Quais são as causas da baixa efetividade do plano urbanístico diretor, instrumento de ordenação espacial tornado obrigatório aos municípios pela Constituição Federal e estadual? Falar-se em efetividade significa analisar que diferença fez certa ação político-administrativa, no caso, ação planejadora. Refiro-me, de outra parte, às causas jurídicas porque haverá causas outras, econômicas, políticas, profissionais, etc, que interferem no processo.
Este é um grande tema do Direito Urbanístico que talvez ainda não tenha sido estudado com a profundidade devida porque envolve pesquisa empírica. Como sempre ocorre diante de um fenômeno complexo, não há uma causa só, há várias e elas podem ser divididas em estruturais e circunstanciais, mas o fato é que – salvo em número pequeno de municípios – o plano não muda a realidade urbana como se haveria de esperar. A cidade é um espaço necessariamente coletivo que deve ser democratizado via plano, o que a experiência demonstra que não ocorre ou não ocorre com a intensidade esperada.
Penso – ou, diria melhor, suspeito – que as causas estruturais disso estejam ligadas às características próprias da lei municipal que aprova o plano urbanístico local, lei municipal que se difere bastante das outras. Conforme tenho apresentado, o plano diretor não é uma lei qualquer. Exigido pela Constituição, ele tem características especiais, singulares, que são: a) a integração entre normas e cartas; b) a motivação ou explicitação dos motivos das diretrizes; c) a participação popular. Sendo deficientes tais aspectos, o plano será impactado fortemente e não fará sentido.
A primeira delas envolve a cartografia. Não se faz plano apenas com normas. O plano é um documento híbrido, um conjunto composto de normas e cartas. Porque isso? Por dois motivos básicos. Em primeiro lugar, a realidade urbana é conhecida, tecnicamente, mediante a representação cartográfica: é a “leitura técnica do espaço”. Do contrário, como ressalta metáfora antiga e eloquente, somos como uma formiga no tapete. Os dados imediatos da realidade podem não relevar as relações sociais e urbanísticas profundas.
Só veremos o panorama, o contexto, a totalidade, mediante levantamento cartográfico extenso, que deve apontar os vetores de crescimento, as fragilidades ambientais, as áreas protegidas da urbanização, etc. Mas não é só isso. Depois de definidas as diretrizes, a cartografia deve amarrá-las no solo, recortando o espaço: não posso fixar índices urbanísticos em zona A ou B sem dizer quais os limites precisos dessa zona A ou B. Um notável professor italiano (Aldo Sestini) dizia que a cartografia representa a realidade existente, prevista ou imaginada. Afastando esta última – porque o plano não está no campo da utopia -, a representação cartográfica é fundamental no processo de elaboração do plano e, depois, na fixação espacial das diretrizes, fazendo com que se agarrem ao solo. Sem uma cartografia exuberante, pluritemática, que faça a leitura do espaço e das relações que a partir dele se estabelecem - naqueles dois “momentos” -, o plano pouco importará.
Em segundo lugar, importa a motivação das diretrizes, que, na Espanha, se chama a “memória do plano”. Na França, é “relatório de apresentação”, que explica as escolhas tomadas. Aqui no Brasil, parece que tal explicação fica de lado (talvez porque a Constituição não incluiu a motivação dentre os princípios da administração pública do art. 37) ou então é feita apenas verbalmente, durante as discussões públicas. No entanto, isto não é certo: as motivações precisam ser explicitadas, unindo a “leitura técnica da realidade” (que antes se designava como “diagnóstico”, como a cidade fosse um corpo doente) com as diretrizes propostas para alteração dessa mesma realidade, notadamente os instrumentos eleitos para atingirem-se as metas - e o estatuto da cidade é um cardápio de instrumentos colocado à disposição dos municípios. Em outras palavras, a motivação permite o controle de adequação e razoabilidade das medidas propostas diante dos “pontos de estrangulamento” levantados na leitura do espaço.
É a afirmação da relação necessária entre meios e fins. Evidente que esta explicitação dos motivos será feita com argumentação suficiente para convencer que a solução escolhida foi a melhor dentre outras possíveis. Se se verificar, por exemplo, a necessidade de um equipamento público num certo local, a prefeitura pode comprar, desapropriar, lançar a preempção, etc, todas alternativas válidas para obtenção de uma área com aquela finalidade. A alternativa eleita precisa ser justificada racionalmente, fugindo do campo da vontade.
