Migalhas de Peso

Uma mudança de perspectiva no que se refere à responsabilização massiva das concessionárias de rodovias

A necessidade de se averiguar, em cada caso concreto, a ocorrência de caso fortuito em situações imprevisíveis e o respeito às definições de serviço adequado.

9/5/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

É possível verificar uma tendência de o Judiciário responsabilizar concessionárias de rodovias objetivamente, nos termos do art. 37, § 6º, da CF/88, por todos e quaisquer objetos e/ou animais de pequeno porte que venham a surgir na pista. Contudo, ao fazê-lo, a análise específica de cada caso em concreto é deixada de lado, aplicando-se a tese de forma completamente genérica e sem se atentar às peculiaridades do caso.

Em que pese ser dever das concessionárias a fiscalização da rodovia, com vistas à segurança de seus usuários, é evidente que essa responsabilidade contratual não a torna uma seguradora universal. Isso porque, como não poderia deixar de ser, os contratos disciplinam as condições que definem o serviço adequado e em nenhum deles consta exigência de que as concessionárias sejam onipresentes, a ponto de possibilitar que ela identifique e remova imediatamente qualquer objeto ou animal de pequeno porte que apareça inesperadamente na rodovia.  

Assim, quando há a efetiva comprovação de que a concessionária realizou a fiscalização da forma como foi estabelecida no contrato firmado com o Poder Público, bem como ante a ausência de comprovação de que o objeto/animal de pequeno porte tenha ficado por tempo além do razoável nas faixas de rolamento, não deveria se falar em responsabilidade da concessionária para com o evento, em razão da excludente de nexo de causalidade por caso fortuito, nos termos do art. 393, parágrafo único, do CC/02.

Nesses casos, o requisito objetivo e subjetivo do caso fortuito andam juntos e embasam a presença da excludente: a aparição do objeto/pequeno animal é inesperada e imprevisível, provindo de causa desconhecida, frise-se aqui que caso o dono do animal seja identificado, o instituto utilizado seria o de culpa exclusiva de terceiro do dono do animal; e justamente pelo fato de a concessionária ter realizado a fiscalização, evidencia-se que ela não agiu com culpa para a produção do acontecimento porquanto cumpriu com o que lhe cabia1.  

Essas situações seriam facilmente perceptíveis pelos julgadores se eles apenas se desincumbissem de analisar os casos per se, identificando se fora comprovado que a concessionária realizou a fiscalização da forma como devia. Contudo, é perceptível que na maioria dos casos se aplica indistintamente a responsabilização objetiva, sem se atentar às tais particularidades.

Em contramão aos diversos genéricos julgados, a 11ª câmara de direito público do Estado de São Paulo tem compreendido que se rompe o nexo de causalidade por caso fortuito quando nessas circunstâncias, por não haver demonstração suficiente da falha de serviço, além de não se poder responsabilizar a Concessionária por todo e qualquer ocorrência da rodovia. Veja-se:

Apelação - Ação de indenização - Danos Materiais - Acidente de trânsito causado por objeto na pista ("pedaço de paralama de caminhão"), provocando danos no veículo - Ausência de comprovação de nexo de causalidade ensejador da indenização pretendida - Omissão estatal não demonstrada - Hipótese em que não há comprovação suficiente de falha do serviço, ou descumprimento do dever de atuação da concessionária - Não há elementos nos autos indicando que o referido objeto teria permanecido na pista por muito tempo (ou por período além do razoável), a configurar omissão culpável da concessionária – Ocorrência de caso fortuito - Precedentes deste Egrégio Tribunal de Justiça e desta E. 11ª Câmara de Direito Público – Sentença de procedência reformada - Recurso provido para julgar improcedente a ação.2  

RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. INGRESSO DE UM CAVALO EM PISTA DE RODOVIA. Esta Câmara tem decidido com frequência que, sejam embora muito diversas as possibilidades de prever o repentino acesso de um pequeno animal e a de prognosticar (e acautelar) a entrada de animais de grande porte, cuja aproximação da rodovia não se faz subitamente, ali está-se diante do caso fortuito; mas, na segunda hipótese, há um déficit de conduta em situação de plausíveis prognose e cuidado: bastaria, com efeito, a consulta a imagens de câmaras (que se supõem razoável encargo da gestão rodoviária) e seria possível, a tempo e modo, a ação de evitar o ingresso de um cavalo (tal o caso destes autos) na pista rodoviária e, com isto, evadir o acidente. Não provimento do recurso.3

RESPONSABILIDADE CIVIL. RODOVIA. ADMINISTRAÇÃO CONCEDIDA. ACIDENTE DE TRÁFEGO CAUSADO EM RAZÃO DA TRAVESSIA SÚBITA DE UM CACHORRO. Não é possível imputar o dever de agir a um agente quando se recusa a previsibilidade do evento: demasiado seria exigir, ao par do dever de perseverante vigilância, que a concessionária houvesse de garantir, a todo instante e em todo espaço da rodovia, que nada, absolutamente nada alheio à circulação normal pudesse pôr em perigo, de algum modo, a normalidade ordinária. Provimento da apelação.4

Esses precedentes nada mais refletem a adequada aplicação dos primados da razoabilidade e proporcionalidade, na medida em que não se pode esperar do Estado ou das prestadoras de serviço público uma vigilância em tempo real de cada espaço da rodovia, acautelando os usuários de todo e qualquer infortúnio que possa vir a ocorrer.

Tomara que, a partir dos precedentes da 11ª câmara de direito público, haja uma mudança de perspectiva no que se refere a responsabilização massiva das concessionárias por todos e quaisquer objetos que apareçam inesperadamente na rodovia, limitando a responsabilização para os casos em que de fato houver falha na prestação dos serviços.

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1 “(...) Deveras, o caso fortuito e a força maior se caracterizam pela presença de dois requisitos: o objetivo, que se configura na inevitabilidade do evento, e o subjetivo, que é a ausência de culpa na produção do acontecimento. (...) No caso fortuito (...) o acidente que gera o dano advém de: 1) causa desconhecida, como o cabo elétrico aéreo que se rompe e cai sobre fios eletrônicos, causando incêndio (...)”; DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro, volume 7: responsabilidade civil. 32ª ed – São Paulo: Saraiva, 2018. Fls. 137/138.

2 TJSP;  Apelação Cível 1112421-09.2020.8.26.0100; Relator (a): Marcelo L Theodósio; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Público; Foro Central Cível - 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 15/03/2022; Data de Registro: 16/03/2022

3 TJSP;  Apelação Cível 1037349-93.2019.8.26.0506; Relator (a): Ricardo Dip; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Público; Foro de Ribeirão Preto - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 16/12/2021; Data de Registro: 17/12/2021

4 TJSP;  Apelação Cível 1000461-29.2018.8.26.0323; Relator (a): Ricardo Dip; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Público; Foro de Lorena - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/06/2019; Data de Registro: 26/06/2019.

Victoria Andreucci Pereira Gomes Gil
Advogada do escritório Teixeira Ferreira Sociedade de Advogados, Pós-Graduanda em Direito Administrativo na Fundação Getúlio Vargas.

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