O Direito Administrativo, em sua essência, possui como primeiro norte a Constituição Federal, que rege a organização e o funcionamento da Administração Pública, a exemplo do que determina o art. 37, § 6º da Carta Magna, que trata da responsabilidade do Estado1 em face de danos causados a particulares. Para além da Constituição, há centenas de leis que regulam e disciplinam temas específicos da Administração. A lei 8.112/90 institui o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. A lei 8.987/95 dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, em conjunto com a lei 11.079/04, que institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada e a lei 14.133/21, por sua vez, disciplina as licitações, em substituição à lei 8.666/93.
As leis supramencionadas, em conjunto com a Constituição Federal e o restante do ordenamento jurídico, em especial os diplomas que tratam da Administração Pública, trazem diversos princípios que norteiam a atuação do Estado. O art. 37 da Constituição impõe à Administração que balize sua atuação em observância aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Nessa toada, o art. 5º da lei 14.133/21 assim dispõe:
Art. 5º. na aplicação desta lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do decreto-lei 4.657/42 (lei de introdução às normas do direito brasileiro).
Veja-se que são diversos os princípios positivados que vinculam a atuação do Estado. A despeito do grande número destes e dos diplomas legais que os trazem, os mais importantes princípios não constam explicitamente em nenhuma Lei, sequer na Carta Magna. São eles os supra princípios da supremacia do interesse público e a indisponibilidade do interesse público. Todo e qualquer ato administrativo deve observálos obrigatoriamente.
Contudo, em razão da complexidade de algumas relações estabelecidas entre administração e administrados, há a impossibilidade de observar alguns princípios concomitantemente, de modo a ser necessária a mitigação ou flexibilização destes como meio de observar o melhor interesse público. Basta analisar por exemplo os contratos de parceria público-privada, que têm um longo prazo contratual, com valores na ordem de bilhões de reais e matérias altamente complexas, como o Porto Maravilha, na cidade do Rio de Janeiro. Sobre a complexidade dos contratos de concessão:
“El inicio y término contractual no son claramente definidos, pues la planeación toma en cuenta la incertidumbre del futuro, asumiendo un carácter procesal y dinâmico”2.
Nesse sentido, no artigo “O conceito de interesse público no direito administrativo brasileiro”, Emerson Gabardo e Maurício Corrêa de Moura Rezende entendem que “o ordenamento jurídico, em um Estado Social e Democrático de Direito, alberga uma quantidade plúrima de interesses que são agasalhados dentro da expressão ‘interesse público’ – os quais podem até mesmo serem contraditórios”3.
Nos contratos de concessão, foco do presente trabalho, não raras vezes o interesse da concessionária contrapõe-se ao da administração, seja no tocante à remuneração ou aspectos técnicos, por exemplo. Tais contratos, regulados pelas leis 8.987/95 e 11.079/04, devem ser regidos em observância aos princípios da legalidade, moralidade, publicidade, igualdade, do julgamento por critérios objetivos e da vinculação ao instrumento convocatório4.
Destaca-se o último princípio elencado acima: a vinculação ao instrumento convocatório, que determina à Administração que respeite aquilo que foi estabelecido pelo diploma editalício, não podendo, de forma alguma, esquivar-se das regras preliminarmente estabelecidas durante toda a execução do contrato. O edital é lei no certame e impossibilita que as cláusulas sejam descumpridas por qualquer uma das partes, seja a Administração, sejam as licitantes.
Porém, sabe-se que à Administração Pública é permitido utilizar-se das chamadas cláusulas exorbitantes, ou seja, cláusulas “comuns em contratos administrativos, mas que seriam consideradas ilícitas em contratos entre particulares, pois são prerrogativas da Administração Pública, colocando-a em posição superior à outra parte. Em outras palavras, as cláusulas exorbitantes são benefícios que a Administração possui sobre o particular e que se justificam na supremacia do interesse público sobre o privado”5.
Tal possibilidade está prevista nos arts. 124 e 125 da lei 14.133/21 e no art. 58 da lei 8.666/93, facultando-se à Administração alterar unilateralmente o contrato, por exemplo, impondo acréscimos ou supressões de até 25% (vinte e cinco por cento) do valor inicial atualizado do contrato. Veja-se que tal alteração independe da vontade do contratado; trata-se de imposição administrativa. Isso se dá em razão da supremacia do interesse público sobre o interesse particular, que permite que, a despeito do princípio da vinculação ao instrumento convocatório, haja alteração unilateral do contrato em até 25% de seu valor.
Porém, tais cláusulas exorbitantes contrapõem-se ao princípio da vinculação ao edital, em primeira análise. Tem-se que não é conferido um regime jurídico imutável ao concessionário, não se trata de um direito adquirido ao regime jurídico vigente no momento da contratação, pois possibilita-se ao Estado que faça alterações no ordenamento jurídico ou no contrato, por meio das cláusulas exorbitantes, sem necessitar do aceite do privado.
