Migalhas de Peso

As plataformas eletrônicas e o admirável mundo novo dos conflitos

O sistema judicial costuma ser barato para o consumidor, mas é caro para o contribuinte. Somos um dos países que mais gastam com judiciário em relação ao PIB.

29/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Em 2020, havia mais de 75 milhões de ações judiciais pendentes de julgamento, parte significativa delas relacionadas a questões de consumo. A partir da Constituição de 1988 e do Código de Defesa do Consumidor, a expansão dos direitos foi acompanhada por uma explosão de ações, gerando uma situação paradoxal: um mundo ideal no papel, só que com longa espera para que o jurisdicionado obtenha a proteção de abusos no poder judiciário, soterrado por uma avalanche de demandas. E, em que pese o hercúleo trabalho de nossos juízes em enxugar gelo, é comum que uma justiça demorada seja percebida como injusta.

A mediação sempre foi vista como um dos remédios para desengarrafar o acesso à justiça, até porque tem um efeito colateral altamente positivo: ela pacifica as partes. Por um lado, quando um juiz decide, é comum que uma parte fique feliz e a outra insatisfeita – dependendo das circunstâncias, ambas podem acabar descontentes. Por outro lado, quando as partes conseguem chegar a um acordo, o resultado se mostra, de certa forma, mais aceitável para ambos os lados.

Diante disso, não foram poucas as políticas públicas para incentivar as soluções consensuais, desde a Resolução CNJ 125/2010 fomentando os meios amigáveis de resolução de conflitos até a Lei de Mediação e o Código de Processo Civil de 2015, prevendo uma primeira etapa conciliatória em processos judiciais. Contudo, o resultado prático na quantidade de transações e redução de processo está aquém do esperado.

Os motivos são vários, dependendo do ângulo que se olha. Do ponto de vista subjetivo, há a cultura do litígio atrapalhando não só as partes, mas também os seus advogados a realmente se dedicarem com mente aberta e espirito desarmado para que a mediação termine com um acordo.

Já em uma perspectiva prática, muitas vezes falta investimento em infraestrutura, como maior remuneração e treinamento aos mediadores. Sob a ótica do direito, embora o CPC de 2015 tente fortalecer um sistema de precedentes, persiste uma insegurança jurídica sobre diversas matérias importantes. E, sem poder antever com certa nitidez o possível desenlace do processo, fica mais difícil para a parte aceitar um acordo. Em uma visão pragmática, talvez faltem incentivos regulatórios para que empresas que são litigantes frequentes se esforcem mais em celebrar transações.

Mas há algo de novo no front: os meios de online dispute resolution (ODRs), especialmente em plataformas eletrônicas de resolução de conflito. Esse movimento favorável a meios extrajudiciais provem principalmente de três fontes: o surgimento de provedores de serviços de mediação online; a popularização de plataformas eletrônicas de vendas, especialmente depois da pandemia de COVID-19, que contêm não só sistemas online de atendimento a clientes, como também canais de resolução virtual de desavenças, sem a necessidade de judicialização; e o fortalecimento da plataforma Consumidor.gov, serviço do Ministério da Justiça que permite a interlocução direta entre o consumidor e as empresas, sob a supervisão dos Procons e da Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (SENACON).

Isso tem o potencial de revolucionar a cultura de métodos extrajudiciais, pela facilidade de acesso por parte do consumidor e a rapidez de resposta. Ainda mais em um contexto no qual, primeiro com o processo digital e atualmente com as audiências online, cada vez mais pessoas se familiarizam com acesso virtual para solucionar conflitos. Além disso, os ODRs barateiam drasticamente os custos de uma negociação de acordo, pois não requerem infraestrutura física. Inclusive, isso pode mudar totalmente o jogo para as empresas que são rés frequentes e gastam fortunas com batalhões de advogados e prepostos pulando de foro em foro.

E o benefício para as empresas não para por aí. É muito mais fácil controlar as negociações até os valores finais de acordos em um sistema online do que realizar o acompanhamento de grande número de audiências de conciliação e mediação. Sem contar que, com big data e inteligência artificial, ao longo do tempo ficará mais fácil antever os melhores termos e condições para transação.

O calcanhar de Aquiles dos ODRs talvez esteja na assimetria de informações entre as empresas e os consumidores. As litigantes frequentes conseguirão ter uma melhor visão do todo para estimar o quanto o consumidor aceitaria em um acordo, enquanto este negociaria no escuro. Nesse ponto, a assistência de advogado experiente seria benéfica para alcançar um equilíbrio. Além disso, os órgãos públicos e as entidades privadas de defesa do consumidor deveriam investir em big data e fazer campanhas para o público informando sobre posicionamentos judiciais relativos a matérias sensíveis, para uniformizar conhecimento.

Em concreto, há duas medidas práticas que poderiam fomentar a mediação e outras soluções extrajudiciais, aproveitando o sucesso das ODR's.

A primeira seria consolidar a jurisprudência de que, quando a empresa está no Consumidor.gov ou possui plataforma eletrônica devidamente estruturada para atendimento a reclamações – com tratamento razoável e resposta rápida –, o consumidor deverá primeiro utilizar esses canais antes de propor ação judicial. A cultura só mudará quando as partes deixarem de ver o poder judiciário como a única saída, ignorando outras opções. Afinal, o sistema judicial costuma ser barato para o consumidor, mas é caro para o contribuinte – somos um dos países que mais gastam com judiciário em relação ao PIB. O princípio constitucional do livre acesso à justiça estatal não serve para justificar oportunismos ou desperdícios como esses.

A segunda seria adotar a proposta de alteração da plataforma Consumidor.gov, derivada de estudo encomendado pelo SENACON, o que permitiria que se realizasse ali não só negociações diretas entre empresas e consumidor, como também mediações sofisticadas e até arbitragens. A plataforma se tornaria um canal multiportas – quiçá até no futuro com link para propositura de ação judicial, de forma mais simples do que atualmente –, em que o consumidor teria disponível um "cardápio de opções" para resolver sua insatisfação. Disponíveis todas as alternativas, a propensão seria resolver grande parte dos conflitos amigavelmente, levando ao judiciário apenas o que merece mais atenção.

Joaquim Tavares de Paiva Muniz
Graduado em Direito pela UERJ. LL.M. pela Universidade de Chicago. Sócio do escritório Trench Rossi Watanabe

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