, a Ministra Nancy Andrighi protagonizou o julgamento do Recurso Especial 1.159.242/SP, caso simbólico da orientação jurídica favorável à responsabilização, sob sua relatoria. No julgado, a relatora, em seu voto, sublinhou que os deveres de convívio, de cuidado, de criação e de educação dos filhos são inerentes ao poder familiar e envolvem a transmissão necessária de atenção e o acompanhamento da evolução sócio-psicológico da criança. Segundo explica, a “percepção do cuidado como tendo valor jurídico já foi, inclusive, incorporada em nosso ordenamento jurídico, não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88”27; por isso, o que se discute não é a quantificação de algo intangível, de um sentimento, mas, na verdade, a verificação do cumprimento ou não da obrigação legal de cuidar. Em emblemático dizer, sintetiza muito bem que “amar é faculdade, cuidar é dever.”28
Em recentíssima decisão, novamente sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, a 3º turma deu mais um grande passo para a pacificação da temática. No caso discutido, conforme atestaram laudos periciais e a psicologia auxiliadora, o pai promovera uma séria ruptura da relação que mantinha com a filha, de modo absolutamente abrupto após o término da união estável com a mãe, quando a criança ainda contava com apenas seis anos, momento em que evidentemente os vínculos afetivos se encontravam estabelecidos. O pai deixou de participar de sua educação, criação e desenvolvimento, mesmo tendo existido várias oportunidades para emendar a situação. Segundo narra a Ministra em seu voto, a criança, agora com quatorze anos de idade, “precisou se valer de tratamento psicoterápico desde o ano de 2010, a partir do qual ficou constatadanão apenas o trauma de natureza psicológica, mas também uma série de eventos somáticos decorrentes do abandono afetivo (paralisias nas pernas, refluxos, enjoos, tonturas, tremedeiras).”29
O dano psicológico experimentado pela recorrente é concreto e indiscutível, tendo se originado justamente por conta do abandono do pai, causando-lhe visivelmente a alteração de sua personalidade e de sua própria história de vida. “O recorrido, pois, ignorou uma conhecida máxima: existem as figuras do ex-marido e do ex-convivente, mas não existem as figuras do ex-pai e do ex- filho”30; assim, caracterizado o dano, o nexo de causalidade, e a conduta ilícita/culpa do pai que praticou o abandono, foi julgado procedente o Recurso Especial 1.887.697/RJ para condenar o genitor ao pagamento de R$30.000,00 a título de verbas indenizatórias.
Após a exposição do dissídio jurisprudencial e doutrinário, parece mais acertado o posicionamento a favor da indenizabilidade do dano moral proveniente de abandono afetivo. Este é ato extremamente grave, e apenas punir o genitor com a destituição do poder familiar deixaria o menor irressarcido, situação insustentável no direito brasileiro, onde a reparação completa da vítima e a proteção integral de crianças e adolescentes são máximas jurídicas importantíssimas.
Os pais modelam muitos aspectos do caráter e da individualidade de seus filhos, durante a fase de crescimento, e deixá-los abrir mão desse dever legal seria atentório à paternidade responsável e a tantos outros princípios já aqui evidenciados. O lar corresponde à “oficina da construção da personalidade da criança, o atelier em que os pais pintam na tela branca as variadas cores e figuras da existência humana”31; se isso não ocorre, é em geral previsível e triste o resultado desse desleixo. Renegar afetivamente uma criança significa deixar de colorir de diferentes matizes a sua personalidade, negar-lhe a vividez e o brilho que o afeto traria às suas cores, abandonar uma tela em branco sem as tintas que apenas os pais podem suprir.
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1 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
2 “Direito das Famílias”; Rodrigo da Cunha Pereira, p. 714
3 “Direito das Famílias”; Rodrigo da Cunha Pereira, p. 652
4 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
5 Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
6 Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
7 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
8 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigadoa repará-lo.
9 “Danos morais em família? Conjugalidade, parentalidade e responsabilidade civil”; Maria Celina Bodin de
Moraes, p. 8
10 presumido; da natureza da própria coisa
11 “Direito de Família”; Rolf Madaleno, p. 668
12 “Danos morais em família? Conjugalidade, parentalidade e responsabilidade civil”; Maria Celina Bodin de
Moraes, p. 19
13 “Curso de Direito Civil, Famílias”; Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, p. 133
14 “Curso de Direito Civil, Famílias”; Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, p. 134
15 Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I - dirigir-lhes a criação e a educação;
16 Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
17 Art. 24. A perda e a suspensão do pátrio poder familiar serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22.
18 REsp 1.579.021/RS
19 Art. 226, § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
20 “Direito Civil, Famílias, Volume 5”; Paulo Lôbo, p. 47
21 Art. 226. § 7º da Constituição Federal
22 Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I - dirigir-lhes a criação e a educação; II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior; V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município; VI - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VIII - reclamá- los de quem ilegalmente os detenha; IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
23 “Direito das Famílias”; Rodrigo da Cunha Pereira, p. 659
24 “Responsabilidade civil pelo abandono afetivo”; Fábio Calheiros do Nascimento, p. 398
25 ECA Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral.
26 “Manual de Direito das Famílias”; Maria Berenice Dias, p. 404
27 REsp 1.159.242/SP
28 REsp 1.159.242/SP
29 REsp 1.887.697/RJ
30 REsp 1.887.697/RJ
31 “O abandono afetivo do filho, como violação aos direitos da personalidade”; Clayton Reis e Simone Xander
Pinto, p. 508
Bibliografia:
DIAS, Maria Berenice. “Manual de Direito das Famílias”
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. “Curso de Direito Civil, Famílias”
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. “Pressuposto, elementos e limites do dever de indenizar por abandono afetivo.”
LIMA, Anna Carolina Dias Teixeira. “Responsabilidade Civil nos Casos de Abandono Afetivo Parental” LOBO, Katia Regina Ferreira. “Curso de Direito da Criança”
LÔBO, Paulo. “Direito Civil, Famílias, Volume 5”
MACHADO, Gabriela Soares Linhares. “Análise doutrinária e jurisprudencial acerca do abandono afetivo na filiação e sua reparação”
MADALENO, Rolf. “Direito de Família”
MORAES, Maria Celina Bodin de. “Danos morais em família? Conjugalidade, parentalidade e responsabilidade civil”
NASCIMENTO, Fábio Calheiros do; “Responsabilidade civil pelo abandono afetivo” PEREIRA, Rodrigo da Cunha; “Direito das Famílias”
PINTO, Simone Xander; REIS, Clayton. “O abandono afetivo do filho, como violação aos direitos da personalidade”
STJ, REsp 1159242/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 24.04.12, DJe 10.05.12
STJ, REsp 1579021/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julg. 19.10.17, DJe 29.11.17 STJ, REsp 1887697/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 21.09.