É evidente que isso é fruto do status de supra princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. É a supremacia que permite mitigar um ou outro princípio em prol da coletividade, da melhor alternativa para a Administração Pública e, ao fim e ao cabo, aos administrados, os cidadãos.
Esse é o entendimento, por exemplo, do min. Ari Pargendler, no julgamento do mandado de segurança 20.432/DF do egrégio STJ. Confira-se trecho do voto:
“O contrato de concessão, modalidade de contrato administrativo, é flexível, podendo variar segundo as exigências do serviço público. Trata-se de contrato de adesão, ao qual são inerentes as chamadas cláusulas exorbitantes, decorrentes da supremacia do interesse público. Nele as partes estão, portanto, em situação jurídica desigual. Até mesmo os ganhos excessivos do concessionário podem ser reduzidos. Sublinhe-se: excessivos. Nessa linha, o propósito de impor novas condições à concessão está conforme ao instituto. O concessionário não tem direito adquirido ao regime que contratou”.6
Cabe ressaltar que a despeito de sua importância, o interesse público é um conceito bastante genérico, de certa forma, por não estar explícito ou definido exatamente em qualquer dispositivo legal. Porém, é possível contornar essa problemática ao considerar que, a bem da verdade, o interesse público é pautado também na legalidade, de modo que consiste nas diretrizes estabelecidas pela Constituição Federal.
Gabardo e Rezende asseveram o seguinte:
“O conteúdo jurídico do conceito de interesse público não é encontrado pelo critério subjetivo de sua titularidade, ou seja, reporta-se sempre ao interesse público primário, que reside no ordenamento positivo e, portanto, encontra-se alocado a partir de um critério formal – conclusão esta que realoca seu conteúdo para o terreno da hermenêutica”.7
Adotando-se o raciocínio dos autores mencionados, obtêm-se bases mais objetivas para analisar o que seria o interesse público, que deixa de ser um conceito amplamente genérico, aberto, para ser lido como a materialização das diretrizes constitucionais. Caso o interesse público não fosse um supra princípio do ordenamento jurídico pátrio, ter-seia novo problema: haveria novamente o conflito entre princípios, considerando que o interesse público é lido como o direito positivado, conflitaram novamente o interesse público com a segurança jurídica e vinculação ao edital nos contratos de concessão, por exemplo.
Sobre os contratos de concessão, ensinam Gabardo e López-Valle que “la ampliación en la densidade normativa infraconstitucional necesita fomentar el proceso de apertura del contrato con su propia ejecución. Esto requiere una revisión periódica de las reglas que rigen el sistema de contratación pública. La apertura del contrato, producto de esa idea relacional, enseña así su natural mutabilidad, la cual también se presenta intrínseca a la propia noción de servicio público”8.
Em resumo, tem-se que o interesse público é o norteador da atuação da Administração Pública, o qual está definido, em alguma escala, na própria Constituição Federal e demais dispositivos infraconstitucionais. Nesse sentido, ainda que em alguma escala possa haver aparente conflito entre princípios, o interesse público sempre prevalecerá em tais conflitos.
Portanto, analisando-se os contratos de concessão, alvo desta análise, tem-se que, em razão de seu extenso período de vigência, complexidade do objeto e elevado valor, estes são mutáveis a fim de se adequar ao melhor interesse público e garanti-lo, na medida em que há previsão legal, constitucional e principiológica para tanto. Isso não implica no conflito de princípios ou violações a direitos da concessionária, mas sim evidencia o primeiro norte do Estado, ou seja, o supra princípio da supremacia do interesse público.
1 Art. 37 § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
2 GABARDO, Emerson; VALLE, Vivian Cristina Lima López. Característica relacional y mutabilidad de los contratos estatales: la concesión como herramienta de planeación. Revista digital de Derecho Administrativo, n. 25, primer semestre/2021, p. 285-308.
3 GABARDO, Emerson; REZENDE, Maurício Corrêa de Moura. O conceito de interesse público no direito administrativo brasileiro. Revista Brasileira de Estudos Políticos. 115, jul.dez., 2017.
4 Art. 14 da Lei 8.987/95:
Toda concessão de serviço público, precedida ou não da execução de obra pública, será objeto de prévia licitação, nos termos da legislação própria e com observância dos princípios da legalidade, moralidade, publicidade, igualdade, do julgamento por critérios objetivos e da vinculação ao instrumento convocatório.
5 MAZZA, Alexandre, 2012. Manual de Direito Administrativo. 9. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
6 STJ – MS 20.432 – 1ª Seção – Rel. Min. Ari Pargendler – J. em 24/06/2015.
7 GABARDO, Emerson; VALLE, Vivian Cristina Lima López. Característica relacional y mutabilidad de los contratos estatales: la concesión como herramienta de planeación. Revista digital de Derecho Administrativo, n. 25, primer semestre/2021, p. 285-308. 8 Idem.