Em terceiro lugar, há a participação popular que na maioria dos casos não ocorre: há um notório déficit de participação. Este é um problema muito sério. Como se sabe, o estatuto da cidade exige a participação popular na elaboração do plano diretor, tanto na fase do Executivo quanto na fase do Legislativo. Já há muitas decisões judiciais anulando planos por falta de participação, formando uma jurisprudência (v. nosso Convite ao Direito Urbanístico, cap. 3). Mas o problema é o seguinte: como se deve dar tal participação? qual a “receita” para realização dela de modo adequado? Diversos problemas surgem aqui. Em primeiro lugar, a matéria urbanística é muito técnica e, no mais das vezes, o cidadão sequer entende o que se discute nas audiências. Assim, é necessário que os técnicos, como verdadeiros “animadores culturais”, saibam traduzir termos e conceitos urbanísticos no nível da linguagem comum, compreensível ao homem do povo, porque decisão no escuro não é participação: é adesão cega.
De outro lado, é preciso que nas audiências haja debates. Não se pode aceitar que as críticas sejam tomadas por escrito para posterior análise e eventual resposta. Não. As audiências servem para debater o plano, com perguntas e respostas ao vivo, em discussão aberta. Em terceiro lugar, é necessário que haja um número mínimo de audiências com material distribuído antes para estudo. Apenas uma audiência no Legislativo e outra no Executivo (que tem a iniciativa legislativa privativa) não bastam: o plano exige um processo de elaboração que é complexo – no entanto é necessário garantir que os destinos da cidade seja objeto de decisão coletiva, democrática: o plano deve ser uma “causa compartilhada” por todos os cidadãos e nunca uma decisão autocrática que, em geral, visa beneficiar pessoas e grupos.
Não há, evidentemente, só esses problemas para explicar a baixa efetividade do plano. Deve-se investigar, por exemplo, se os vereadores podem fazer modificações sem base na motivação existente ou com base em fato equivocado ou interpretação errônea dos fatos; ou se, de seu lado, o prefeito pode vetar partes, também sem motivação, porque sanção ou veto são atos políticos. Lembre-se do plano diretor paulistano de 2002: na Câmara, emendas foram feitas e aprovadas na calada da noite para mudar o zoneamento e beneficiar certo grupo de proprietários. A prefeita depois as vetou. Enfim, há um conjunto de problemas que conduz a uma realidade inescapável e penso que indiscutível: o plano diretor decenal, no Brasil, tem baixa efetividade transformadora (e daí alguns falarem que é um mito). Claro que alguém pode dizer que isto se deve antes ao fato de que os proprietários imobiliários dominam todo o processo e impedem que sejam tomadas decisões que os desagradem.
Se houvesse um modelo para formação do plano, tal risco poderia ser minorado. Mas não existe: cada município toma um caminho próprio e, não poucas vezes, isso pode conduzir à permanência das coisas como estão. Mudam-se os planos mas as cidades não mudam porque eles não vieram para a mudança, vieram exatamente para a permanência delas como estão. Isto é o oposto do planejamento, é sua própria negação. Aliás, para tal nem precisa planejamento: planejar é prever um futuro desejável (a cidade democrática) e estabelecer os meios de se caminhar para ele, é definir metas e meios. Para o capital imobiliário, o melhor pode ser ficar no ponto em que estamos...
A doutrina do Direito Urbanístico já diz, faz muito tempo, que o processo de planejamento urbanístico – democrático, contínuo, instrumentado – é mais importante que o próprio “produto final”, que é o plano tornado lei local. De fato, a qualidade do processo de elaboração determina a qualidade do plano diretor e, como consequência, afeta a qualidade de vida urbana, positiva ou negativamente. Portanto, o foco das preocupações agora, durante as revisões do plano em diversos municípios (uma vez que arrefecida a pandemia), tem de ser o processo muito mais que o resultado porque uma coisa afeta a outra.
O rito, como se diz em processo judicial, é fundamental para levar a uma decisão final justa. Afinal, nem o plano e nem a revisão do plano podem servir para que tudo permaneça como está, realizando, na prática, a célebre frase de Tomasi di Lampedusa no romance O leopardo (1958): “é preciso que algo mude para que tudo permaneça como está”.