Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas, apenas 40% da população brasileira confia no nosso Poder Judiciário.1
O problema é complexo, mas tanto a confiança quanto o funcionamento da justiça brasileira podem ser melhorados com medidas internas do próprio Poder Judiciário, passíveis de serem tomadas pela simples, porém necessária, uniformização do entendimento sobre certas questões nos Tribunais Superiores.
Dentre esses Tribunais Superiores, o STJ tem atuação marcante no trâmite dos processos existentes no país porque é a ele quem cabe a última palavra sobre como devem ser entendidas as leis federais, das quais o Código de Processo Civil (CPC) ocupa posição de destaque, especialmente no caso aqui referido. Contudo, o STJ se encontra praticamente entupido de casos, como se pode perceber no levantamento que ele mesmo realizou.
Em 2021 o STJ recebeu em média, no primeiro semestre, 34.163 processos por dia! E 80,16% desses casos foram consumados por decisões monocráticas! Ou seja, um único Ministro julgador verificou as inconsistências de 80.16% desses casos, justamente porque muitos processos se chocavam ou com o CPC ou com a diversidade de entendimentos que existe sobre o CPC por parte de muitos dos ministros julgadores.2
Mas essa situação pode ser muitíssimo melhorada porque chega às mãos dos ministros da Corte Especial do STJ um recurso denominado embargos de divergência, que foi interposto no Resp de 1.805.317, originário do Estado do Amazonas, cujo ministro-relator, Jorge Mussi, analisará inicialmente.
A Fundação Getúlio Vargas, no levantamento ‘ICJ Brasil’, atrás referido, nos informa que, a par dos casos penais, que incomodam a toda a sociedade, os temas mais recorrentes no Judiciário são os seguintes: carro com defeito (89%), relações de trabalho (86%), relações diversas com o Poder Público (86%), Direito de família (86%), judicialização da saúde (85%), relações de vizinhança (81%), prestações diversas de serviço (79%) e celular com defeito (78%). O julgamento dos tais embargos de divergência, pode definir uma regra importante a todo esse universo de casos que chegam ao STJ (e até mesmo ao STF).
É que, ao se elaborar os recursos tanto ao STJ (Resp) quanto ao STF (RE), o recorrente deve necessariamente, dentre outros requisitos, demonstrar o que se denomina como “prequestionamento”, isto é, demonstrar que a matéria que pretende ver examinada pelos Tribunais Superiores fora antes examinada pelo tribunal local, de forma a se evitar um menosprezo ao tribunal regional, o que seria uma supressão daquela instância, evento que deturparia o trâmite da Justiça, gerando um acúmulo de processos para o STJ e para o STF.
Por isso é comezinho o entendimento de que cabe ao recorrente realizar de forma indene de dúvidas o referido “prequestionamento”.
E, se o tribunal regional apresentou uma decisão na qual não tenha se manifestado sobre determinado ponto que o recorrente julgue importante no processo, referido tribunal deve ser instado a fazê-lo por intermédio de uma peça recursal denominada embargos de declaração, que deverá corrigir a eventual omissão em obediência ao art. 1.022 do CPC (“para suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar”).
Dessa forma, é com a oposição de embargos de declaração que o recorrente deve levar o tribunal local a se manifestar expressamente sobre a questão em relação à qual tenha se omitido.
Daí que se, diante da interposição de embargos de declaração, o tribunal local ainda deixa de examinar a questão tida como omissa, o recorrente deve alegar no recurso aos Tribunais Superiores a violação ao artigo 1.022 do CPC, pois assim será dada ao tribunal regional a oportunidade de suprir a possível omissão. Isso significa realizar de forma adequada o necessário ‘prequestionamento’ da matéria debatida. É, portanto, conduta técnica importante e essencial, porque deixa clara a inexistência de qualquer supressão de instância. Ou seja, o acesso aos Tribunais Superiores não se daria por mero inconformismo da parte perdedora, mas pela demonstração de uma falha na aplicação da lei federal, que é o Código de Processo Civil, mais especificamente, em seu artigo 1.022.
Muitos ministros julgadores do STJ corretamente entendem que seja dever do recorrente destacar a violação ao citado art. 1.022, sob pena de não se cumprir o requisito de ter havido um prequestionamento, ainda que o recorrente entenda que ele esteja implícito, posto que, sem fundamentar adequadamente a ocorrência da referida violação ao art. 1.022 por parte do tribunal regional, não existiria prequestionamento, nem explícito, nem implícito e nem ficto.
No entanto, parte de ministros julgadores do STJ parece não observar o mesmo rigor e acaba, por vezes, aceitando recursos sem a fundamentação adequada de violação ao artigo 1.022 do CPC para situações em que, ao arbítrio de cada um, entenda-se ter havido um prequestionamento tido como implícito, o que nos parece tornar subjetiva em demasia a análise, além de, no nosso sentir, acabar abrindo um enorme leque para toda sorte de atecnia nos recursos, a justificar o acúmulo de casos no STJ (os tais 34.163 processos por dia, número verdadeiramente insano!) e, mais ainda, a enorme quantidade de julgamentos monocráticos (80,16%!), em decorrência das notórias falhas existentes nos recursos! E isso pra se falar só em STJ, porque o problema também existe para o STF!
É este o caso que está nas mãos dos respeitáveis ministros Humberto Martins, Jorge Mussi, Felix Fischer, Nancy Andrighi, Laurita Vaz, João Otávio Noronha, Maria Thereza de Assis Moura, Herman Benjamin, Og Fernandes, Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves, Raul Araújo, Paulo de Tarso Sanseverino e Isabel Gallotti, que são os 15 julgadores da Corte Especial do STJ.
O ministro-relator, Jorge Mussi e a Corte Especial, então, poderão colocar um ponto final nessa divergência interna, definido o critério exato para a exigência de prequestionamento em “todos” os temas que chegam às Cortes Superiores.
No mencionado caso há uma flagrante divergência de entendimentos entre a 1ª, a 2ª e a 3ª turma, todas do STJ. A 1ª turma do STJ, frente à existência de um prequestionamento considerado como implícito é condescendente com a falta da técnica mais acurada, que requer a argumentação acerca da violação ao artigo 1.022 do CPC, alegando que tal argumentação só seria necessária nas hipóteses de um prequestionamento tido como ficto. Já a 2ª turma não faz qualquer distinção para os casos de prequestionamento implícito e ficto, tendendo pela necessidade da arguição da violação ao citado artigo 1.022 do CPC, frente ausência de análise pelo tribunal de original (“a quo”) da matéria objeto de embargos de declaração. E, por fim, a 3ª turma do STJ, com o rigor que entendemos adequado, defende claramente a necessidade da boa e fundamentada arguição da violação ao artigo 1.022 do CPC em todos os casos do tal prequestionamento implícito.
É, portanto, notória a distância entre os posicionamentos das turmas julgadoras, denotando também uma indesejável mistura de concepções e espelhando indubitavelmente um enorme desalinhamento de pontos de vista do Superior Tribunal de Justiça, o que só contribui para o descrédito no Poder Judiciário.
Veja-se que tornar aleatório o critério dos recursos, deixa as regras do jogo processual cada vez mais confusas e estimula a escalada de congestionamento do Judiciário com uma quantidade de recursos humanamente impossível de propiciar uma apreciação com o desvelo que o cidadão espera e merece ter por parte do Estado.
Os números falam por si: Como um Tribunal Superior, que tem apenas 33 ministros julgadores, consegue oferecer o julgamento digno de seus colendos integrantes, recebendo mais de 34 mil processos por dia?!
Daí que tudo nos indica que, sim, está nas mãos do próprio STJ melhorar e tornar mais efetiva a Justiça brasileira e, inclusive, cumprir a determinação que salta aos olhos no CPC, que determina em seu art. 926 que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.
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1 Vide a pesquisa ‘ICJ Brasil’ - Índice de Confiança na Justiça no Brasil, de 2021, no link: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/30922/Relato%cc%81rio%20ICJBrasil%202021.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
2 Vide levantamento de julgamentos por parte do próprio STJ em https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/01072021-STJ-encerra-primeiro-semestre-julgando-quase-70-mil-processos-a-mais-do-que-os-distribuidos.aspx.